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Alô Tatuapé

Comunidade científica pode colaborar com a reforma do Judiciário

Publicado em 08 julho 2015

Por Elton Alisson, da Agência FAPESP

A comunidade científica pode colaborar com a busca de soluções para modernizar o Judiciário brasileiro, de modo a assegurar a continuidade da prestação do serviço jurisdicional com a eficiência e a agilidade desejadas pela sociedade, avalia o desembargador José Renato Nalini.

Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) – a maior corte judicial do país e do mundo, composta por 360 desembargadores, em um sistema que contém ainda mais de 2 mil magistrados de primeiro grau e quase 50 mil funcionários –, Nalini vem alertando para um problema que classifica como uma epidemia de judicialização no Brasil, evidenciada pelo volume de quase 100 milhões de processos em curso atualmente no país.

A fim de chamar a atenção da sociedade para o problema e para os seus impactos no sistema Judiciário, o desembargador criou em agosto do ano passado, em seu primeiro ano de mandato de dois anos à frente do tribunal, o Conselho Consultivo Interinstitucional do TJSP.

O Conselho é composto por representantes de diversos setores da sociedade civil, como Celso Lafer, presidente da FAPESP, além dos integrantes das Polícias Civil e Militar, Poderes Legislativo e Executivo, Procuradoria-Geral do Estado, Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do próprio TJSP.

Nesta entrevista concedida à Agência FAPESP, Nalini explica quais são os objetivos do Conselho e como a comunidade científica pode contribuir na busca de soluções para equacionar alguns dos problemas enfrentados atualmente pela Justiça brasileira.

Leia a entrevista

Agência FAPESP – O senhor vem chamando a atenção para a epidemia de judicialização no Brasil, evidenciada pelo volume de quase 100 milhões de processos em curso atualmente no país e a existência de quase 800 mil advogados, 17 mil juízes, 15 mil promotores e 6 mil defensores públicos. A que o senhor atribui esse fenômeno?

José Renato Nalini – Acho que, em parte, é resultado do anacronismo da formação jurídica no país. As duas primeiras Escolas de Direito criadas no Brasil [a Faculdade de Direito de São Paulo e a Faculdade de Direito do Recife, ambas fundadas em 1827], já começaram antigas e defasadas, porque iniciaram seguindo o modelo da Faculdade de Direito de Coimbra, de Portugal, [criada em 1290] que, por sua vez, foi inspirada no modelo da Faculdade de Direito da Universidade de Bologna, na Itália, instituído em 1200, embora o curso de Direito já existisse no mundo desde o ano 800. Hoje, o Brasil tem mais faculdades de Direito do que a soma de todos os demais países do mundo, que reproduzem um modelo de ensino prelecional, compartimentado e sem muita preocupação com a realidade e com a formação da cidadania. Além disso, há uma cultura de proliferação de direitos no país em que todos têm direitos, mas quase ninguém tem obrigações, deveres e responsabilidades, e toda a sociedade fica sob a tutela de um Estado provedor que se assenhoreou de uma série de atribuições. O Estado assumiu o papel de satisfazer desde os interesses mais imediatos e menores até questões maiores da sociedade, que fica aguardando as soluções advirem dele. O inciso XXXV do artigo quinto da Constituição Federal de 1988 [conhecido como o princípio do acesso à Justiça] estabeleceu que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Com isso, escancarou-se a porta da Justiça, sem levar em conta que a Justiça brasileira é tão sofisticada ao ponto de ter quatro instâncias recursais, cinco Justiças – sendo duas delas chamadas comuns que se digladiam por causa de suas competências – e lides [litígios] que podem durar até 20 anos.

Agência FAPESP – A implementação nos últimos anos de iniciativas de mediação, conciliação e arbitragem de conflitos, antes da judicialização, não tem sido suficiente para desafogar os tribunais do volume de processos em tramitação?

