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Como a ditadura militar produziu violência com cidades de ferro e concreto (2 notícias)

Publicado em 29 de maio de 2024

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Folha.com
Por Alessandra Monterastelli

Obras faraônicas no interior do Brasil e a supressão da natureza nas capitais foram mote de uma arquitetura hostil ALESSANDRA MONTERASTELLI

Da Folhapress - São Paulo

"A Amazônia já era." "A floresta domada." "A grande aventura de desbravamento da selva." anunciavam, de forma quase profética, manchetes sobre a construção da rodovia transamazônica pelo regime militar na década de 1970, projetada para rasgar o Brasil de Cabedelo, na Paraíba, à Lábrea, no Amazonas.

A obra faraônica, como ficariam conhecidas as construções megalomaníacas do período por seus tamanhos e aportes financeiros, nunca foi concluída, mas sinalizou que natureza estava na contramão do progresso e deveria ser domada. A ideia, mote dos anos de chumbo, se expandiria nos anos seguintes.

Incentivado pelos lucros da construção civil e do setor automobilístico, o concreto armado foi a solução também para as cidades que estavam em expansão. O milagre econômico e a ideia de que a natureza estava na contramão do progresso impulsionaram uma arquitetura de ferro, asfalto e concreto que ainda desenha grande parte das paisagens brasileiras.

"Se havia uma afinidade com o concreto desde o Niemeyer e a construção de Brasília, na década de 1970 esse material é usado para coisas grandiosas. A ponte Rio-Niterói é um exemplo. Dizem que há corpos de desaparecidos políticos dentro de sua estrutura", comenta Guilherme Wisnik, arquiteto e professor da FAU-USP. "A linguagem da arquitetura brasileira foi tomada por um espirito autoritário, que tornou o que antes tinha um aspecto de graça, autoria e subjetividade em uma massa homogênea, monumental e monótona."

É curioso, portanto, que alguns dos edifícios modernistas mais icônicos tenham sido inaugurados após o golpe. É o caso do Masp, aberto na avenida Paulista em 1968, e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP um ano depois, assinado por José Artigas. Mas ambos foram projetados no início da década, explica Wisnik. Outros, como o projeto da Barra da Tijuca pensado por Lúcio Costa e a sede da Petrobras, também no Rio de Janeiro, não desviavam do gosto corporativo apreciado pelo regime.

A dinastia do concreto prevaleceu também nas periferias, por meio do Banco Nacional de Habitação, o BNH, desenvolvido para financiar habitações a pessoas de baixa renda —ainda que 80% dos empréstimos concedidos pelo banco tenham sido destinados à construções para a classe média, revela a pesquisa reunida na mostra "Paisagem e Poder: Construções do Brasil na Ditadura", aberta no Centro MariAntonia da Universidade de São Paulo.

Foi assim que nasceu a Cohab de Itaquera, na zona leste de São Paulo, por exemplo, formado por quatro conjuntos de moradia padronizados ao máximo e pouco eficientes em atender as necessidades das famílias atendidas. O objetivo era, afinal, o crescimento econômico através da construção em massa.

Tampouco houve investimento em infraestrutura, como tratamento de esgoto, postos de saúde, escolas ou transporte que ligasse o bairro ao centro. O resultado foi a explosão de bairros periféricos isolados e favelas —estas como uma possível resposta das populações marginalizadas às necessidades de moradia.

As classes populares se tornavam mão de obra para a construção de edifícios, ruas e avenidas. "Os prédios ficaram cada vez mais genéricos e, até hoje, um trabalhador da construção civil é fácil de contratar e demitir", diz Victor Próspero, vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo, o IABsp.

Foi com o fim dos anos de chumbo, quando os ventos da liberdade sopravam no horizonte, que projetos desviantes surgiram. É o caso do Sesc Pompéia de Lina Bo Bardi e o Centro Cultural São Pailo de Eurico Prado Lopes e Luiz Benedito Telles, os apartamentos em formato de esfera de Eduardo Longo ou os projetos de Severiano Porto na Amazônia, feitos com palha e madeira para dialogar com a arquitetura indígena. "Eram projetos contemporâneos que anunciavam o espirito da abertura democrática", diz Wisnik.

Outros nomes, como o espanhol Joan Villà, pensavam em possibilidades de moradias populares feitas em alvenaria armada e tijolos, erguidas pelo trabalho cooperativo e longe dos moldes das construtoras e empreiteiras, segundo o arquiteto. "Urbanistas ligados ao PT passaram a defender a urbanização e manutenção das favelas ao invés de sua remoção para a construção de conjuntos habitacionais à lá BNH."

