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Cientistas provam que há conexão entre o sono e a fome (1 notícias)

Publicado em 26 de abril de 2015

A melatonina, hormônio produzido pela glândula pineal, situada no centro do cérebro, é conhecida há tempos por seu papel na regulação do sono. Agora, surgem evidências de que ela também exerce uma ação fundamental no controle da fome, no acúmulo de gorduras e no consumo de energia. "Na ausência da melatonina, ratos desenvolveram doenças metabólicas e se tornaram obesos. Já a reposição do hormônio favoreceu a perda de peso", conta o fisiologista José Cipolla Neto, da Universidade de São Paulo (USP). Ele coordenou uma série de experimentos com animais, realizados em parceria com outros pesquisadores de São Paulo, da França e dos Estados Unidos, que estão demonstrando como a variação nos níveis de melatonina ao longo do dia afeta a ingestão e o gasto de energia, o chamado balanço energético do organismo.

Cipolla e seus colegas começaram a identificar a influência desse hormônio sobre a fome e o acúmulo de energia usando uma estratégia clássica da fisiologia. Segundo essa estratégia, para se conhecer a função de determinado componente em um sistema, é preciso eliminá-lo e observar o que acontece. Por meio de uma cirurgia, eles extraíram a glândula pineal dos animais, extinguindo a produção do hormônio, e acompanharam as mudanças que surgiram. Depois, como se colocassem de volta a peça retirada, reverteram o efeito fazendo a reposição de melatonina via oral e registrando como era afetado o funcionamento de diferentes órgãos e tecidos sobre os quais a melatonina atua. Os experimentos revelaram que o metabolismo energético tem uma organização temporal diária sincronizada pela melatonina.

À medida que escurece, a pineal passa a liberar o hormônio até alcançar uma concentração máxima, inundando o corpo com melatonina. A partir desse pico, que ocorre por volta do meio da madrugada, a concentração de hormônio diminui e permanece baixa durante a manhã e a tarde – os níveis são 10 vezes menores do que à noite. No caso dos seres humanos e de outros mamíferos de atividade diurna, as concentrações mais baixas coincidem com o período de maior atividade. É durante o dia que esses animais se alimentam – ou, ao menos, comem em maior quantidade do que à noite – e estocam mais energia do que gastam.

A energia armazenada na forma de gordura ou de estoques de açúcares durante o dia garante que o organismo continue funcionando à noite, em geral o período de descanso, quando os níveis de melatonina estão altos e o corpo passa horas em jejum. Uma parte significativa dessa energia é usada pelo tecido adiposo marrom – esse tipo de gordura gasta energia, enquanto a gordura branca a armazena – para produzir calor e manter o corpo aquecido num período em que há pouca contração muscular (outra fonte de calor). O consumo de energia pela gordura marrom é tão elevado à noite que, no balanço geral, compensa o que havia sido estocado de dia. Como resultado, o peso praticamente não muda.

"Do ponto de vista evolutivo, essa organização temporal do metabolismo energético deve ter sido fundamental para a sobrevivência dos mamíferos", diz Cipolla, um dos pioneiros no país dos estudos em cronobiologia, área da ciência que investiga como os fenômenos biológicos variam no tempo. Produzir reservas energéticas no período de atividade, conta, pode ter permitido sobreviver em segurança à noite, quando se está em jejum e se dorme, em geral, em ambiente isolado e menos suscetível à ação de predadores.

Nos testes em laboratório Cipolla observou que, depois de algum tempo, os ratos que não produziam melatonina apresentaram distúrbios metabólicos associados ao desenvolvimento da obesidade. Os níveis de açúcar (glicose) e de gorduras (lipídios) no sangue eram mais elevados do que o normal, o que favorecia a estocagem de energia na forma de gordura no tecido adiposo branco e no fígado. Além de ter mais energia disponível para guardar, os animais também passaram a comer mais e fora de hora, além de gastar menos energia. Segundo Cipolla, essas mudanças são efeitos diretos da redução da melatonina, hormônio que, como ele vem demonstrando, auxilia no controle da fome e estimula o tecido adiposo marrom (concentrado ao redor do pescoço, sob as clavículas e ao longo da coluna vertebral) a gastar energia.

