O complexo econômico e industrial da saúde (CEIS) corresponde a cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, nove milhões de empregos diretos e aproximadamente 35% do esforço de pesquisa nacional, segundo o Ministério da Saúde (MS). Incluída pelo governo no programa Nova Indústria Brasil e articulada com o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a retomada da estratégia de estímulo ao setor — que aposta firme em inovação — prevê investimentos públicos e privados entre R$ 42 bilhões e R$ 60 bilhões até 2026.
Lançada no ano passado e com regulamentações divulgadas em junho último, a Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde espera propostas para projetos entre instituições públicas e empresas privadas — as Parceiras para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) —, assim como para o Programa de Desenvolvimento e Inovação Local (PDIL), até 23 de setembro próximo. “A pandemia de covid-19 mostrou de forma clara que a ausência de capacidade produtiva em medicamentos e outros itens essenciais cria enormes vulnerabilidades para o sistema de saúde”, ressalta o secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde do MS, Carlos Gadelha.
Por isso, o objetivo do CEIS é ampliar, em dez anos, de 42% para 70% a fabricação nacional dos insumos e equipamentos adquiridos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e, assim, reduzir a dependência externa. Os números provam essa necessidade: o déficit da balança comercial da saúde pulou, durante a pandemia, de US$ 16 bilhões em 2020 para US$ 21,5 bilhões em 2021.
Gadelha lembra que as PDPs — uma das vertentes do CEIS e que tiveram sua primeira versão no segundo governo Lula — viabilizaram a produção nacional de vacinas para a covid-19, na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e no Instituto Butantan, além de outros itens para o SUS. “Temos diversas experiências que permitiram viabilizar parcerias público-privadas para produção local no Brasil, dando sustentação ao Programa Nacional de Imunizações, ao sistema nacional de transplantes e ao tratamento da Aids, de doenças negligenciadas, de câncer e de outras doenças crônicas”, ressalta.
Félix, da USP, ressalta a necessidade de estímulo para a área de cuidado — Foto: Decio Figueiredo/Divulgação Félix, da USP, ressalta a necessidade de estímulo para a área de cuidado — Foto: Decio Figueiredo/Divulgação
No ano passado, as importações do setor de saúde alcançaram R$ 22,3 bilhões, com 89% das compras externas associadas a produtos de alta ou média-alta intensidade tecnológica, e as exportações totais somaram US$ 2,4 bilhões. O resultado foi um saldo negativo de US$ 19,9 bilhões. Cerca de R$ 3 bilhões em recursos federais, em 2023 e 2024, já foram aportados para ampliar a produção de insumos da área, de acordo com dados do MS.
Esse aporte trouxe, por exemplo, o desenvolvimento de vacinas com tecnologia RNA mensageiro pela Fiocruz, soros e mais capacidade de produção no Butantan, entre outros, como a inauguração, em abril passado, da nova fábrica da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), em Pernambuco. “Investir no Complexo Econômico-Industrial da Saúde é investir em um dos setores mais dinâmicos da economia global”, afirma Gadelha. Ele diz que o setor tem “alto potencial” de promover a entrada do Brasil na quarta revolução industrial, a tecnológica.
O envelhecimento da população, considerado um dos maiores desafios produtivos e tecnológicos em saúde, ganhará investimentos em medicamentos, itens médicos e tecnologias digitais para o público idoso. Há também, dentro do CEIS, prioridade para insumos que auxiliem na prevenção, diagnóstico e tratamento de tuberculose, doença de Chagas, hepatites virais e HIV, além de câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e imunológicas, dengue, emergências sanitárias e traumas ortopédicos.
Para o presidente do conselho administrativo da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), Odilon Costa, o relançamento do CEIS deve fortalecer a indústria nacional. Ele aponta que, das importações em 2023, os insumos farmacêuticos ativos (IFAs) representaram US$ 7,2 bilhões; os medicamentos, US$ 5,2 bilhões; e as vacinas, US$ 1,7 bilhão.
