Animais peçonhentos, como cobras e aranhas, apresentam mais do que um risco à vida humana: são fonte de cura de doenças. O mesmo veneno usado para matar as presas contém moléculas que, uma vez isoladas e purificadas, dão origem a medicamentos. Para estimular a pesquisa envolvendo esses animais e fazer as substâncias benéficas deixarem os laboratórios e chegarem às prateleiras das farmácias, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), criou o Centro de Toxinologia Aplicada (CTA), que prevê a comercialização do primeiro produto, um anti-hipertensivo à base de veneno de serpente, a popular jararaca, em três anos.
Reunindo seis institutos e universidades paulistas, o CTA é um dos dez novos centros inaugurados em setembro, que integram o Centro de Pesquisa de Inovação e Difusão (Cepid), programa da Fapesp que pretende integrar tecnologia de ponta, ciência e educação, nos moldes das redes de pesquisa do National Science Foundation. As propostas de criação dos dez centros foram selecionadas de um total de 112 projetos. Os escolhidos receberão, juntos, R$ 15 milhões por ano.
Ponte - "O CTA é uma rede de centros de pesquisa de diferentes especialidades, que contribuem cada um a sua forma para o objetivo final do estudo", diz o bioquímico Mário Sérgio Palma, da Unesp, um dos coordenadores do CTA. Palma destaca o papel do centro como ponte entre universidade e sociedade, pois, além de congregar esforço científico, conta com três indústrias farmacêuticas nacionais - encarregadas de produzir e comercializar os medicamentos desenvolvidos - e com especialistas na fabricação de CD-ROMs e livros didáticos, para disseminar os conhecimentos adquiridos em laboratório.
Entre as pesquisas em andamento, está um anti-hipertensivo natural, à base de peptídeos do veneno da Bothroes jararaca, serpente comum no Brasil. Ao penetrar no corpo das presas do animal, os peptídeos destroem seu sistema de coagulação, levando as células do sangue a migrarem para outros tecidos. Por alterar a circulação sanguínea, esses peptídeos têm forte influência no controle da pressão arterial.
Se tudo der certo, o primeiro anti-hipertensivo desenvolvido com tecnologia nacional estará disponível em 2003. "Conseguiremos reduzir custo com importação de medicamentos e estaremos protegendo os recursos genéticos brasileiros", diz Palma. Segundo ele, o fabricante do Captopril, o anti-hipertensivo mais consumido no mundo, fatura US$ 5 bilhões anuais com a venda do medicamento, cujo princípio ativo e extraído da jararaca brasileira.
Moluscos - Não só as cobras despertam o interesse médico. Vasculhando o fundo do mar, os pesquisadores encontraram moluscos que produzem toxinas com componentes benéficos ao homem. O Centro de Biologia Marinha (Cebimar) da USP, que integra a rede do CTA, está estudando a Aplysia brasiliana, conhecida como lebre-do-mar. Encontrada na costa brasileira apenas nos meses de verão, a Aplysia contém um composto, o trimetilsufônio, que age como relaxante muscular.
Quando injetada no corpo, a substância se adere à superfície das células musculares, inibindo a ação do neurotransmissor acetileolina, responsável pela contração muscular. "Esse neurotransmissor é liberado no coração quando estamos deprimidos, fazendo com que o músculo bata mais devagar, e quando praticamos exercício", explica José Carlos de Freitas, diretor do Cebimar, que ainda não sabe quando a substância será testada em humanos.
ANALGÉSICO NATURAL
Além da lebre-do-mar, o Centro de Biologia Marinha (Cebimar) da USP também está estudando o Comis regius, espécie de molusco abundante no arquipélago de Fernando de Noronha e no litoral capixaba, que se mostrou eficiente no alívio da dor. Finlandeses desenvolveram um analgésico a partir de substâncias extraídas do molusco e agora os brasileiros correm atrás do prejuízo, na tentativa de isolar novos compostos com fins medicinais.
"Os moluscos ainda são pouco estudados no Brasil, mas guardam segredos promissores", diz José Carlos Freitas, diretor do Cebimar. Freitas lembra que o AZT, medicamento usado no combate a Aids é feito à base da azidotimidina, substância isolada de uma esponja marinha. "Da mesma forma que o combate a Aids ganhou reforço com substâncias encontradas no mar, outras doenças graves poderão se beneficiar com novas descobertas".
Freitas ressalta que a corrida pela descoberta de novos fármacos não traz benefícios apenas ao homem. "Ao estudar esses animais, passamos a conhecer melhor a biologia deles e podemos usar esse conhecimento para sua preservação", diz.
ARMA CONTRA BACTÉRIAS
O corpo coberto de pêlos sustentado pelas oito patas negras assustam. Mas por trás do medo que desperta, a aranha caranguejeira abriga uma substância, o peptídeo gomesina, que promete ser uma ferramenta de peso no combate às bactérias super-resistentes. Isolada no Instituto de Biociências (ICB) da USP, o composto se mostrou eficiente contra 24 tipos de bactérias, nove fungos e cinco leveduras.
O trunfo da gomesina é o mecanismo de ação. Ao contrário dos antibióticos convencionais, que atuam no interior das células do microorganismo, inibindo a síntese de DNA, RNA e proteínas, a gomesina age sobre a membrana celular. Ela abre buracos na membrana, levando a bactéria à morte em bem menos tempo.
A diferença entre os dois mecanismos ficou patente num experimento conduzido no instituto com um peptídeo semelhante à gomesina - a protegrina. Enquanto esta levou dez minutos para reduzir o número de bactérias de 1 milhão para 10 mil, os antibióticos convencionais costumam levar de quatro a 24 horas para surtir o mesmo efeito.
Para a maioria das 24 bactérias contra as quais a gomesina foi ativa, como a Pseudomonas aeruginosa, que causa infecção urinária e queimaduras, já existem antibióticos no mercado. A vantagem da substância seria a baixa indução de resistência. "Por não penetrar nas células, a gomesina reduz as chances de as bactérias se tornarem resistentes a elas", explica Sirlei Daffre, do ICB, que orientou a pesquisa, fruto da tese de doutorado de Pedro Isamel da Silva Júnior.
A aranha escolhida para a análise foi a Acanthscurria gomesiana. Para manuseá-las, os pesquisadores as depilam e as mantêm por 15 minutos a uma temperatura de 20°C negativos. "Isso é só para elas ficarem mais calmas", conta Sirlei. Já mansinhas, as aranhas são postas sobre a mesa de trabalho dos cientistas para que, então, delas seja extraída a gomesina, presente em células sanguíneas.
No animal, a gomesina funciona como um antibiótico natural. "Quando uma bactéria penetra no corpo da aranha, essa substância é expelida das células e ataca o microorganismo invasor", diz Sirlei, que teve a colaboração do Conselho Nacional de Pesquisa Científica de Estrasburgo, na França, do Instituto de
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Jornal do Brasil