Cronorruptura

Sem a melatonina, os animais perdem o padrão de organização rítmica diária do metabolismo. "Ocorre a chamada cronorruptura", explica Cipolla. Como consequência, o cérebro deixa de perceber a saciedade e o apetite aumenta. Assim, come-se mesmo que fora de hora. Para piorar, o organismo gasta menos energia. Se antes os animais acumulavam energia quando estavam acordados e a gastavam durante o repouso, alternando os períodos de estocagem com os de queima de gordura, agora passam a acumular energia o tempo todo e engordam.

Cipolla notou ainda que era possível reverter os efeitos da cronorruptura – que também pode ocorrer pela exposição excessiva à luz (em especial à luz azulada de telas de computador, tablets, celulares e TVs de LED) e, nos seres humanos, pelo trabalho no turno da noite – ao dar melatonina via oral para os animais. "Os roedores que receberam reposição do hormônio perderam peso", conta o pesquisador. Aqueles tratados com melatonina logo após a remoção da pineal não sofreram alterações no metabolismo energético.

A administração do hormônio também gerou um efeito protetor em roedores idosos e obesos, que produzem menos melatonina do que os animais mais jovens e sadios. Num dos testes, os ratos que receberam melatonina por oito semanas ganharam o equivalente a 1,3% de seu peso, enquanto os que receberam apenas água e alimentação usual engordaram 4,7%. Quando o tratamento foi mais longo, as diferenças se acentuaram. O grupo tratado por 12 semanas com uma mistura de água e melatonina perdeu 2% do peso corporal, enquanto o que tomou apenas água pesava em média quase 8% a mais no final do período, segundo estudo publicado em 2013 no Journal of Pineal Research.

Esse trabalho, que Cipolla vem desenvolvendo em parceria com colegas da USP, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do Instituto Butantan e dos Estados Unidos, indica que uma redução importante nos níveis de melatonina, como a observada nos ratos, aumenta a fome e favorece o ganho de peso por duas vias diretas e uma indireta. Níveis mais altos de melatonina, como os liberados à noite, atuam diretamente sobre uma região cerebral chamada hipotálamo inibindo a fome. Portanto, menos melatonina significa um apetite maior. Outro efeito direto da diminuição desse hormônio é uma redução da queima de energia pelo tecido adiposo marrom.

De modo indireto, a redução da melatonina desregula a produção e a ação do hormônio insulina e reduz a produção de leptina pelo tecido adiposo – dois hormônios que também atuam sobre o hipotálamo inibindo a fome. Sem melatonina, ou com níveis muito baixos dela, perdem-se dois dos freios cerebrais do apetite e se gasta menos energia. Estudos experimentais indicam ainda que, na ausência da melatonina, o corpo produz mais grelina, hormônio que induz a fome.

Existe a suspeita de que essa alteração na produção e na ação da insulina inicie um processo de retroalimentação, gerando um círculo vicioso. Animais que produzem menos insulina também secretam menos melatonina, mostrou um experimento usando ratos com diabetes tipo 1, doença que causa uma diminuição importante na produção de insulina. A redução nos níveis de insulina, porém, explicou apenas 20% da queda na produção de melatonina. O que mais influenciou a diminuição nos níveis do hormônio do sono, constataram Cipolla e seus colegas, foram as altas concentrações sanguíneas de glicose (hiperglicemia), comum quando o diabetes não está controlado. Testes feitos com seres humanos já demonstraram que, quanto menor a produção de melatonina à noite, maior a glicemia em jejum.

Esse resultado também levanta a hipótese de que algo semelhante possa ocorrer no diabetes tipo 2, uma forma bem mais frequente da doença – calcula-se que cerca de 10% dos adultos desenvolvam diabetes tipo 2, uma das consequências da obesidade, já considerada uma epidemia no mundo ocidental. Testes feitos com ratos que tinham diabetes tipo 1 e com ratos com diabetes tipo 2 indicaram que a suplementação de melatonina ajudou a sincronizar o metabolismo nas fases de atividade e de repouso, melhorou a ação da insulina e ajudou a regular a ingestão e o metabolismo de lipídios.

