Na esteira da reforma do estado brasileiro, em que o setor estatal busca no mercado os modelos de eficiência e agilidade, as agências de fomento à pesquisa científica e tecnológica estão deixando de distribuir recursos ao bel-prazer. Elas estão passando a avaliar a qualidade dos projetos das instituições públicas de pesquisa por meio de licitações. O objetivo é estimular a competitividade entre os centros de investigação, pondo fim a uma tradição de distribuição de recursos marcadamente paternalista e burocrática.
Hoje, pelo menos 60% dos recursos do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) são distribuídos dessa forma. Mas um dos melhores exemplos desta nova política é a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que deverá distribuir US$ 120 milhões para as instituições que se mostrarem mais aptas a atender a demandas nas áreas de agronegócios, agricultura familiar, biotecnologia e recursos naturais. Na próxima sexta-feira, dia 17, serão abertas as propostas das instituições que se candidataram a participar do Projeto de Apoio ao Desenvolvimento de Tecnologias Agropecuárias para o Brasil (Pronetap).
"Os sistemas competitivos de distribuição de recursos são uma tendência importante na Europa e nos Estados Unidos", explica Alberto Duque Portugal, presidente da Embrapa. "Com eles podemos premiar a excelência, a criatividade e a competência dos centros de pesquisa". Mais de mil instituições receberam os editais e as contempladas podem ser centros de pesquisa, universidades, empresas e até organizações não-governamentais.
A Embrapa também está buscando formas de promover parcerias com os agricultores, por meio da criação de fundos de apoio à pesquisa. "Se fosse doado R$ 1 para cada um dos 11 milhões de hectares de soja plantados no País, teríamos um fundo de R$ 11 milhões por ano - o equivalente a todo o orçamento de pesquisa que temos para essa cultura", comenta Portugal. Com isso, a entidade, que mantém 39 centros de pesquisa e financia 600 projetos com um orçamento de R$ 535 milhões, pretende ampliar seu raio de ação.
Essa busca de diversificação e competitividade também atingiu o CNPq. "Apenas 40% dos R$ 670 milhões disponíveis para o patrocínio de pesquisas, bolsas de pesquisa e seminários são distribuídos sob solicitação dos pesquisadores, por demanda espontânea", comenta José Galizia Tundisi, presidente do órgão. "Temos lançado editais sobretudo para os projetos de maior porte, que estabelecem quais serão as áreas prioritárias".
Ele cita o exemplo da pesquisa de doenças infecciosas recorrentes, como tuberculose e sarampo, considerada urgente. "Decidimos, em conjunto com o Ministério da Saúde, promover um simpósio para identificar qual é exatamente o problema, quantos recursos serão necessários para saná-lo e quem poderá resolvê-lo, para poder alocar os recursos de uma forma mais densa".
O sistema de licitações dirigidas para pesquisas consideradas prioritárias também foi adotado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, que adota a nova mecânica de distribuição no Plano de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT), num valor de US$ 300 milhões, sendo metade emprestada pelo Banco Mundial, e no Programa de Apoio aos Centros de Excelência (Pronex), que dispõe de US$ 62 milhões.
Entretanto, não há unanimidade quanto às virtudes do modelo. "Os recursos do CNPq são tão poucos que uma mudança na forma como são distribuídos muda pouca coisa", crítica Sérgio Ferreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). "Quando 60% dos recursos do CNPq são destinados a projetos direcionados, falta dinheiro para a pesquisa de fomento, para o arroz com feijão dos laboratórios, como comprar camundongos para experiências". Ele considera que o sistema de editais e de definição prévia de temas desvia a discussão do problema principal: a escassez de recursos e de um planejamento estratégico global para Ciência e Tecnologia.
Mas o sistema, em si, também recebe críticas. "Abrir editais é contraproducente porque, ao definir temas muito específicos, pode favorecer projetos medíocres simplesmente por estarem bem adaptados à demanda", afirma Ferreira. Na sua opinião, isso é ainda mais perigoso quando os critérios de avaliação são estabelecidos "por burocratas, mais sujeitos a injunções políticas, e não por cientistas".
A realização do edital também retira das mãos do cientista boa parte do poder de decidir o que é prioritário. "Esse sistema pode inibir pesquisas importantes, como a dos príons, que deu ao neurologista norte-americano Stanley Prusiner o Nobel de Medicina deste Ano", diz Ferreira. Os príons são proteínas capazes de se replicar, embora sejam desprovidas de material genético, e estão associados à doença da vaca louca. "Esse é um bom exemplo de um tema de pesquisa que dificilmente seria considerado prioritário", afirma.
Ferreira louva outro modelo de seleção, o adotado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Qualquer projeto proposto à agência passa pelo Conselho Científico da entidade, antes de receber o parecer de um dos 6 mil pesquisadores-doutores cadastrados. Estes avaliam o mérito científico da pesquisa e sua viabilidade.
"O direcionamento da pesquisa e o lançamento de editais se justifica, sobretudo quando os recursos são poucos, mas, no nosso caso, o orçamento bate com a demanda", diz José Fernando Perez, "diretor científico da Fapesp. O orçamento deste ano inclui R$ 135 milhões orçamentários, provenientes do imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), e algumas dezenas de milhões em recursos próprios. Apenas 2,5% desse dinheiro é gasto com despesas administrativas.
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Gazeta Mercantil