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Cientista da USP pede ‘uma Lei Rouanet para a ciência’ (1 notícias)

Publicado em 11 de fevereiro de 2019

Cientista experiente e respeitada, Lygia Pereira da Veiga dá resposta precisa sobre tratamentos espirituais como os que eram feitos por João de Deus, hoje preso e desacreditado. Sabe explicar este tipo de coisa? “Eu precisaria fazer um estudo científico, pegar várias pessoas, ver quem foi até ele e fez o tratamento, comparar com quem não fez, saber se o primeiro grupo estatisticamente teve uma melhora… Eu demonstraria, pelo método cientifico, se o que ele faz tem algum valor”. Assim pondera a carioca, neta do fundador da editora José Olympio, filha do fundador da Sextante e de mãe socióloga. Prova de que sempre teve intimidade com livros – herdada do avô José Olympio e do pai Geraldo Carneiro – foi que aos 12 anos ela venceu um concurso do Círculo do Livro, com um conto sobre um satélite da Nasa que caiu em seu quintal. Mas foi só muito mais tarde, já fazendo Engenharia na PUC do Rio, que um professor lhe sugeriu: “Fica de olho na engenharia genética…”

Ela fez mais que ficar de olho. Encantou-se com “esse universo superinteressante” de genes e embriões e tornou-se uma das maiores autoridades no assunto. Já na USP – onde chegou atraída por convite da Fapesp, nos anos 90 – foi responsável pelo estabelecimento de uma primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias de multiplicação in vitro. Nesta entrevista ela põe o dedo nas falhas da ciência no Brasil: “Aqui a ciência não é prioridade, não é vista como o motor da economia”. E sugere, curta e direta: “Seria legal se gente tivesse uma Lei Rouanet para a ciência”. A seguir, os principais trechos da conversa.

Em que consiste, de fato, esse seu trabalho com células-tronco e embriões?

As células-tronco são uma espécie de célula coringa, com capacidade de se transformar em células diferentes. Temos células-tronco na medula óssea, capazes de produzir sangue. As células-tronco do embrião têm a maior versatilidade de todas. Elas “Sabem fazer” neurônio, coração, osso, sangue…

E a que isso leva?

Leva a uma técnica crucial, a da fertilização in vitro, pela qual você guarda embriões. E quando um casal os guardou mas decide não ter mais filhos, eles são doados para pesquisa. Dessa forma se consegue material para multiplicar as células obtendo as de músculo cardíaco, de fígado, neurônios…

E servem para qualquer pessoa?

Sim, e há empresas nos EUA que já testaram com animais e agora estão testando em seres humanos. Outros testes são para tentar produzir insulina, para tratamento de diabete.

Isso tudo é pesquisa sofisticada e tem um preço, não? Como é a questão do investimento na ciência?

A indústria nos EUA investe muito em ciência, em especial nas áreas biológicas, que é onde eu trabalho. Mas o papel do governo é fundamental. O National Health Institute é o maior financiador disso por lá.

Há algo equivalente no Brasil?

Seria o nosso CNPq, Conselho Nacional de Pesquisas. O Ministério de Ciência e Tecnologia e o da Saúde também investem. E são fundamentais para a pesquisa básica, aquela que não visa uma aplicação, a geração de um produto imediato.

Que é o que a indústria faz.

Exatamente. A pesquisa básica visa entender apenas como a natureza funciona. A partir daí é que você tem a pesquisa aplicada, a da indústria, que vai gerar um produto. Mas você nunca sabe de onde vão vir essas coisas. Pra se ter uma ideia, o maior avanço da genética nos últimos anos, que é a edição dos genomas – a capacidade de ir a uma célula e mudar os genes de uma forma específica – começou com uma pesquisadora que estava estudando como as bactérias se defendem de um vírus. Ela descobriu uma ferramenta que agora está sendo usada para criar soja transgênica, boi transgênico, novas terapias. Isso vai ser Prêmio Nobel daqui a alguns anos. E veio da pesquisa básica.

E, a seu ver, o que se pode esperar desse investimento?

Essa é a palavra exata, investimento. Temos batido nessa tecla: ciência não é gasto, é investimento. A cada real investido, o retorno é enorme. Países como EUA, Rússia e Coreia do Sul, em tempos de crise financeira, aumentam o investimento em ciência. Sabem que essa é a maneira sustentável e orgânica de fazer a economia rodar. Não é baixando o imposto da linha branca, entendeu?. Aqui no Brasil a gente precisa muito dessa agenda.

E não a temos, né?

Não. Aqui a ciência não é prioridade, não é vista como o motor da economia. Nos últimos quatro anos a gente teve uma diminuição de quase 50% da verba para a ciência.

Tanto assim?

Sim, e agora estamos com uma esperança nesse novo governo, voltamos a ter Ministério da Ciência e Tecnologia…

Cujo ministro é um astronauta.