Nalini – Essas iniciativas, além de diversas outras que foram transplantadas nos últimos anos de países como os Estados Unidos, que possuem mais de 30 estratégias diferentes de resolução alternativa de litígios ou ADR, em inglês, contribuem para reduzir as demandas do Judiciário. Mas não acho que esse seja o aspecto mais importante para solucionar o problema da judicialização no Brasil. O ponto mais importante é fazer com que a sociedade acorde para a necessidade de assumir obrigações, deveres e responsabilidades. Caso contrário, se continuarmos com essa legião de tutelados pelo Estado, nunca teremos democracia participativa. Se os cidadãos não souberem resolver uma questiúncula de interesse pessoal, relacionada ao microcosmo de suas vidas, sem recorrerem ao Estado, como poderão influenciar no destino da República, além de escolher e fiscalizar as ações de seus representantes?

Agência FAPESP – Quais têm sido os impactos da judicialização da vida nacional no sistema Judiciário brasileiro?

Nalini – Há várias consequências evidentes. A primeira delas é o paradoxo de as pessoas procurarem cada vez mais a Justiça e, em contrapartida, não confiarem nela. No início de junho a FGV [Fundação Getúlio Vargas] publicou os resultados da nova pesquisa do Índice de Confiança na Justiça Brasileira. O levantamento apontou que a confiança do brasileiro no Judiciário caiu de 30% em 2013 para 25% em 2014. Isso é uma evidência de que o sistema é disfuncional e não está solucionando os litígios da forma esperada. Com o intuito de fazer a fila de processos em tramitação andar tentou-se passar na frente os litígios movidos por pessoas idosas. O problema, contudo, é que fila de processos de pessoas com mais de 60 anos no país virou uma fila paralela, como a dos precatórios alimentares, porque tem muita gente com essa idade ou se ainda não tem quando começou a litigar certamente completará 60 anos até o processo ser julgado. Mas o segundo impacto que eu acho mais sério da judicialização da vida nacional é que, ao não funcionar por estar assoberbado com milhões de causas para serem julgadas, o Judiciário acaba fazendo o jogo de quem não tem razão. Quem realmente tem razão sofre muito na Justiça e acaba sofrendo o ônus da ação. Já quem não tem razão e não quer cumprir suas obrigações, como honrar contratos firmados, acaba se beneficiando de todo um tempo que o mercado, as instituições financeiras ou os credores não ofereceriam, que é o tempo de tramitação da ação. Em países civilizados vemos a pessoa ofendida dizer para o ofensor “nos vemos no tribunal, diante de um juiz”. Aqui é o ofensor que fala para o ofendido procurar seus direitos na Justiça pela certeza de que o sistema judiciário não irá resolver em um tempo razoável. Temos uma democracia que apregoa que os tribunais estão funcionando, que o Judiciário é independente e todo mundo consegue entrar em juízo. Mas não interessa que o problema não seja resolvido. Se o Judiciário fosse reservado para as verdadeiras complexidades talvez teria melhores condições de funcionar.

Agência FAPESP – Quantos processos tramitam hoje no Tribunal de Justiça de São Paulo, que é o maior do país e do mundo, com 360 desembargadores, mais de 2 mil magistrados de primeiro grau e quase 50 mil funcionários?

Nalini – São 25 milhões de processos. Os números oscilam porque até o controle é falível. Eu falava que, desse total de processos, 14 milhões são execuções fiscais [cobranças judiciais para recuperar valores devidos pelo cidadão ao Estado, como dívidas de tributos e multas], mas recentemente me corrigiram e disseram que o número certo é 11,650 milhões de processos. Perguntei onde foram parar a diferença de mais de 2 milhões de processos e me responderam que foram arquivados. De qualquer forma, esses 11,650 milhões de processos são nefastos para a vida, para o oxigênio da Justiça, porque uma execução fiscal custa, no mínimo, entre R$ 890 e R$ 1,3 mil a tramitação. Isso leva à conclusão de que fazer uma execução fiscal para cobrar uma dívida inferior a esses valores é jogar dinheiro fora. Mas quando se começa a falar em desjudicialização da execução fiscal no Brasil levantam-se milhares de vozes contrárias. Com isso, continua existindo um sistema em que cada município.