Gordon, do BNDES: forte demanda do segmento de fármacos e biofármacos — Foto: Stefano Figalo/Divulgação Gordon, do BNDES: forte demanda do segmento de fármacos e biofármacos — Foto: Stefano Figalo/Divulgação
“Com a implementação de PDPs e a produção local de insumos farmacêuticos, o Brasil pode reduzir esses valores”, destaca Costa. No entanto, diz, é fundamental haver políticas públicas coordenadas que incluam regulação, política de compras públicas e financiamento. Segundo ele, onze empresas associadas à Abifina têm PDPs .
De acordo com o executivo, a iniciativa atual é melhor do que a anterior, uma vez que agora “há uma abordagem mais sistêmica nas políticas de desenvolvimento”. Costa lembra que, no passado, as PDPs resultaram na produção de medicamentos antirretrovirais. “O Efavirenz é um exemplo”, ressalta.
O remédio foi criado a partir do consórcio entre três farmoquímicas — Cristália, Globe e Nortec —, visando à fabricação e fornecimento do princípio ativo para um laboratório oficial, o Farmanguinhos/Fiocruz, fabricar o medicamento. Outras parcerias deram origem a novas unidades fabris inauguradas em abril passado. Uma delas, da Bioom, em Minas Gerais, retoma a produção de insulina no Brasil, além de fabricar outros biofármacos.
O projeto, em conjunto com a chinesa Gan&Lee Pharmaceutical Limited, com apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG), inclui a transferência de tecnologia para todas as etapas de produção da insulina. A Bioom e o Farmanguinhos/Fiocruz assinaram um protocolo de intenções visando à cooperação voltada à produção de medicamentos para doenças metabólicas.
O BNDES, por sinal, aprovou, no ano passado, mais de R$ 2 bilhões em novas operações para a produção de equipamentos e materiais médicos hospitalares e odontológicos, itens farmacêuticos e serviços de saúde. Esse montante foi 64% superior ao anotado em 2022.
Até meados de julho de 2024, as aprovações de crédito do banco de fomento somente para a indústria farmacêutica brasileira atingiram R$ 2 bilhões. É o maior valor desde 1995, superando em 32% o montante de 2023, que fechou em R$ 1,4 bilhão. “Tem entrado muito projeto do setor de saúde, há uma forte demanda do segmento de fármacos e biofármacos”, ressalta o diretor de Desenvolvimento Produtivo, Inovação e Comércio Exterior do BNDES, José Luís Gordon.
Sua expectativa é de alta nos valores relacionados à aprovação de projetos neste ano sobre 2023. “A saúde é uma das prioridades de política industrial”, lembra. Segundo ele, o movimento de demanda por crédito, especialmente para inovação, é puxado por grandes empresas, “mas as médias também estão chegando”.
Três aprovações de crédito pelo banco, dentro do programa Mais Inovação, em julho passado, ilustram esse apetite. A Eurofarma obteve financiamento de R$ 500 milhões para investir em pesquisa, desenvolvimento e inovação. No plano da farmacêutica, estão duas centenas de projetos focados em inovação radical, incremental e novos genéricos e biossimilares para o mercado brasileiro.
Outros R$ 386 milhões foram aprovados para o Instituto Butantan construir uma nova unidade em São Paulo, que deve operar em 2029. O objetivo é desenvolver e produzir bancos de vírus e de células para produtos biológicos, entre eles vacinas e medicamentos, avançando em pesquisas relacionadas a anticorpos monoclonais — remédios de alta tecnologia para tratamento de câncer, artrite reumatoide, lúpus, esclerose múltipla, psoríase e doença de Crohn.
E a Braile Biomédica foi contemplada com R$ 21,1 milhões para desenvolver novas soluções em produtos cardiovasculares, como novos modelos da família de dispositivos para circulação extracorpórea. Esses dispositivos substituem, temporariamente, as funções do coração e dos pulmões durante um procedimento, mantendo a circulação do sangue e o conteúdo de oxigênio do corpo. A empresa também pretende expandir a linha de itens na área de implantes minimamente invasivos ou pouco invasivos.
Para atender empresas de porte médio, o BNDES lançou em maio passado o programa Fornecedores SUS, com orçamento de R$ 500 milhões, vigente até junho de 2028: concede crédito associado a uma meta de suprimento ao sistema de saúde. Embora tenha taxas de mercado, há prazos e carências diferenciados e simplificação no processo de análise.
