Foi no início da tarde de 26 de fevereiro que o Brasil soube da chegada da pandemia do novo coronavírus por aqui. O primeiro caso confirmado foi em São Paulo e se tratava de um homem, de 61 anos, que havia viajado para a Itália. Pouco menos de um mês depois, em 17 de março, foi registrada a primeira vítima brasileira da covid-19.
O prognóstico inicial para o enfrentamento da pandemia no maior país da América Latina era positivo. A começar pelo fato de o Brasil ter tido quase quatro semanas para se preparar para a chegada do vírus, que em fevereiro já tinha atingido em cheio a Ásia, a Europa e a América do Norte.
Em segundo lugar, a existência e a capilaridade do Sistema Único de Saúde (SUS), com sua estratégia de atenção básica referência no mundo, poderiam garantir um atendimento universal em todas as regiões do país. Acrescenta-se a isso a expertise dos profissionais de saúde brasileiros que nos últimos anos já enfrentaram epidemias de malária, dengue, H1N1 e zika vírus.
Toda essa experiência adquirida pelo SUS em suas três décadas de atividade tinha potencial para fazer do Brasil uma referência no combate à covid-19. Mas uma série de falhas em implementar medidas de isolamento efetivas, disputas políticas e minimização da gravidade da doença ajudaram a colocaram o país em segundo lugar em número de casos confirmados e óbitos, perdendo apenas dos Estados Unidos.
Nesta quarta-feira, 15, o Brasil completa exatos dois meses sem ministro oficial da Saúde, depois da queda de dois responsáveis pela pasta no governo de Jair Bolsonaro — Luiz Henrique Mandetta, que foi demitido em 16 de abril, e Nelson Teich, que pediu exoneração em 15 de maio.
O ministro interino, general Eduardo Pazuello, é militar e não tem formação médica. Desde que assumiu a chefia da Saúde ele não concedeu nenhuma entrevista coletiva para a imprensa, nem fez aparições públicas, enquanto a pasta tentava reduzir a transparência dos dados da doença.
Primeira onda sem fim
Quase cinco meses depois do primeiro registro do novo coronavírus, o país já tem 1.939.167 infectados confirmados e 74.445 mortes. Na maior parte dos estados, não há sinais de que a pandemia está arrefecendo, segundo análise feita pela EXAME (veja mais ao longo deste especial).
Segundo dados do Ministério da Saúde, pelo menos desde a semana epidemiológica 21, que foi entre 17 e 23 de maio, a média dos registros diários de mortes pela doença ficam na casa dos mil. Semanalmente, são cerca de 7 mil vidas perdidas.
A reportagem escolheu usar os números de mortalidade em praticamente todos os gráficos por eles serem considerados por epidemiologistas como os mais precisos, já que o Brasil é um dos países do mundo que menos testa proporcionalmente à sua população.
Atualmente são realizados 15 mil testes por milhão de habitantes, contra 105 mil nos EUA. Apesar de os dados de óbitos serem melhores, há também falhas nesse registro, já que normalmente há um atraso nos registros.
Mesmo com os números altos da doença no país, diversos estados já estão em um processo acelerado de reabertura de atividades.
“A covid-19 está se espalhando de forma heterogênea pelo Brasil e em um processo de interiorização, porque há um fluxo de pessoas indo e vindo que não foi interrompido”, diz Maria Amelia Veras, medica epidemiologista, professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP e membro do Observatório Covid-19 BR.
De acordo com o gráfico abaixo, das cinco regiões do Brasil, apenas os dados dos estados do Norte (PA, AM, AP, RO, RR, AC e TO) mostram uma certa estabilização nas mortes em decorrência do novo coronavírus. Neste momento da pandemia, há uma grande preocupação com as regiões Sul e Centro-Oeste, que inicialmente não foram tão atingidas, mas com a reabertura acelerada, os índices têm crescido.
Epicentro segue sendo São Paulo
Desde o início da pandemia, São Paulo figura como o epicentro nacional da covid-19 no Brasil. Nas últimas três semanas, o estado tem registrado menos óbitos em decorrência da doença, com exceção desta terça-feira, 14, que foi o 2º pior dia nas estatísticas, com 417 óbitos.
De fato, é possível observar uma tendência de platô no estado, como tem dito o governador João Doria (PSDB), em suas entrevistas coletivas diárias. Essa estabilização, no entanto, está na casa das 300 vítimas por dia — o que equivale à queda de um avião de passageiros todos os dias, e camufla uma alta expressiva no interior.
Segundo projeção do diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, a curva epidêmica, não só em São Paulo, mas em todo o Brasil só deve começar a ter uma inflexão em outubro e novembro, com possibilidade de se estender para 2021.
“A taxa de transmissão do vírus só vai chegar no ideal, que é 1 [uma pessoa infectada só transmite para mais uma], no final de outubro, o que leva a pandemia para o ano que vem. Nesse momento é que estão as grandes questões: nós vamos manter essa situação durante um bom tempo com a mortalidade, apesar de estável, estar em patamar elevado?”, afirmou Covas em um webinar promovido nesta terça-feira, 14, pela Agência Fapesp.