Em estudos a serem publicados em breve, Cipolla e sua equipe demonstraram que tratar com insulina e melatonina animais com diabetes tipo 1 permitiu regularizar o ritmo de variação diária da temperatura corpórea, indicando, indiretamente, a superação da cronorruptura e melhoria do quadro geral dos animais. Para Cipolla, esse conjunto de resultados indica que a suplementação de melatonina pode, em determinados casos, desempenhar um papel importante na prevenção e na melhora desses problemas metabólicos. "Em especial se estiverem em uma fase inicial", diz.

Uma das contribuições fundamentais do grupo foi elucidar como a melatonina ajuda o organismo a manter a sincronia temporal com o ambiente.
Já se sabia que a retina, tecido fotossensível que recobre o fundo do olho, envia sinais para o relógio biológico existente no hipotálamo. Este, por sua vez, estimula a pineal a produzir melatonina de noite e inibe a síntese durante o dia. Mas como a melatonina sincroniza o metabolismo ao longo das 24 horas do dia, se ela só é secretada à noite?

Cipolla e seus colegas verificaram que, uma vez lançada no sangue, a melatonina ativa nas células de diferentes partes do corpo um conjunto de genes –os chamados clock genes ou genes do relógio – que agem como sincronizadores periféricos. Eles transmitem a informação do relógio central para todas as células do organismo.

Nas células, esses genes disparam uma cadeia de eventos moleculares que duram cerca de 24 horas e sinalizam o momento em que as diferentes reações metabólicas devem acontecer. Esse mecanismo pode ajudar a entender o padrão de funcionamento dos diferentes órgãos e tecidos do corpo.

Acertando os ponteiros
"A melatonina já é usada para tratar distúrbios do sono e talvez possa ser adotada para ajudar a restabelecer o padrão circadiano de liberação de outros hormônios", diz o endocrinologista Marcio Mancini, da Faculdade de Medicina da USP. É que ela regula o ciclo de produção de hormônios como o cortisol, liberado em situações de estresse; a leptina e a grelina, que regulam a fome; e o hormônio do crescimento, que auxilia na reparação de danos celulares. "Mas ainda é necessário demonstrar que o que se observou em ratos também ocorre em seres humanos", enfatiza Mancini.

Nos últimos anos começaram a surgir evidências de que a melatonina pode auxiliar no controle da glicemia e dos níveis de lipídios e colesterol em seres humanos. Um estudo clínico feito nos Estados Unidos e publicado em 2011 na revista Diabetes, Metabolic Syndrome and Obesity: Targets and Therapy indicou que, em pacientes com diabetes tipo 2 e insônia, a melatonina melhorou o sono após três semanas e auxiliou o controle glicêmico após cinco meses. Outro teste clínico, descrito no Journal of Pineal Research, também em 2011, demonstrou que, após dois meses de tratamento com melatonina, pessoas com distúrbios metabólicos apresentaram redução na pressão sanguínea e nos níveis de colesterol.

Mesmo diante desses resultados, Cipolla é cauteloso e ressalta que não existe solução fácil para os problemas metabólicos. "A melatonina pode se tornar um coadjuvante no tratamento desses distúrbios e talvez tenha um papel especialmente importante na prevenção deles", diz. "Após tantos anos de estudos experimentais, chegou a hora de realizar estudos clínicos bem planejados e adequadamente controlados para testar o papel da melatonina na fisiopatologia metabólica humana."

Ainda há muito trabalho a ser feito. É preciso, primeiro, verificar a eficácia e a segurança da melatonina para tratar esses problemas em seres humanos. Caso de fato funcione, também será necessário alterar a regulamentação sobre a venda desse hormônio no país. Por causa do uso indiscriminado nos anos 1990, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu a comercialização da melatonina, embora seu uso esteja liberado. O próprio Cipolla importa o sal dos Estados Unidos e manipula aqui para seus experimentos – e compra também alguns comprimidos para uso pessoal.

Revista Pesquisa Fapesp