Por Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descobriram que a COVID-19 grave está associada a um desequilíbrio em uma importante via de sinalização do sistema imunológico. A descoberta ajuda a explicar no nível molecular por que algumas pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2 desenvolvem uma inflamação sistêmica potencialmente fatal. Também abre caminho para o desenvolvimento de terapias mais específicas.
Um artigo sobre o estudo, financiado pela FAPESP , está publicado na Frontiers in Immunology .
Os pesquisadores detectaram uma desregulação do sistema imunológico mediada pelo ATP (trifosfato de adenosina), uma das principais fontes de energia para os processos celulares. Pacientes graves com COVID-19 apresentaram níveis mais altos de ATP no sangue e níveis mais baixos de adenosina, que devem aumentar quando o ATP é metabolizado para produção de energia.
“O sistema imunológico é composto por várias vias de sinalização que fornecem alertas em resposta à invasão de um patógeno, por exemplo. Uma envolve o ATP, que desencadeia a liberação de substâncias inflamatórias nas células de defesa para atacar o invasor. O sistema imunológico também tem mecanismos de controle para evitar a inflamação excessiva, mas quando ocorre esse erro na metabolização do ATP, resulta em um grande desequilíbrio e disfunções sistêmicas na resposta imune”, disse Maria Notomi Sato , professora da Faculdade de Medicina da USP e última autora do artigo.
O aumento do ATP não metabolizado, de acordo com o artigo, produz um estado pró-inflamatório e desencadeia uma inflamação sistêmica potencialmente fatal conhecida como tempestade de citocinas. “O estudo apontou um desequilíbrio no sistema de sinalização e uma disfunção na regulação desses componentes, como mais um fator em nível sistêmico que ataca os órgãos de pacientes graves com COVID-19”, disse Sato.
O ATP é constantemente produzido pelas células e é decomposto no meio extracelular por enzimas denominadas ectonucleotidases. “O ATP se transforma em um sinal de perigo quando sai das células em grandes quantidades. Quando isso acontece? Quando uma resposta inflamatória exacerbada é ativada, quando as células são gravemente danificadas ou quando ocorre algum outro dano grave. Em resposta, o ATP desencadeia um processo inflamatório que envolve outras células em uma reação em cadeia”, disse Anna Julia Pietrobon , primeira autora do artigo. Ela é doutoranda no Instituto de Virologia do Hospital Universitário Charité de Berlim, na Alemanha.
Alteração na metabolização do ATP em adenosina
No estudo, os pesquisadores mediram os níveis de ATP e adenosina em amostras de sangue de 88 pacientes graves com COVID-19 coletados em 2020-21. Nenhum dos pacientes havia sido vacinado.
“Descobrimos que as ectonucleotidases da superfície celular que clivam o ATP são menos expressas em células de pacientes com COVID-19 leve e grave, mas particularmente no último. Na verdade, concluímos que quanto maior o nível de ATP, mais grave é a doença”, disse Pietrobon.
Os pesquisadores também investigaram possíveis alterações nas células do sistema imunológico. “Descobrimos que algumas células do sistema imunológico, principalmente os linfócitos B, expressam menos CD39 e CD73, enzimas que quebram o ATP. Os níveis de linfócitos geralmente tendem a ser baixos em pacientes com COVID-19, mas em nosso estudo não apenas os níveis de células B no sangue de pacientes graves foram baixos, mas essas células também expressaram quantidades menores de ambas as enzimas, contribuindo para uma menor metabolização de ATP e, portanto, menor produção de adenosina, o componente antiinflamatório que tentaria regular essa resposta”, disse Pietrobon.
Diante dessa descoberta, os pesquisadores decidiram isolar as células B presentes nas amostras de sangue e fornecer ATP a elas. “Realizamos um experimento in vivo no qual fornecemos ATP a células de pacientes com COVID-19 e controles saudáveis. As células B dos pacientes produziram menos adenosina do que as dos controles saudáveis, possivelmente porque expressaram menos CD39 e CD73”, disse ela.
Vale ressaltar que os pesquisadores ainda não sabem se a alteração na metabolização do ATP causa ou é causada pela resposta inflamatória exacerbada ao SARS-CoV-2. Eles planejam investigar isso em projetos futuros.
Reação sistêmica
Um estudo realizado no Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias ( CRID ) já havia detectado uma ligação entre a COVID-19 grave e a ativação do inflamassoma, que nesses pacientes é exacerbada e não é encerrada após o desaparecimento da infecção ( leia mais em: agencia. fapesp.br/39411 ).
O CRID é um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão ( CEPID ) financiado pela FAPESP e sediado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
O inflamassoma é um complexo proteico dentro das células de defesa. Quando esse mecanismo celular é ativado, moléculas pró-inflamatórias conhecidas como citocinas são produzidas para alertar o sistema imunológico de que mais células de defesa precisam ser enviadas ao local da infecção.
De acordo com os pesquisadores que conduziram o estudo sobre a metabolização do ATP, o acúmulo de ATP em conjunto com baixos níveis de adenosina em pacientes graves pode contribuir para a exacerbação da resposta inflamatória mediada por citocinas. “O processo inflamatório desencadeado pela quebra insuficiente de ATP ocorre pela descompensação dessa via, que funciona como uma forma de regulação anti-inflamatória. Porém, quando ocorre esse erro no metabolismo do ATP-adenosina, o acúmulo de ATP atua como um sinal para outras vias de inflamação no sistema imunológico, culminando na ativação do inflamassoma, por exemplo”, disse Sato
Nesses casos, em que a regulação do sistema imunológico é disfuncional, a resposta inflamatória excessiva está diretamente ligada à falência de múltiplos órgãos e frequentemente à morte.