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Com 9 mulheres ativistas, Anistia Internacional promove maior campanha de direitos humanos do mundo

Publicado em 08 março 2019

Por Jucimara Tarricone e Cassiano Bovo

Conheça 9 mulheres ativistas que estão mudando o mundo

“Os direitos humanos são os direitos que estão na base de tudo, são os alicerces de uma sociedade aberta e inclusiva” (Vitalina Koval) [2]

A propósito do Dia Internacional da Mulher, lembramos que a atual edição da Campanha Escreva por Direitos 2018 da Anistia Internacional, de forma inédita, é dedicada exclusivamente às mulheres; iniciou-se oficialmente em 10 de outubro de 2018 – com o ápice no dia 10 de dezembro, aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos – e encerra-se exatamente no especial 8 de março [3].

A Campanha Escreva por Direitos (conhecida também como Maratona de Cartas) existe desde 2003 para reforçar o DNA de uma organização que nasceu escrevendo missivas no rastro da Campanha Appeals for Amnesty (Apelos por Anistia), lançada por Peter Benenson no artigo intitulado The forgotten prisoners (Os prisioneiros esquecidos), publicado em 28 de maio de 1961 no jornal londrino The Observer, acontecimento que levou à criação da Anistia Internacional.

As cartas continuam a ser escritas, sobretudo no âmbito da Rede de Ações Urgentes, mas já sob efeito de outra moldura tecnológica; em geral, preenchendo-se os dados em sites (com geração automática de um apelo) ou por meio de e-mail, sempre instando autoridades a pararem com as violações, respeitarem direitos, realizarem investigação, punirem os culpados etc. Porém, durante a Escreva por Direitos se faz como originalmente: escrevendo-se cartas ou cartões postais, inclusive para as próprias vítimas ou seus familiares [4].

As nove mulheres (além das indígenas do povo Sengwer, do Quênia) escolhidas nesta edição, em diferentes pontos do planeta, têm outra característica que as une além da questão da identidade de gênero: todas são defensoras dos direitos humanos. Isso é significativo para um país como o Brasil, dos mais perigosos para essas pessoas e mais, uma das mulheres escolhidas é Marielle Franco.

Vejam as consequências da luta dessas mulheres, quando não assassinadas, como o caso da vereadora do Rio de Janeiro.

Nawal Benaissa, no Marrocos, recebeu uma pena de 10 meses de liberdade vigiada e multa, foi presa quatro vezes, assediada, perseguida, teve que mudar de cidade e obrigada a excluir seu perfil no Facebook.

Atena Daemi, no Irã, foi presa duas vezes e condenada a sete anos de prisão num julgamento que durou 15 minutos, repleto de acusações forjadas. Geralmente encarcerada em precárias condições, sofreu várias torturas, com graves repercussões para sua saúde, além da recusa de atendimento médico.

Me Nãm, blogueira vietnamita conhecida como Mother Mushroom (Mãe Cogumelo) foi condenada a 10 anos de prisão num julgamento injusto e vivencia condições precárias na prisão, com repercussões sobre sua saúde.

Pavitri Manjhi, na Índia, recebe ameaças de vários homens para que retire suas reclamações formais no processo de luta do povo Advasi contra empresas que querem construir duas usinas de energia em suas terras ancestrais.

Vitalina Koval, na Ucrânia, foi violentamente atacada em duas marchas relativas às mulheres e sua luta pela causa LGBTI.

Geraldine Chacon, na Venezuela, sofre perseguições por parte das autoridades governamentais pelo seu trabalho de empoderamento de jovens. Foi presa durante quatro meses, está proibida de sair do país e pode vir a ser encarcerada a qualquer momento.

Gulzar Diushenova, no Quirguistão, continua a sofrer inúmeras dificuldades e restrições por viver numa cadeira de rodas depois que sofreu um acidente de carro.

Nonhle Mbuthuma, na África do Sul, sofre intimidações e ameaças, inclusive já tendo sobrevivido a uma tentativa de homicídio.

As mulheres da comunidade indígena Sengwer, no Quênia, são as que mais sentem o processo de expulsão, perseguição e discriminação que esse povo sofre.

