A primeira pergunta que surge é: mas o que seria essa tal de diversidade funcional? Espécies de aves tem papeis diferentes no ambiente, tais como dispersar sementes ou fazer controle de insetos através da predação. Esses papeis podem ser traduzidos como sua função no meio ambiente e a diversidade dessas funções é essencial para o equilíbrio do ecossistema. Então, de uma forma muito simplista, eu gostaria de dizer que isso seria a diversidade funcional das espécies.
Apenas no grupo das aves insetívoras, já podemos encontrar uma grande diversidade no Brasil. Inclusive temos aquelas bem difíceis de identificar, como as Elaenias e os Myiarchus, mas também o ferreirinho-relógio (Todirostrum cinereum), a corruíra (Troglodytes aedon) e a corujinha-buraqueira (Athene cunicularia) e até os migratórios como o bem-te-vi-rajado (Myiodynastes maculatus nobilis), a peitica (Empidonomus varius) e a tesourinha (Tyrannus savana).
Essa lista é só para lembrar o quão diverso pode ser o grupo das aves insetívoras, que comem exclusivamente insetos ou os incluem em sua dieta. E como o professor Augusto Piratelli, da Universidade Federal de São Carlos, diz, “as aves insetívoras têm um papel muito importante na natureza: elas ajudam a controlar doenças e pragas. A quantidade e a qualidade das florestas são cruciais para garantir que essas aves consumam e controlem os artrópodes e continuem desempenhando suas funções ecológicas, assegurando o equilíbrio ambiental”.
Voltando ao foco deste texto, no artigo científico publicado em março de 2024, cujo título, em tradução livre é “ A cobertura florestal e o tipo de ambiente moldam a diversidade funcional de aves insetívoras na Mata Atlântica brasileira”, os pesquisadores quiseram saber justamente a influência da cobertura da vegetação florestal e dos ambientes de pasto e brejo na diversidade de espécies de aves insetívoras.
Para tanto, usaram uma tecnologia relativamente nova que vem trazendo ótimos resultados: gravadores autônomos de áudio. Eles instalaram em 65 localidades na região onde ocorre a pesquisa ecológica de longa duração no corredor Cantareira-Mantiqueira (PELD CCM), uma importante área de conservação de espécies.
Nessa região da Mata Atlântica é possível encontrar florestas em regeneração, o que seria uma ótima notícia. No entanto, elas ainda oferecem recursos insuficientes para sustentar uma rica diversidade de aves quando comparadas com florestas antigas. Esse foi o principal resultado encontrado no artigo.
Com base nos áudios gravados, os pesquisadores geraram uma lista com mais de 10 mil vocalizações de aves, o que permitiu a realização do presente estudo. O estudo permitiu que eles tirassem, como lição:
quando há mais tipos de aves vivendo junto em uma determinada área, nem sempre significa que estão atuando de forma diferente naquele ambiente ou que todos são igualmente importantes;
quando as florestas são desmatadas, os animais podem perder espaço para viver. Mas ao mesmo tempo, novos tipos de animais e plantas podem encontrar moradias nessas áreas que costumavam ser florestas. Isso pode bagunçar o funcionamento das comunidades florestais, ou seja, como os animais e as plantas dependem uns dos outros, tanto as relações entre eles como o funcionamento do ambiente poderiam ficar comprometidos.
A investigação da dinâmica de longo prazo da diversidade funcional em resposta às mudanças ambientais é de extrema importância, e, portanto, encorajamos estudos que comparem diferentes tipos de florestas em diferentes estágios sucessionais.”
Os pesquisadores ainda ressaltam que os dados obtidos mostram como é importante pensar na qualidade dos lugares onde os animais vivem e em como esses lugares mudam ao longo do tempo, nas suas características e funções ecossistêmicas.
Geralmente, o ambiente que é muito alterado pela ação humana transforma a paisagem deixando tudo muito parecido e uniforme, com menos variedade de plantas e árvores (como quando uma mata heterogênea vira um pasto). Muitas vezes, só sobram pequenos fragmentos de floresta, que podem ser nativas ou que regeneram após um período que foram cortadas. Assim, para proteger a diversidade de aves e suas funções no ambiente é imprescindível manter áreas grandes de floresta antiga, que ainda estão ligadas umas às outras, e contribuir para que a regeneração de novas florestas aumente e permaneça a longo prazo.
Um dos grandes desafios de se realizar pesquisas de longo prazo envolve a capacidade de se manter esses estudos ao longo do tempo e espaço. Gravadores autônomos, também conhecidos como audio recorders, têm se mostrado cada vez mais como uma tecnologia eficaz no monitoramento da biodiversidade. No caso do Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração Corredor Cantareira-Mantiqueira (PELD CCM), já temos dados coletados em 2015, 2016, 2017, 2022, 2023 e a fase de 2024 começará após o mês de setembro, quando se iniciam as chuvas. São mais de 40 terabytes de áudios armazenados e disponíveis para serem analisados e contribuírem com o avanço científico em torno da conservação da Mata Atlântica e das espécies que ali habitam.
O presente estudo é uma demonstração de como podemos usar esses dados para contribuir na geração de conhecimento, permitindo-se assim a orientação de novas políticas públicas e definição de agendas socioambientais mais sustentáveis.
Esses gravadores autônomos têm permitido detectar espécies dos mais variados grupos com muita facilidade e precisão, garantindo inclusive a verificação da identificação das espécies por mais de um especialista, o que aumenta ainda mais a qualidade do dado gerado”, afirmou o professor Milton Ribeiro, da Unesp e coordenador do projeto.
No PELD CCM os dados têm permitido o registro de aves, primatas, anfíbios, insetos, geofonia, antropofonia e, logo mais, estarão também registrando morcegos e espécies aquáticas (por exemplo peixes, anfíbios e insetos aquáticos). “Entramos na era do Big Data, o que está permitindo nos posicionarmos na vanguarda da Ciência em termos de monitoramento da biodiversidade em estudos de longo prazo”, sentencia Ribeiro. Os estudos têm sido financiados pela FAPESP e CNPq, com dezenas de alunos recebendo bolsas dessas instituições e da Capes.
E para finalizar, a observação de aves depende não apenas da existência de matas, mas também de matas de qualidade, pois elas nos darão a oportunidade de registrarmos uma maior diversidade de espécies. Boa passarinhada!