O que estava fora das cidades deveria ser ocupado. Desbravar um interior supostamente vazio e ocupá-lo era uma ideia antiga das elites brasileiras no século 19, mas ganhou impulso pelo autoritarismo do regime militar, que criou órgãos federais para agir em diferentes estados e municípios, especialmente onde havia potencial de exploração de minérios, como bauxita, cobre e minério de ferro.

Exemplo disso foi o Programa Grande Carajás, no Pará, quando foram descobertas riquezas minerais na Serra dos Carajás. Estradas foram construídas para escoar a produção e a hidroelétrica de Tucuruí fundada para gerar energia à área mineradora.

Na maioria das regiões, já viviam indígenas ou outras comunidades, transferidas arbitrariamente ou empregadas como mão de obra barata nas grandes construções, onde as leis trabalhistas não chegavam. "Ainda mantemos essa lógica extrativista, de violência no manejo de recursos naturais", diz Paula Dedecca, professora da Escola da Cidade e historiadora da arquitetura.

A expansão para o interior estava ligada ao plano militar de segurança nacional, segundo Próspero. "O vazio demográfico era considerado um território politicamente frágil e suscetível à formação, por exemplo, de focos de guerrilha ou à politização de comunidades que poderiam fazer oposição ao regime", diz.

O desenvolvimento defendido pelos militares era excludente, afirma Dedecca. "As construções não emplacaram no desenvolvimento social, na distribuição de renda ou em melhores condições de educação e saúde. Para piorar, não tínhamos imprensa livre ou fiscalização", diz.

A dependência dos empreendimentos freou a diversificação de atividades econômicas nas cidades interioranas. "Uma grande estrutura chegava ao local, com lógica e alojamentos próprios, ignorando o modo de vida e de produção que existiam ali", diz Próspero. Exemplo é a usina hidrelétrica de Itaipu, gênese do Movimento de Atingidos por Barragens após a desterritorialização de mais de três mil pessoas

Os ganhos das construções eram drenados para polos econômicos como São Paulo, onde ficavam a maior parte das empreiteiras e escritórios de engenharia que abocanharam o filão de mercado relacionado à execução das obras de infraestrutura.

Mas não só. "Governar é abrir estradas", já dizia o presidente Washington Luís durante as eleições de 1920, e o lema foi levado a ferro e fogo depois de 1964, especialmente nas cidades, onde pipocaram ruas e avenidas.

Exemplos são a avenida Paralela, em Salvador, e o elevado Perimetral, no Rio de Janeiro, que passava pela zona Portuária acima da avenida Rodrigues Alves e que foi demolido em 2014 por não harmonizar com a urbanização da área.

"Fazer estrada é fácil. Você desmata e asfalta. Era um ganho fácil para as empreiteiras e um pacto com as empresas automobilísticas", diz Prospero. Em São Paulo, o elevado Presidente João Goulart, conhecido como Minhocão, que liga o centro à Barra Funda, ainda é um símbolo polêmico da cidade que sufoca tudo embaixo de si e polui com pó e barulho os prédios por onde serpenteia.

Elevados que cortam cidades pelo alto não são uma criação brasileira, lembra Wisnik. Exemplo é a Cross Bronx Expressway, que corta a cidade de Nova York. Outras metrópoles americanas como Los Angeles, Dallas, Atlanta e Houston implementaram construções similares para favorecer o transporte viário.

Desde 2013, a associação Parque Minhocão defende que a via se transforme em um espaço de lazer para as pessoas. O fechamento total do elevado não foi aprovado devido ao risco de piora do trânsito na cidade, mas aos finais de semana, feriados e à partir das 20h dos dias úteis, carros não passam mais na via.

Nesses dias, o Minhocão é povoado por pessoas que querem tomar sol e socializar, e o chão cinza se transforma em uma espécie de praia urbana.

"É outra modalidade de parque, é um parque de pessoas. Só quem mora em São Paulo entende porque estendemos uma canga no asfalto. Pode ser que no futuro essa romantização seja um absurdo, mas agora esse espaço foi ressignificado", diz Felipe Morozini, ativista e morador da região há 25 anos.