Tudo isso atenta frontalmente a Declaração Universal, por. ex., o artigo 9º (“Ninguém será arbitrariamente, preso, detido ou exilado”) assim como o 10º (“Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”).

Como lutaram e se manifestaram essas mulheres? Denunciaram as mais variadas violações de direitos, lutam contra injustiças, sempre de maneira pacífica, participando de manifestações e protestos públicos, marchas, redes sociais (blogs, Facebook, sites, Twitter, Instagran etc.), na mídia, no trabalho parlamentar, escrevendo livros e publicando materiais, dentre outros.

Tudo dentro do espírito do artigo 19º da Declaração Universal (“Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”) assim como o 20º (“1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica”). Mesmo assim, elas são penalizadas e perseguidas. Nota: todos os países da Campanha pertencem à Organização das Nações Unidas, e, portanto, signatários da Declaração Universal.

Defensoras e defensores de direitos humanos sempre foram motivo de preocupação por parte da Anistia Internacional, não à toa, pois a conquista de direitos, seu reconhecimento ou a cessação de violações, para toda a população, passa por essas pessoas; todos se beneficiam quando defensoras e defensores não estão em risco. Tanto que em 9 de dezembro de 1998 (aniversário de 50 anos da Declaração Universal) a ONU adotou a Declaração Universal de Defensoras e Defensores dos Direitos Humanos [5]. E mais: uma das campanhas em curso da Anistia Internacional, chama-se Brave (Coragem), justamente sobre essa questão.

Se, em geral, as mulheres sofrem restrições de direitos, desigualdades, preconceitos, discriminação, pressões e violências as mais variadas, imaginem quando defensoras de direitos, o que as expõem a mais e mais riscos, fora as situações de discriminações conjuntas. Por ex., Marielle Franco: mulher e lésbica (gênero), negra (racismo), pobre nascida na favela (classe). Assim:

“As mulheres defensoras de direitos humanos precisam de um reconhecimento especial pelo trabalho que fazem, de um espaço seguro para trabalhar e de proteção específica para atender às suas necessidades. Como seu trabalho de ponta continua sendo sub-representado e insuficientemente reconhecido pela sociedade convencional, inclusive por políticos e pela mídia, este ano a campanha Escreva por Direitos lança luz sobre as causas e a coragem dessas mulheres” [6].

“As defensoras de direitos humanos que experimentam formas interseccionais de discriminação e desigualdade estrutural estão sob o risco crescente de serem atacadas por causa do que fazem e do que são. A discriminação e opressão podem estar baseadas na idade, sexo, gênero, idioma, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, raça, casta ou classe, identidade indígena, deficiência, religião ou crença, nacionalidade ou outro status. Essas diferentes formas de discriminação podem se sobrepor e interagir levando à intensificação e diversificação das experiências que pessoa vive” [7].

Pensemos nos riscos para um país como o Brasil com essa estarrecedora onda de violências e feminicídios que a toda hora pipocam na mídia, sobretudo no pós-eleições e nos perguntemos: será que aumentou mesmo o sempre já alarmante número de casos ou agora estão tendo mais visibilidade? O Atlas da Violência do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, de 2018, já apontava o salto dos incidentes nesta década em relação à anterior, até 2016.

A atuação dessas mulheres mostra a escalada de violações de direitos em que uma violação (por ex. o direito à manifestação e fazer denúncias) vai levando a outras violações num turbilhão de injustiças que se retroalimentam; um efeito cascata a denotar a indivisibilidade dos direitos humanos.

O artigo 1º da Declaração Universal (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos….”) e o 2º (“Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”) contrastam com a situação em que vive a maioria das mulheres no planeta, que experimentam cotidianamente a discriminação.

O artigo 3º (“Todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”), nos remete a Marielle Franco, pois uma execução extrajudicial (quando é cometida por agentes de segurança ou, quando não é investigada ou solucionada, como é, pelo menos, o caso) é uma pena de morte disfarçada. Mais que isso: Marielle lutava contra o poder das milícias que realizam execuções. Mas, também, Atena Daemi, no Irã, que luta contra a pena de morte no seu país, um dos que mais a utilizam. Segundo a Anistia Internacional, no seu mais recente informe anual, “As autoridades continuaram a executar centenas de pessoas após julgamentos injustos” [8]. E, Nonhle Mbuthuma, na África do Sul, que escapou de uma execução.

