No último ano, a pandemia trouxe novos desafios para o campo da bioética, caracterizado como o estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e atenção à saúde. Com a missão de auxiliar equipes médicas na tomada de decisão envolvendo casos clínicos complexos, os comitês de bioética hospitalar têm oferecido subsídios para qualificar discussões envolvendo a alocação de recursos em um contexto de colapso dos sistemas de saúde, bem como assumido novas atribuições, entre elas a criação de pareceres com sugestões para organizar a distribuição de vacinas entre a população. Apesar da sua importância, essas comissões estão presentes em menos de 10% dos hospitais brasileiros, conforme estudo de pesquisadores da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e da Faculdade Regional da Bahia (Unirb). O Brasil contava com cerca de 6,7 mil hospitais em 2019, segundo a Confederação Nacional de Saúde (CNS).
O médico e bioeticista Reinaldo Ayer de Oliveira, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenador do grupo de pesquisa Bioética, Direito e Medicina da instituição, esclarece que, historicamente, as comissões de bioética hospitalar auxiliam os profissionais em situações-limite do contexto clínico, em especial em processos de fim de vida, dando suporte à tomada de decisão. Ele conta que as primeiras comissões de bioética hospitalar surgiram nos Estados Unidos, nas décadas de 1960 e 1970, e sua proliferação remonta aos anos 1990. Mais tarde, em 2005, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos motivou sua disseminação para outros países.
“No Brasil, essas comissões ainda são escassas porque não temos uma norma indicativa do Conselho Federal de Medicina [CFM] ou obrigatoriedade na forma de lei para sua constituição, como ocorre nos Estados Unidos”, compara o pesquisador, também secretário da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e membro do comitê de bioética do Hospital do Coração (HCor), em São Paulo. Em 2017, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) fez um levantamento que indicou a existência de 967 hospitais no estado, dos quais apenas 18 contavam com comitês de bioética. O Conselho Federal de Medicina publicou um documento em 2015 que “recomenda a criação, o funcionamento e a participação dos médicos nos comitês de bioética”. Já em 2020, a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), considerando o aumento de casos graves de Covid-19, aconselhou o reforço do trabalho das comissões de bioética hospitalar.
Um dos autores do estudo que fez uma revisão sistemática da literatura para avaliar a participação de comitês de bioética na resolução de conflitos hospitalares no Brasil, o médico Mário de Seixas Rocha, da Bahiana, identificou que algumas instituições de saúde resistem à criação das comissões por causa do receio de que elas passem a fiscalizar e punir eventuais equívocos na atividade médica. Compostos por profissionais da área de saúde, como médicos, psicólogos e enfermeiros, além de advogados, filósofos, sociólogos, entre outros, os comitês podem desempenhar função deliberativa ou de aconselhamento, debatendo conflitos por meio de abordagens transdisciplinares. “A existência desses grupos nas instituições de saúde alivia o estresse que recai sobre os profissionais da área médica, especialmente nesse momento da pandemia, em que decisões sobre a vida ou a morte são tomadas diariamente”, destaca ele, lembrando que nos Estados Unidos e no Canadá 90% dos hospitais têm comitês, enquanto no Japão o percentual equivalente é de 50%. Rocha cita artigo publicado na Revista Bioética, em 2014, que informa que na prática de países europeus como Alemanha, Itália e Holanda as estruturas dos comitês de bioética, denominados nesses países Clinical Ethics Consultation, foram implementadas por iniciativa oficial do Estado ou por medidas institucionais. “Nesses países, cerca de 80% dos hospitais contam com comitês de bioética”, afirma.
Em um debate que costumava acontecer portas adentro das instituições de saúde e se tornou público com a chegada da pandemia, a alocação de recursos representa uma discussão histórica no campo da bioética, informa o médico Chin An Lin, presidente do comitê de bioética da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas (HC) da FM-USP. Um dos primeiros do país, o comitê do HC foi fundado em 1996 para discutir questões conceituais que podem ajudar a fundamentar normas institucionais. Outras experiências pioneiras foram as dos grupos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, constituído em 1993, e do Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), de 1997. No comitê do HC, um debate tradicional envolve o encaminhamento de demandas para tratamentos excepcionais e caros de indivíduos, que podem consumir recursos destinados a áreas que atendem a um número maior de pessoas. “A chegada da pandemia escancarou problemas históricos relacionados ao acesso da população ao sistema de saúde, além de trazer novos desafios para os comitês”, avalia Lin, um dos autores de artigo publicado em 2020 na revista Clinics para propor referenciais teóricos à tomada de decisão no atendimento a pacientes e para alocação de recursos de saúde.
