Diante da notícia de que um caso suspeito de infecção por coronavírus em solo brasileiro poderia ser confirmado em breve, pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo, USP, correram contra o tempo para preparar equipamentos e laboratório com o objetivo de sequenciar o genoma do vírus coletado em paciente internado na capital paulista. O diagnóstico do homem de 61 anos foi confirmado na última quarta-feira, 26.
“Em média, os países estão conseguindo fazer o sequenciamento em 15 dias. Queríamos fazer em 24 horas, bater o recorde, mas não funcionou tudo (no processo). Fizemos em 48 horas, como o Instituto Pasteur (na França)”, contou à BBC News Brasil Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora e professora do IMT-USP.
“Nas epidemias anteriores, como da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) ou da Respiratória do Oriente Médio (Mers), você até sequenciava (o vírus), mas só tinha o dado alguns meses depois. Hoje, estamos conseguindo fazer o sequenciamento em tempo real, enquanto a epidemia acontece”, aponta, atribuindo a rapidez a um barateamento e maior conhecimento das técnicas.
A capacidade de sequenciar rapidamente, principalmente no início de uma epidemia, pode ajudar na tomada de decisões. Sabino diz que conquistas na ciência como essa são como “tijolos” que vão se juntando, então não é possível dizer de imediato que “construção” esses tijolos vão formar — mas pode ser desde uma vacina ao melhor planejamento de uma cidade diante de uma eventual epidemia. Identificar as características genéticas de um vírus como esse, além de comparar a cepa coletada no Brasil com as de outros países do mundo, é como juntar pistas cronológicas e geográficas no caminho de transmissão do patógeno. Também é uma forma de registrar mutações, pontos fracos e fortes do vírus.
Os resultados divulgados pela equipe brasileira indicam por exemplo que, das dezenas de amostras do novo tipo de coronavírus já analisadas em todo o mundo, a maior compatibilidade do material genético do vírus encontrado no paciente internado em São Paulo foi com um vírus sequenciado na Bavária, Alemanha. Isto é um indicativo, mas ainda não a confirmação, de que a cepa do vírus em questão teve origem na China, passou pela Alemanha, Itália, até chegar ao Brasil. A possível transmissão da Alemanha para a Itália é um hipótese nova trazida pela equipe brasileira.
A região da Lombardia, no norte da Itália, onde o paciente brasileiro infectado esteve, até agora não teve amostras sequenciadas por equipes ou institutos locais — ao menos não publicamente.
Já em relação ao primeiro sequenciamento genético do novo tipo de coronavírus, feito em janeiro por pesquisadores na China, o material analisado pelos brasileiros tem três mutações — duas em comum com o encontrado na Alemanha. O sequenciamento realizado em São Paulo foi comparado com 127 genomas completos do coronavírus sequenciados em 17 países diferentes.
“A terceira mutação é uma mutação única, não encontrada na sequência mais próxima, que é a sequência da Alemanha. Então, provavelmente é uma mutação que já aconteceu na transmissão para o paciente brasileiro”, explica Jaqueline Goes de Jesus, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em nível de pós-doutorado no IMT-USP.
“Alguns vírus são mais estáveis e outros, como os respiratórios, acabam mutando muito. É o que acontece com o vírus da gripe: todo ano a gente tem uma vacina nova, porque há muitas mutações”, explica Goes de Jesus.
As brasileiras, assim como os franceses do Pasteur, indicam que o novo tipo de coronavírus surgido na China ainda é bastante homogêneo — portanto, não precisou passar por muitas mutações para se adaptar e espalhar. Há indicações também de que, ao contrário do Sars ou Mers, este coronavírus tem grande capacidade de transmissão e baixa letalidade.
Na última quarta-feira, 26, após a confirmação do diagnóstico de coronavírus, amostras do paciente brasileiro foram enviadas ao Instituto Adolfo Lutz, seguindo protocolo do Ministério da Saúde.
Na quarta-feira de manhã, cinco pesquisadores começaram o estudo, em um laboratório do instituto.
Em linhas gerais, há a extração do RNA do vírus; sua transformação no chamado DNA complementar; depois a replicação exponencial de cópias deste DNA, por meio da chamada reação em cadeia da polimerase. Isso tudo acontece em nível molecular, dentro de um líquido transparente.
Em seguida, vem a fase da leitura do material genético. Nela, é usado um equipamento pequeno e com aparência de pen-drive, chamado de sequenciador.
No processo, os brasileiros contaram com a colaboração remota de pesquisadores das universidades de Birmingham, Edinburgh e Oxford, no Reino Unido. A leitura do material foi finalizada na sexta-feira, 28, e logo publicada no Virological.org, um fórum mundial de discussão para virologistas, epidemiologistas e especialistas em saúde publica.
“No passado, os cientistas gostavam de guardar esse tipo de dado até publicá-los em alguma revista científica. Mas hoje, o consenso é de que, durante uma epidemia, você não deve guardar as sequências, e sim torná-las públicas imediatamente”, explica Ester Cerdeira Sabino.
Jaqueline Goes de Jesus diz que, tecnicamente, a sequência obtida já tem 96% de cobertura, o que configura um genoma completo. Mas a equipe pretende completar esse sequenciamento e estar de prontidão para a análise de eventuais novos casos confirmados no Brasil.
A pesquisadora faz parte de um projeto que tem justamente o objetivo de monitorar e responder em tempo real a epidemias, o Brazil-UK Centre for Arbovirus Discovery, Diagnosis, Genomics and Epidemiology (CADDE), que conta com recursos da Fapesp e do Medical Research Council (MRC). Nascido há um ano, o centro de pesquisas pretende trabalhar não só com coronavírus como o atual como também com arbovírus como dengue e chicungunha.