O artigo 5º (“Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”) nos remete a Nawal Benaissa (Marrocos), Atena Daemi (Irã), Me Nãm (Vietnã), Geraldine Chacon (Venezuela) e Vitalina Koval (Ucrânia) que sofreram torturas, maus tratos e falta de assistência, inclusive de saúde. Vejam o caso de Atena Daemi:

“Atena Daemi vem sendo mantida em condições insalubres na ala de quarentena da prisão de Shahr-e Rey, nas instalações de uma antiga indústria de frangos. Seu acesso ao exterior é severamente restrito. De acordo com relatórios amplamente divulgados e informações fornecidas à Anistia Internacional, as condições na prisão de Shahr-e-Rey são chocantes e estão muito aquém das regras-padrão mínimas do tratamento a prisioneiros. Os prisioneiros relatam a existência de marcas de urina no chão, chuveiros e banheiros imundos, escassez de leitos e a predominância de doenças contagiosas. Eles também relataram a baixa qualidade dos alimentos, que contêm partículas de pedra, e da água, salobra e não potável” [9].

E de Me Nãm:

“Sua saúde tem se deteriorado de maneira preocupante e ela fez greves de fome em protesto às condições extremas da prisão” [10].

E ela, como Marielle fez no Brasil, também denuncia e luta contra a violência policial no Vietnã.

O artigo 7º da Declaração Universal (“Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”) vai ao âmago da condição dessas mulheres; discriminação é algo praticamente inerente às suas vidas, pelo que sofrem e pelo que lutam. Marielle Franco lutava contra o racismo, a discriminação contra as mulheres e LGBTIs (assim como Vitalina Koval, na Ucrânia) e discriminação contra as pessoas faveladas. Gulzar Diushenova, no Quirguistão, luta (e sofre) pelas pessoas com deficiência no país, pela falta de preocupação governamental com a locomoção nos mais variados espaços, levando a dificuldades para trabalharem e realizarem as mais variadas atividades cotidianas. As Sengwer, que vivem na Floresta do Embobut, no Quênia, sofrem discriminação (como a maioria dos indígenas do planeta) desde o domínio britânico no país, quando começou o processo de expulsão e perseguição que sofrem até hoje, numa escalada de aculturação e não reconhecimento de direitos por parte do governo:

“David Yator Kiptum, coordenador executivo do Projeto de Desenvolvimento Indígena Sengwer (Sengwer Indigenous Development Project – SIDP), uma organização sem fins lucrativos dedicada à defesa e promoção dos direitos dos Sengwer, pinta um panorama alarmante das dificuldades desse povo: ‘Somos discriminados em todos os projetos de desenvolvimento, recrutamento para escolas de capacitação, emprego, e a terra ancestral que nos foi tirada no período colonial, a partir desse momento, foi entregue a integrantes de outras comunidades, funcionários públicos, políticos, etc., sem levar em conta o nosso povo” [11].

Numa sociedade já discriminatória em relação às mulheres, quando sofrendo um processo de desenraizamento desse porte, o fardo que carregam é muito maior. O povo Adivasi (considerados os indígenas, de fato, da Índia), de Pavitri Manjhi, também têm um histórico de discriminação, massacres e violência em geral.

Pavitri Manjhi, Nonhle Mbuthuma e os Sengwer nos remetem aos direitos dos povos de viverem em suas terras ancestrais:

“Se você tirar a minha terra de mim, você vai tirar a minha identidade (…) Esta terra era da minha avó, que a herdou de seus avós. O que eu vou deixar para meus filhos? A mineração não é uma opção” (Nonhle Mbuthuma) [12].

Isso aponta para a luta contra a remoção forçada e ao artigo 17º da Declaração Universal (“1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros; 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”). Embora esse artigo tenha um caráter de direito à propriedade privada,

“Os direitos territoriais dos Povos Indígenas estão reconhecidos na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP, na sigla em inglês). Eles têm o direito de ‘possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional ou de outra forma tradicional de ocupação ou de utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham adquirido” (Artigo 26) [13].

