O Brasil vive uma das mais graves crises de saúde pública de sua história recente. A explosão de casos de dengue em 2024 – mais de 6,6 milhões, um aumento de 300% em relação ao ano anterior – não é um episódio isolado, mas o reflexo de uma série de fatores interconectados: mudanças climáticas, desigualdade social e fragilidade no planejamento urbano. O impacto é de tal magnitude que o número de mortes pela doença, 6.103 no último ano, superou o de vítimas da Covid-19 no mesmo período.
A crise climática é um elemento central nessa equação. O aumento das temperaturas globais ampliou as condições ideais para o Aedes aegypti , mosquito transmissor da dengue, chikungunya e zika. Antes limitado a regiões tropicais, o vetor expandiu sua atuação para áreas antes protegidas por temperaturas mais amenas, como o Sul do Brasil, onde cidades como Florianópolis enfrentaram epidemias pela primeira vez na última década. “Estamos perdendo o clima como aliado”, alerta Ana Cristina Vidor, gerente de vigilância epidemiológica da capital catarinense.
A dengue não é mais uma doença sazonal; tornou-se permanente e, em muitos casos, epidêmica o ano inteiro. Essa mudança está intrinsecamente ligada às alterações climáticas globais, que potencializam chuvas intensas seguidas de ondas de calor – o ambiente ideal para a proliferação do mosquito. Dados do AdaptaBrasil apontam que, se as tendências atuais de aquecimento continuarem, 50% dos municípios brasileiros estarão em risco alto ou muito alto para arboviroses até 2030. Esse número deve crescer para 53% até 2050, ampliando ainda mais os desafios.
Desigualdade Social: A Base da Crise Sanitária
A expansão da dengue não pode ser entendida apenas pela lente do clima. As condições estruturais do Brasil – marcadas pela desigualdade social e urbana – formam o substrato perfeito para o avanço da doença. A coleta irregular de lixo, a falta de saneamento básico e a urbanização desordenada criam o ambiente ideal para o Aedes aegypti se reproduzir. Como destaca a bióloga Camila Lorenz, “municípios mais desiguais têm maior potencial de infestação. Neles, o lixo acumulado e o armazenamento inadequado de água geram criadouros para o mosquito”.
Além disso, a mobilidade populacional – impulsionada por estradas e vias que conectam regiões antes isoladas – contribui para a disseminação de novos sorotipos do vírus. A chegada do DENV-3 ao Brasil em 2024, após 17 anos de ausência, destaca o impacto dessa circulação. Esse sorotipo, considerado mais virulento, representa um risco maior de quadros graves, especialmente em populações previamente expostas aos sorotipos 1 e 2, endêmicos no país.
O contexto é ainda mais alarmante quando se considera a sobrecarga do Sistema Único de Saúde (SUS). “Epidemias desafiam serviços de saúde já operando no limite, principalmente em regiões com maior dependência do SUS”, observa o infectologista Gerson Salvador. A dengue sobrecarrega tanto a atenção básica – com diagnósticos e observações de casos leves – quanto a alta complexidade, necessária para tratar complicações graves como hepatites, problemas neurológicos e cardíacos.
Mudanças Climáticas e o Avanço da Doença
A ligação entre o avanço da dengue e as mudanças climáticas não é apenas especulativa; ela é sustentada por estudos robustos. Pesquisas do Observatório de Clima e Saúde da Fiocruz, publicadas na Scientific Reports , mostram que anomalias térmicas – períodos de temperaturas acima da média histórica – são os principais fatores por trás do aumento de casos da doença. Além disso, áreas antes protegidas pela altitude, como a Zona da Mata mineira, agora enfrentam surtos frequentes, um indicativo de que o Aedes aegypti está “subindo as montanhas”.
Esse novo padrão de proliferação demonstra a complexidade do desafio. O mosquito, cuja reprodução ocorre entre 18°C e 33°C, encontra no Brasil condições climáticas ideais para a transmissão quase constante do vírus. Estudos mostram que um aumento de 1°C na temperatura média encurta o ciclo de vida do vetor em dois dias, acelerando sua reprodução e potencializando o impacto de epidemias sucessivas.
O Desafio da Vacinação: Uma Solução Longe do Alcance
A vacina contra a dengue tem sido amplamente discutida como uma possível solução para o problema. Contudo, a imunização em larga escala ainda está distante. A vacina Qdenga, disponível no SUS, é restrita a crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos, enquanto a Butantan-DV, desenvolvida pelo Instituto Butantan, só deve alcançar produção suficiente para vacinação em massa a partir de 2027. A escala de produção e a aprovação regulatória permanecem desafios significativos.
Enquanto isso, iniciativas preventivas ganham protagonismo. Programas como Saúde na Escola, que mobilizam comunidades escolares para combater criadouros, e a aplicação de inseticidas com ação prolongada em áreas de risco, são fundamentais para conter a expansão da doença. No entanto, esses esforços esbarram em uma realidade de infraestrutura insuficiente e conscientização limitada, especialmente em comunidades vulneráveis.
Uma Doença que Reflete um Sistema em Colapso
A expansão da dengue não é apenas um problema de saúde pública; é um espelho das vulnerabilidades sistêmicas do Brasil. O país enfrenta não apenas o impacto imediato das epidemias, mas também os efeitos de longo prazo da negligência estrutural, das desigualdades sociais e da crise climática. O Aedes aegypti prospera em um ambiente que combina altas temperaturas, urbanização desordenada e um sistema de saúde sob pressão constante.
Para enfrentar esse cenário, especialistas apontam que a prevenção ainda é o caminho mais eficaz. “Agir com os agentes nas ruas é atrasar e achatar a curva de casos”, defende Ana Cristina Vidor. Investir em saneamento básico, coleta regular de lixo e educação comunitária são passos fundamentais para reduzir o impacto da doença no curto e no longo prazo.
Em última análise, a crise da dengue no Brasil é mais do que um problema sanitário; é um chamado para a transformação estrutural. Combater o mosquito é enfrentar, ao mesmo tempo, as raízes profundas da desigualdade e os desafios da emergência climática. Sem uma abordagem integrada e sistêmica, a luta contra a dengue continuará sendo, como é hoje, uma batalha desigual em um terreno em constante transformação.
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