De acordo com Gordon, é uma iniciativa focada em produtores de máquinas e equipamentos e a dotação orçamentária inicial pode subir, a depender da demanda. Para alcançar o público-alvo do programa, o banco baixou de R$ 20 milhões para R$ 10 milhões o valor mínimo do crédito. “Estamos conectando demanda do SUS e financiamento ágil e qualificado com uma estrutura produtiva com capacidade de vender, fechando o ciclo de forma muito inteligente”, frisa o executivo.
O Brasil, comenta o presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia para Saúde (Abimed), Fernando Silveira Filho, está entre a oitava e décima posição na economia mundial, mas em inovação ocupa a 45ª posição. Ele defende que, com a estratégia do CEIS, o país possa se inserir nas novas cadeias globais de produção e abastecimento.
Sua expectativa é de que a política industrial da saúde atenda não só às demandas do SUS como também crie condições para atrair capitais de fora, visando a investimentos em pesquisa e inovação. “Não pode ter um foco restrito. E isso já traz outra perspectiva, que é a necessidade de desenvolvimento do mercado privado também, de uma forma muito ampla”, diz o executivo.
No ano passado, o consumo aparente estimado de dispositivos médicos no país atingiu US$ 7,5 bilhões, com queda de 3,3% em relação a 2022. “O efeito cambial é muito relevante nesse cenário, temos importações e exportações”, observa Silveira Filho. As importações somaram US$ 4,6 bilhões, especialmente em itens para os segmentos cardiovascular, diagnóstico por imagem, ortopedia, além de produtos e instrumental ligados à área cirúrgica. Já as vendas externas foram de US$ 741 milhões.
“É cedo para falar sobre 2024, mas a expectativa é que o cenário geral não mude em dinâmica, ou seja, vamos continuar tendo um volume de consumo aparente em torno de US$ 7 bilhões”, diz Silveira Filho.
O CEIS, embora inclua pontos para enfrentar a inversão da pirâmide demográfica do país, deveria ir mais além. É o que diz Jorge Félix, professor da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador de pós-doutorado da Unicamp/Fapesp, que ressalta a necessidade de estímulo para a área de cuidado, diante de uma população que envelhece, mudando o perfil de despesas das famílias.
“O cuidado está cada vez mais intenso em tecnologia e com produtos importados ou, mesmo quando fabricados aqui, com alto grau de dependência de matérias-primas importadas. Isso tem pesado no orçamento familiar”, diz.
Félix lembra que todos os países onde foi adotada uma estratégia de economia da longevidade (como França, Reino Unido e localidades da Espanha), o cuidado faz parte da política industrial com o mesmo peso da saúde. Segundo ele, há pouco estímulo para startups brasileiras desenvolverem produtos da cesta do cuidado que poderiam ser exportados, como fazem os países europeus e asiáticos.
A nova versão do CEIS, na avaliação de advogados, avança em relação à anterior. “As regras estão bem mais claras agora. Há robustez para de fato estimular a colaboração público-privada”, diz Renata Rothbarth, head da área de life science & healthcare do escritório Machado Meyer Advogados. Até 2014, aponta ela, as normas sequer tinham previsão de monitoramento e avaliação das parcerias celebradas. “Agora isso mudou, não só no que diz respeito à efetiva transferência e internalização da tecnologia, mas também sobre os preços dos produtos objeto da PDP”, diz. Ela lembra que, desde 2017, o Tribunal de Contas da União (TCU) fiscaliza PDPs vigentes e já havia emitido recomendações para que o marco regulatório aplicável às parcerias fosse aperfeiçoado.
Gustavo Swenson Caetano, sócio da prática de life sciences e saúde do escritório Mattos Filho, também vê maior detalhamento sobre o processo de transferência de tecnologia, aquisição de produtos e maior controle do governo sobre as PDPs. No entanto, ele cita lacunas, como a precificação da tecnologia. “Acreditamos que em alguns meses já será possível avaliar melhor o cenário concreto”, observa.