No gráfico abaixo, pode ser observada uma certa estabilidade nos dados da covid-19 principalmente na capital. No entanto, ainda é preciso cautela diante do processo de reabertura. Além disso, é necessário que se faça uma estratégia efetiva de rastreamento da população, para isolar casos suspeitos e informar os riscos da falta de distanciamento social para quem apresenta sintomas.
Avanço nos estados
Quase a metade dos 26 estados brasileiros mais o Distrito Federal ainda registram forte alta nas mortes pelo novo coronavírus, como mostra o gráfico a seguir. Desses, a maioria está localizado no Sul e Centro-Oeste, as duas regiões de maior atenção atualmente pelo avanço da doença.
Há uma preocupação também com a Bahia, que vem batendo recordes de mortes na última semana. A reportagem não conseguiu compilar apenas os dados de Mato Grosso, uma vez que a secretaria de Saúde não disponibiliza as informações detalhadas.
De acordo com os números, é possível observar uma forte estabilização nos óbitos apenas em regiões que no início da pandemia já foram profundamente atingidas, como é o caso do Rio de Janeiro, Amazonas e Ceará.
Além das situações já citadas, de alta e estabilização, há ainda os estados em que ainda não é possível determinar se a doença segue avançando ou se já está regredindo. A expectativa é que daqui a duas semanas seja possível observar com mais precisão o comportamento da pandemia nessas regiões.
Todos os dados dos estados foram extraídos do portal Observatório Covid-19 BR, uma iniciativa colaborativa de pesquisadores brasileiros de áreas diversas para a disseminação de informação sobre o vírus. Essa foi a fonte escolhida por disponibilizar os dados detalhados por estados. Os dados foram elaborados a partir da base SIVEP-gripe, do dia 08 de julho.
Comparação internacional
No mundo, a pandemia do novo coronavírus já deixou ao menos 13,6 milhões de pessoas infectadas e 584 mil mortos. Estatísticas disponíveis no site Worldometers, que monitora o avanço da doença mundialmente, revelam que a Índia está registrando cada vez mais casos confirmados, mas ainda não conseguiu ultrapassar os líderes do ranking (EUA e Brasil).
O país mais populoso do mundo, com 1,3 bilhão de habitantes, contabilizou na última semana uma média diária de 27 mil novas infecções, enquanto o Brasil teve 37 mil e os EUA está na liderança disparada com 62 mil.
Futuro da pandemia
Pesquisadores brasileiros têm dito que a resposta para a pergunta sobre o futuro da pandemia do Brasil vale um milhão de dólares. “Ninguém sabe isso, nós podemos entrar em um sobe-desce. É possível subir de novo, mesmo antes de cair completamente“, diz Paulo Inácio Prado, professor e pesquisador do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da USP e também membro do Observatório Covid-19 BR.
Esse cenário pode ser observado no gráfico abaixo, que compara quatro capitais — duas em queda nos óbitos da covid-19 e duas em alta. Rio de Janeiro e Manaus, que inicialmente foram muito impactadas e registraram inclusive um colapso na saúde nos momentos mais delicados da propagação da doença, agora estão com o índice em queda. Ao passo que Salvador e Curitiba começam agora a ter altas diárias nas mortes — e não se sabe até onde isso pode chegar.
Além da incerteza, nos últimos dias, uma discussão sobre a possibilidade de o Brasil ter alcançado uma imunidade coletiva (a conhecida imunidade de rebanho) tomou conta da imprensa e das redes sociais. O termo é usado pra definir uma situação, em que grande parte da população já teve contato com o vírus e portanto está imunizada, o que impede o surto de se alastrar.
Os estudiosos do tema, contudo, refutam quaisquer possibilidade de estarmos próximos desta realidade. Primeiro, porque a dinâmica ainda incerta sobre o novo coronavírus impede que se conheça qual o percentual necessário para a imunidade coletiva. Mesmo que se tenha uma estimativa, que atualmente gira em torno de 50% a 80% da população, os dados disponíveis sugerem que a maior parte das cidades brasileiras só tem cerca de 10% da população imune.
No início da semana, o diretor para doenças infecciosas da Organização Pan-Americana de Saúde, Marcos Espinal, alertou o Brasil que adotar essa proteção coletiva para combater a transmissão da doença é uma estratégia equivocada. “Não recomendamos. O custo — de vidas humanas, econômico e de saúde — é muito alto”, disse.
Com todas as incertezas deste cenário, os cientistas e pesquisadores seguem recomendando o distanciamento social, uso de máscaras e higiene como a melhor forma de conter o contágio pela doença.
Para o Brasil, seria urgente algum tipo de coordenação nacional para garantir a vigilância e o rastreamento dos casos diante da reabertura das atividades econômicas. Sem isso, o país seguirá navegando às cegas e perdendo vidas que poderiam ser salvas na maior pandemia em um século.