Pavitri Manjhi faz parte de um movimento pacífico de resistência contra a construção de duas usinas de energia nas terras da comunidade onde vive (no Estado de Chhattisgarh, Índia); Nonhle Mbuthuma lidera uma luta contra a exploração de titânio por parte de uma empresa mineradora, o que pode levar à expulsão de aproximadamente 5.000 pessoas da comunidade tradicional Amadiba, onde vive, em Eastern Cape, Província do Cabo, África do Sul.

O artigo 25º (“1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”) nos remete a Nawal Benaissa, Marrocos, e sua luta por um sistema de saúde digno no país.

Depois de conhecermos essas incríveis mulheres, seu sofrimento, sua luta, como nos sentimos quando o líder do partido do governo (Luciano Bivar, do PSL) afirma: “[A política] não é muito da mulher. Eu não sou psicólogo, não. Mas eu sei isso” [14].

Fiquemos então com a fala de uma pessoa muito mais interessante, Marinete da Silva, mãe de Marielle Franco:

“Fico feliz de saber que a vida de minha filha Marielle Franco vai servir de exemplo para as crianças do Brasil e do mundo. Marielle sempre liderou processos transformadores na escola, na igreja, nos projetos em que participou, sempre com o pensamento de ajudar o próximo, acreditando que a organização coletiva de base solidária poderia transformar o mundo. Ao fazer pelo outro ela se sentia bem. Esperamos que mais pessoas sejam assim e lutem como a minha filha pelos direitos humanos” [15].

Jucimara Tarricone é Doutora em Letras, na área de Teoria e Literatura Comparada pela USP e Pós-doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Autora de Hermenêutica e crítica: o pensamento e a obra de Benedito Nunes. São Paulo: FAPESP/EDUSP; Pará: EDUFPA, indicado ao Prêmio Jabuti de Teoria e Crítica Literária, 2012.

Cassiano Ricardo Martines Bovo é doutor em Ciências Sociais e mestre em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e já lecionou, de 1986 aos dias de hoje, em 17 Instituições de Ensino Superior. Atua voluntariamente como Organizador Nacional Estratégico da Anistia Internacional Brasil e no Grupo de Ativismo São Paulo da Anistia Internacional.

 

Notas:

[1] Embora seja ativista da Anistia Internacional, o autor deste artigo escreve na condição de pesquisador. Não pode e não se manifesta em nome da Organização. Todas as informações aqui contidas são de domínio público.

[2] https://www.delas.pt/vitalina-koval-mulher-lesbica-e-moldada-na-revolucao-da-dignidade/

[3] Sobre a Campanha recomendo: https://escrevapordireitos.anistia.org.br/, além do e-book Educação em direitos humanos – guia para educadores, que lá pode ser baixado. Dos dez casos, seis têm guias de EDH, inclusive o de Marielle Franco.

[4] Escrever cartas diretamente para as vítimas e/ou familiares gera um impacto subjetivo que abordo In Bovo, Cassiano Ricardo Martines. Anistia Internacional: roteiros da cidadania-em-construção. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2002.

[5] Com o título formal de Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos.

[6] Anistia Internacional. Escreva por Direitos 2018: e-book educação em direitos humanos – guia para educadores, p. 12.

[7] Op. cit, p. 15.

[8] Anistia Internacional. Informe 2017/2018: o estado dos direitos humanos no mundo, p. 165.

[9] Op. cit., p. 57.

[10] Op. cit., p. 63.

[11] https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/quenia-os-sengwer-uma-cultura-tradicional-a-beira-da-extincao/

[12] Anistia Internacional. Escreva por Direitos 2018 – e-book educação em direitos humanos – guia para educadores, p. 80 e 88.

[13] Op. cit., p. 76.

[14] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/politica-nao-e-muito-da-mulher-diz-presidente-nacional-do-psl.shtml

[15] https://anistia.org.br/noticias/caso-marielle-franco-e-destaque-da-maior-campanha-de-direitos-humanos-mundo/