Um estudo conduzido por pesquisadores na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), da Unicamp, propõe uma nova combinação de medicamentos para o tratamento do câncer de boca que promete maior eficiência no combate a células-tronco tumorais ao mesmo tempo que reduz os efeitos colaterais
A pesquisa, desenvolvida no Brasil no âmbito de um projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), busca alternativas menos tóxicas e mais eficazes para o tratamento do carcinoma espinocelular oral, o tipo mais comum de câncer de boca.
A principal forma de tratamento atualmente é a cirurgia de remoção do tumor. Em muitos casos, o procedimento inclui a necessidade de retirada de parte de tecido saudável. Dependendo da evolução da doença, radioterapia e quimioterapia com cisplatina [medicamento à base de platina] podem ser necessárias.
Apesar de eficaz em alguns casos, a cisplatina apresenta limitações: provoca efeitos colaterais graves e nem sempre consegue impedir a volta da doença. “Um dos principais problemas é a resistência das chamadas células-tronco tumorais”, explica o pesquisador Sebastião Silvério Sousa-Neto, doutorando da FOP e autor principal do estudo. Essas células ficam em estado de repouso e não são eliminadas pela quimioterapia convencional, o que favorece a recidiva do câncer após o tratamento”, completa.
Para contornar essas barreiras, a equipe de pesquisa apostou em uma estratégia chamada reposicionamento de drogas: utilizar medicamentos já existentes e aprovados para outras doenças, mas que apresentam potencial contra o câncer. No caso do estudo, duas substâncias foram testadas em combinação com a cisplatina: emetina, utilizada nos Estados Unidos para tratar amebíase intestinal, e a suberoilanilida hidroxâmico, aprovada no Brasil desde 2011 para um tipo raro de linfoma cutâneo.
“É muito mais rápido e barato reposicionar uma droga do que descobrir uma nova molécula”, explica Sousa-Neto. “Se você começa do zero, pode levar 20 ou 30 anos até chegar na clínica. Mas, se o ponto de partida é um medicamento já aprovado, com toxicidade e dose conhecidas, várias etapas deixam de ser necessárias. Essa foi a lógica da nossa pesquisa.”
Do paciente ao laboratório
O diferencial do estudo está no modelo experimental utilizado: os xenotransplantes derivados de pacientes. Nessa metodologia, fragmentos de tumores retirados dos pacientes em cirurgias são implantados em camundongos imunodeficientes, que passam a desenvolver lesões muito semelhantes às dos pacientes.
Para o professor e pesquisador do departamento de Diagnóstico Bucal da FOP, Pablo Agustin Vargas, orientador de Sousa-Neto e também autor da pesquisa, esse é um dos pontos que dão força ao trabalho. “O tumor que cresce no animal é igual ao tumor original do paciente. Isso dá enorme relevância translacional e aproxima muito a bancada da clínica”, explica.
Dentre os vários experimentos feitos, a combinação de cisplatina e emetina foi considerada a mais promissora. De acordo com os pesquisadores, o tratamento conseguiu reduzir significativamente a ativação do fator NF-κB, proteína associada à resistência das células tumorais, sem aumentar a toxicidade nos órgãos avaliados, como fígado e rins.
Mesmo com o uso combinado das drogas, Sousa-Neto conta que não houve perda adicional de peso entre os animais – um dos principais indicadores de toxicidade. “Isso significa que conseguimos manter a eficácia sem sobrecarregar o organismo. A próxima etapa é reduzir a dose da cisplatina, já que ela é responsável pelos efeitos colaterais mais graves”, detalha o cientista, que se dedica à área da oncologia desde a iniciação científica.
Entre os desafios no desenvolvimento da pesquisa, Sousa-Neto destaca os contratempos envolvendo os testes em camundongos. “O mais frustrante era a imprevisibilidade. Às vezes eu passava meses cuidando de uma geração de animais e, quando finalmente o tumor estava pronto para o tratamento, o camundongo morria sem explicação. Era como perder um ano de trabalho de uma vez”, lembra.
O professor Vargas destaca também os desafios logísticos e éticos. “O trabalho envolve coletar tumor fresco no centro cirúrgico, implantar imediatamente nos animais, seguir protocolos rígidos de ética humana e animal, além de depender de equipes multidisciplinares. É uma pesquisa que exige resiliência e colaboração constante.”