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Como viagens incriveis fazem o conhecimento científico (2 notícias)

Publicado em 21 de fevereiro de 2022

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O Globo online
Por Luciana Vieira Souza da Silva

É muito comum que cientistas viajem para realizar pesquisas de campo ou participar de eventos acadêmicos. Mas com o conhecimento produzido por essas pessoas, como ele vai circular? Segundo o professor Kapil Raj, da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, o conceito de circulação do conhecimento não deve ser visto como uma simples “difusão” do conhecimento produzido em determinados locais. Ao contrário, o professor defende que a circulação é entendida como o deslocamento de saberes e práticas e sua transformação consecutiva após ou contato com outros lugares [1].

Hoje, à medida que acesso cada vez mais a Internet, é possível conhecer os resultados das pesquisas antes da revisão por pares e publicação em revistas especializadas. E antes da internet, como vai ser isso ou com hecimento você viajou? Aproveitando as comemorações relacionadas ao nascimento do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), autor do famoso “A Origem das Epécies por Meio de Seleção Natural”, neste mês resolvi usar uma das histórias em torno de sua figura como estudo de caso, a fim de discutir alguns aspectos sociais que envolvem a produção e circulação do conhecimento científico.

Em 13 de junho de 1881, quando Darwin já era pesquisador consagrado, ou o jovem naturalista português Francisco de Arruda Furtado (1854-1887), enviou-lhe uma carta contando sobre suas pesquisas na Ilha de São Miguel, nos Açores. Antes de vir para Darwin, Furtado teve que participar de uma rede de naturalistas europeus que foi muito importante para o desenvolvimento intelectual e material de suas pesquisas. Um dos nomes desta rede foi Thomas Edward Thorpe, um químico britânico que descobriu o trabalho de Furtado durante uma viagem de investigação aos Açores. De Thorpe, Furtado entrou em contato com Louis Compton Miall, professor do Yorkshire College e membro da Leeds Philosophical and Literary Society, essencial para que seus estudos alcançassem alcance internacional. [2].

Furtado conseguiu tirar Darwin direto do contato com Miall, uma iniciativa muito bem-sucedida, já que o autor de “As Origens” lhe respondeu menos de um mês depois. Na carta, Darwin forneceu várias orientações para auxiliar Furtado em seu trabalho e indicou os estudos do colega Alfred Wallace. Em outra carta, Furtado escreveu para informar sobre o andamento das investigações e dizer que, embora tenha confirmado os empregos indicados, não dispunha de recursos financeiros para adquiri-los. Em resposta, Darwin lhe enviou um exemplar de “A distribuição geográfica dos animais”, de Wallace, e informou que falaria sobre seu trabalho como o botânico Joseph Hooker, ao qual Furtado também se correspondia imediatamente. Os contatos com Darwin duraram até o final de 1881, quando ele se recusou a responder, morreu pouco depois, em abril de 1882. [2].

Sem duvidas, participar de uma rede de sociabilidades e a oportunidade de compartilhar pesquisas em andamento com importantes naturalistas, por meio de cartas, formas fundamentais para a carreira de Furtado. Pararemos para analisar a forma como nos comunicamos não apenas academicamente, observaremos que, no entanto, os suportes materiais são outros, a construção de vínculos interpessoais e o compartilhamento de resultados preliminares ainda são fundamentais na construção do conhecimento científico. Desse ângulo, é difícil imaginar que exista alguma forma de ciência isolada de suas condições de produção e circulação, sejam elas sociais, materiais, políticas, econômicas e, principalmente, humanas. O conhecimento científico está sempre viajando para lugares diferentes, mas essa jornada requer muitos outros fatores para ocorrer.

Luciana Vieira Souza da Silva é pós-doutoranda na área de história da ciência com o Programa de Pós-Graduação Multiunidade em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Estadual de Campinas (PECIM/UNICAMP) e bolsista da Fundação Estadual de Amparo à Pesquisa. São Paulo (FAPESP).

Referências:

1- SILVA, MAD; RAJ, K. “A circulação não é fluida”: Entrevista com Kapil Raj. Boletim Eletrônico da Sociedade Brasileira de História da Ciência, nº. 9, 2016. Disponível em: https://www.sbhc.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=944.

2- NAVARRO, PL Cartas de um jovem cientista: tradução comentada de correspondência entre Francisco de Arruda Furtado, Charles Darwin e Joseph Hooker. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 13, não. 1 p. 128-143, janeiro-junho de 2020.

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