Entre as conquistas da associação estão o levantamento das laterais do elevado para mais segurança, a construção de escadas para acesso de pedestres e banheiros. No ano passado, a Secretaria de Turismo paulista assumiu a zeladoria do Minhocão. "Significa que ele se tornou um ponto turístico", comemora Morozini.

O que mais incomoda quem vive nos arredores da estrutura é a poluição —não só aquela gerada pelo escapamento dos carros, mas também a sonora. "É um caso de saúde pública ali. Temos problemas respiratórios e de nervos."

As áreas de lazer em São Paulo não precisavam ser de asfalto e concreto. A topografia da cidade contava originalmente com dezenas de córregos e rios, que poderiam ter sido transformados em parques lineares —áreas verdes nas margens dos rios que absorveriam a água em momentos de cheia e também aumentariam a umidade do ar, diminuindo o calor e melhorando os índices de precipitação.

Debaixo do asfalto paulistano ainda há rios e córregos, enterrados vivos desde meados de 1930, quando propostas de parques e pontes perderam espaço para as canalizações defendidas pelo prefeito-engenheiro Prestes Maia.

A solução para o relevo da cidade foi pavimentar rios e construir sobre eles avenidas, como é o caso da 9 de Julho, que cruza a Paulista por baixo. "O olhar hegemônico [da época] era de que a tecnologia faria com que o homem vencesse os limites impostos pela natureza", explica Luciana Travessos, professora de Planejamento Territorial da UFABC.

Foi entre 1970 e 1980, porém, que a maioria dos rios e córregos da cidades foram tampados, através de verbas do Plano Nacional de Saneamento Básico e do próprio BNH. "Era um jeito de usar as verbas de drenagem para construir sistema viário. Onde tivesse um córrego ele seria canalizado e uma avenida seria construída, ainda que ela não tivesse nenhuma função estrutural na cidade", diz Travessos.

A prática continuou como regra urbanística mesmo após a redemocratização. "Quando os recursos aparecem, é isso que a prefeitura e as empresas de construção sabem fazer, é o que as pessoas têm como modelo."

As precipitações intensas devem aumentar com o agravamento das mudanças climáticas, e repensar a relação entre os rios e a cidade será uma urgência, alerta Renato Anelli, pesquisador do Cidades, Infraestrutura e Adaptação às Mudanças do Clima, iniciativa do CNPq, FAPESP e Mackenzie.

O soterramento de rios e córregos também aconteceu em Porto Alegre, que passa pela crise das enchentes com as chuvas intensas no Rio Grande do Sul. Ainda que os alagamentos sejam causados por uma série de fatores, como o relevo do estado, a alta precipitação decorrente das mudanças climáticas e falhas administrativas do governo estadual, o asfaltamento da natureza também entra na lista de causas do desastre.

"A tragédia no RS é resultado de um sistema que ruiu. Entre os fatores podemos apontar a destruição de matas ciliares, das nascentes de arroios e aterros, a canalização de córregos e a ocupação de várzeas", diz Inês Martina Lersch, urbanista, professora pesquisadora da UFRGS.

Lersch caminhava pelas poucas ruas secas de Porto Alegre quando águas turvas voltaram a inundar a cidade, dessa vez subindo pelos bueiros. "A água pede reintegração de posse", diz. "Quando as bombas que têm a função de drenagem pararam de funcionar, qual foi um dos caminhos da água? O leito do antigo riacho, que passa pela rua João Alfredo em direção a Washington Luiz."

O sistema de diques da cidade, obra gigantesca que há 50 anos implementou nas margens dos rios Gravataí e Guaíba muros e comportas para evitar que a água entre na cidade, não foi suficiente para barrar as águas encorpadas pelas chuvas de intensidade fora do comum.

No caso de São Paulo, mesmo com a popularização das discussões ambientais à partir de 2000, Anelli alerta que o tapeamento de córregos ainda é comum nas periferias. "Tampar o rio é como jogar sujeira debaixo do tapete. Você não sente o cheiro de esgoto, não precisa tratar", diz.

"A paisagem produzida [durante da ditadura] é, de modo hostil e bruto, o resultado de um sistema econômico pouco humanizado", diz Prospero. Se as paisagens são representações espaciais de como nos organizamos socialmente, a crise ambiental pede por uma nova relação com o território.

PAISAGEM E PODER: CONSTRUÇÕES DO BRASIL NA DITADURA

Quando Ter. a dom., das 10h às 18h. Até 30 de junho

Onde Centro MariAntonia – r. Maria Antônia, 294, São Paulo

Preço Grátis