Ponto crítico no atendimento a pacientes graves de Covid-19, a organização do acesso a leitos de UTI tem sido uma dessas adversidades. Lin explica que, no início da pandemia, a rapidez de resposta do HC para criar novas vagas em UTI permitiu atender à demanda por cuidados intensivos. Mas atualmente, com a possibilidade de superlotação desses leitos, há a necessidade de estabelecer novos critérios de prioridade. A situação mobilizou debates entre os membros do comitê, que procurou definir a forma mais justa de distribuir os recursos do hospital a partir discussões bioéticas, que envolvem os princípios da autonomia, justiça, não maleficência – ideia de que nenhum mal deve ser feito ao outro – e beneficência, que consiste na prática do bem. De acordo com ele, diante de um cenário de saturação do sistema de saúde, foi feita a proposta de adoção de um critério que leve em consideração, além da gravidade do quadro, as chances reais de sobrevivência. O pesquisador explica que o comitê do HC dispõe de dois mecanismos para lidar com conflitos bioéticos. O primeiro é um sistema de atendimento imediato para resolver situações de urgência, enquanto o segundo envolve decisões para casos clínicos ou situações não urgentes, que necessitam de uma reflexão mais ampla e para os quais os pareceres são emitidos no prazo de até um mês. “Se o paciente com poucas chances de sobreviver permanece por 10 dias na UTI, esse leito ficará indisponível para outras pessoas com mais possibilidades de sobrevida”, exemplifica. “Por causa disso, em uma situação de absoluta falta de leitos de cuidados intensivos, propomos que, além da gravidade do quadro, se devem considerar as possibilidades de o paciente voltar para uma vida produtiva na sociedade. É uma discussão muito dolorosa, a famosa ‘escolha de Sofia’”, afirma Lin. O médico refere-se ao célebre romance do norte-americano William Styron (1925-2006), A escolha de Sofia (1979), que conta a história de uma polonesa presa com um casal de filhos pequenos no campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial. Ela deveria escolher apenas uma das crianças para ser salva da execução ou ambas morreriam, obrigando-a a uma terrível decisão.
Com pesquisas no campo da bioética desde 1996, o teólogo Mário Antonio Sanches, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), explica que, diante da escassez de leitos, a escolha pelo paciente com mais chances de sobrevivência pode ser justificada a partir de diferentes escolas de bioética, desde que não se defenda que a vida de um é mais digna do que a de outro. “O desafio de um comitê de bioética hospitalar é conciliar a afirmação da dignidade de cada pessoa com a necessidade de utilização racional de recursos escassos”, esclarece o teólogo, autor de artigo escrito em conjunto com outros pesquisadores da PUC-PR que identificou as contribuições da bioética para enfrentar conflitos em tempos de pandemia.
O médico Sérgio Rego, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp-Fiocruz), observa, por outro lado, que ainda não há estudos que comprovem uma correlação direta entre a gravidade dos doentes de Covid-19 e seu prognóstico. “Os conflitos bioéticos surgem em debates sobre direitos individuais e interesses coletivos. Para resolver esses dilemas, é preciso encontrar razões que justifiquem quem deve sair perdendo”, reflete o pesquisador, que coordena um grupo temático sobre bioética na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Com base no princípio utilitarista, profissionais da área médica também têm tido prioridade na ocupação de leitos, de acordo com o farmacêutico e advogado Gustavo da Cunha Lima Freire, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “Segundo essas diretrizes, profissionais da saúde devem ser prioritários porque quando voltam a trabalhar beneficiam toda a sociedade”, elucida.
Fonte: REVISTA FAPESP