É um cientista. Porque não é qualquer um que consegue chegar até a Nasa e a Nasa o colocar dentro de um foguete pra ir ao espaço. É alguém que sabe como é feita uma pesquisa.

Já deu pra perceber alguma mudança?

O novo ministro já disse que uma das metas é aumentar o investimento em ciência para 3% do PIB – está em um ponto e alguma coisa. A gente vê uma energia nova, muito boa. E uma oportunidade de fazer outra coisa, que é tentar melhorar a ciência melhorando a burocracia.

Como é isso?

O governo me dá um dinheiro pra fazer uma pesquisa inovadora e eu não tenho como prever o que virá. De repente percebo uma coisa nova e para confirmar isso preciso de um reagente novo. Nos EUA o dinheiro chega no dia seguinte. Aqui, demora dois meses.

E aí a pesquisa vai pro brejo?

Ou vai pro brejo ou alguém, em outro lugar, passa na frente. E tem mais. Nessa espera de dois meses esse reagente foi tão maltratado, no caminho da Receita Federal para a Anvisa, de não sei mais o que, e às vezes chega às nossas mãos já meia boca e o experimento não funciona tão bem. É um horror, e isso é histórico.

É o preço que se paga pela burocracia, não?

O próprio governo está jogando dinheiro fora. A boa notícia é que este é um problema que não depende de dinheiro. Se você juntar Receita, Anvisa e outros players envolvidos dá pra diminuir o processo para duas semanas, 10 dias. Se o fizerem, vão revolucionar a ciência no País.

E é gente que acaba indo embora daqui.

Sim. Os outros países, EUA, Europa, estão doidos pra atrair gente boa. Seria legal, mesmo, se a gente tivesse uma Lei Rouanet para a Ciência.

Seria um bom começo.

Sim, traria benefício imediato. Ia ser tão bacana. A gente tem o Pronon, o Proad, programas junto ao Ministério da Saúde, mas é preciso uma coisa mais ampla. E agora tem esse problema do teto dos gastos.

E já se sabe que 2019 vai ser difícil na área econômica.

Por isso eu bato muito na tecla da burocracia, que só depende da vontade política. E pode trazer um impacto tremendo.

Voltando às pesquisas, qual sua avaliação do chinês que anunciou ter feito seres humanos geneticamente modificados?

Isso foi um choque. O que o chinês fez? Ele resolveu criar pessoas resistentes ao HIV.

De que maneira?

Nós temos um gene chamado CCR5, que produz uma proteína que é chave de entrada para o HIV. O vírus entra na proteína e consegue entrar nas células. Mas descobriu-se que parceiros que tinham um defeito nesse gene não produziam essa proteína e por isso o HIV não conseguia entrar. Bárbaro, não? A partir daí estão desenvolvendo uma alternativa: você pega uma célula da medula óssea, faz com que ela não tenha mais esse gene CCR5 e devolve essa célula da medula ao paciente. Ele começa a produzir sangue sem essa proteína e vai zerar o HIV. Já está sendo testado nos EUA. O que o chinês fez? Levou isso ao limite: tentou criar crianças já nascidas sem o risco de desenvolver o HIV. Ele não publicou nada a respeito, apenas falou.

Quais as consequências disso?

O problema é que não há segurança ainda para aplicar dessa forma. O chinês chutou o balde de todas as regras do desenvolvimento científico.

Diria que, nesse episódio, ele estava brincando de Deus?

Se brincar de Deus é ficar fazendo reformas na natureza, acho que o ser humano vem brincando de Deus desde que adquiriu consciência, inteligência. Mas o chinês extrapolou absolutamente. A boa notícia foi que a China também repudiou a ideia. Ela poderia ter dito ‘dane-se o mundo, que eu vou fazer isso’. Mas não foi o que aconteceu.

Queria ouvi-la sobre a figura de João de Deus. Independentemente do que ele andou fazendo com pacientes, como uma pessoa ligada à ciência lida com esse inexplicável?

O que me rege é o método científico. Observar a natureza, a partir disso criar hipóteses, fazer experimentos para testá-las. Durante muitos séculos o ser humano achava que o trovão era um deus. O que o João de Deus fazia eu não posso dizer que não vale nada porque não sei explicar, entendeu?

E você também não pode dizer que vale muito porque não sabe explicar.

Eu precisaria fazer um estudo científico, pegar várias pessoas, ver quem foi até ele e fez o tratamento, comparar com quem não fez. Em seguida, saber se o primeiro grupo estatisticamente teve uma melhora… Assim eu demonstraria, pelo método cientifico, se o que ele faz tem algum valor. Agora, entender o mecanismo pelo qual ele faz já é outra história. Esse mecanismo a gente chama de espírito, de energia. Podem existir outras ondas, energias, a gente ainda não desenvolveu aparelhos para medir.

O Estado de S. Paulo