Vocês já tiveram a ingrata ocasião de tentar aplacar os temores de um paranóico quanto à conspiração urdida pelo universo para destruí-lo?
Quem tentou conhece a dificuldade do empreendimento. Toda argumentação é impotente no caso. Um doente de paranóia raciocina tão bem quanto qualquer outra pessoa, às vezes até um pouco melhor: o medo acende todos os seus bytes de uma vez e ele nos prova, por a + b, que as rotas dos aviões foram propositadamente desviadas para bombardear sua casa, que seu vizinho instalou no porão uma máquina para ler seus pensamentos, etc., etc. Logo percebemos que o erro dele não está no raciocínio, mas nas premissas. Ele parte de informações erradas, porque lhe faltam certas percepções intuitivas e o senso das proporções. Como estas coisas só se adquirem por experiência direta, e as palavras só podem transmitir signos e não os fatos mesmos, é inútil tentar reconduzir o infeliz à realidade comum: nosso discurso cai e se perde no fosso intransponível entre dois mundos eternamente separados.
É desesperador.
Pois bem: de uns anos para cá, discutir com certos intelectuais — chamemô-los assim — tornou-se uma experiência desse tipo. Eles falam, raciocinam, argumentam como se fossem pessoas normais, porém, depois de uns minutos de conversa, percebemos que eles simplesmente não sabem do que estamos falando. Provavelmente a dose de informações eruditas desencontradas ou falsas que receberam na universidade os desarticulou de tal modo que se tornaram incapazes de confiar em suas próprias percepções. Não crendo mais no que enxergam individualmente, apegam-se com desespero ao que imaginam coletivamente. É o primeiro grau da maluquice: a histeria. Mas o histérico, se toma o imaginado como percebido, ao menos só faz isto em estado de excitação. Aos poucos, porém, a quantidade de estímulo necessária para produzir o equívoco vai diminuindo, como num experimento de hipnose, em que a força do hábito faz com que sinais cada vez mais brandos emitidos pelo hipnotizador bastem para produzir o transe. O sujeito que começara por confundir intensidade e realidade termina por afirmar, com toda a calma e frieza, que realmente não sabe se um feto humano é humano, que não enxerga diferença moral entre fazer sexo com uma mulher adulta e com um bebê de 2 anos, que não vê distinção de qualidade entre a Catedral de Chartres e as obras de Basquiat, que entre o carinho físico e uma facada no estômago a diferença é apenas de grau, que a consciência humana não existe, que o amor de uma mãe por seus filhos é efeito da exploração capitalista do proletariado, etc., etc. Aí ele está totalmente esquizofrênico e provou, portanto, sua habilitação a uma cátedra universitária.
Um psicastênico não percebe coisas por trás das palavras, e o enviamos ao médico; um desconstrucionista também não, e lhe confiamos a educação de nossos filhos.
O chamado progresso do conhecimento obriga-nos a discutir, fingindo seriedade, assuntos que um pythecantropus erectus desprezaria como indignos de sua inteligência. Sempre que me vejo na contingência de ter de fazer isso, tenho de me imbuir daquele espírito de mentira piedosa que se sobrecarrega de precauções para não contrariar o louco de frente. Tenho medo de terminar como os empregados do Henrique IV de Pirandello, os quais, à força de fingir que são cortesãos de Henrique IV para não contrariar o patrão maluco que imagina que é Henrique IV, terminam acreditando que são mesmo cortesãos de Henrique IV. Quando não agüento mais e parto para a gozação ostensiva, creiam: faço-o somente em legítima defesa da minha saúde.
Uma das mais trágicas ironias da História é que o prestígio social da ciência tenha contribuído para reduzir multidões inteiras de intelectuais a um estado de idiotice mal disfarçado pela linguagem pedante em que se expressa. Pois a ciência é apenas uma das formas derivadas da razão, e cultuada fora de um senso global da racionalidade se torna um fetiche hipnótico. Quando um sujeito, sob a pressão da vida moderna, vai perdendo a capacidade de perceber certas coisas, certas qualidades, certas diferenças, ele pressente, num primeiro momento, que está ficando maluco. Mas, em seguida, quando lê que "não há provas científicas" de que essas coisas existam, sente um alívio tremendo e, escorado na autoridade da ciência, proclama que cego é quem as vê. Raramente ou nunca um sujeito imbuído dessa ilusão encontrará um professor honesto para lhe ensinar que a ausência atual de provas científicas é, na rigorosa acepção do método, fraquíssimo argumento contra a existência do que quer que seja, principalmente daquilo que se conhece de longa data por percepção direta. Mas, para ensinar isto, é preciso algo mais que conhecimento científico: é preciso saber o que é ciência e o que não é — e isto, em pleno apogeu da autoridade científica, se tornou para a quase totalidade das classes falantes algo como um mysterium tremendum.
Olavo de Carvalho é autor de "O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras". http://www.z80.com.br/usr/sapientia
PRIORIDADES DA REFORMA UNIVERSITÁRIA
Antonio Paim
A entrevista ao JORNAL DA TARDE do professor Roberto Leal Lobo, ex-reitor da USP e atual reitor da Universidade Mogi das Cruzes, evidencia o potencial da universidade privada para definir um projeto mobilizador na matéria, capaz de interessar àquelas famílias preocupadas com o futuro de seus descendentes - que se supõe seriam a maioria.
Com a experiência profissional de que dispõe, o professor Lo-' bo explica com simplicidade por que não se deve esperar grande coisa da universidade pública, em matéria de renovação. Ali, como relata, as propostas são elaboradas num dia e discutidas durante seis meses. Dizer que são discutidas é uma forma educada de apresentar a questão. Do meu ponto de vista, baseando-me no que tenho vivenciado, qualquer tentativa inovadora é na verdade triturada. Sem ter muito que fazer os "coleguinhas" tratam de impedir seja o que for que possa promover esse ou aquele professor. De fato, são movidos pela inveja.
Na universidade privada que administra, as propostas são elaboradas nos prazos requeridos (mesmo que abranjam todo um semestre) e decididas numa única reunião.
E qual o critério norteador da proposição? Responde o professor Lobo: o usuário, que é o vestibulando. Ele precisa saber para que universidade está indo. Na sua visão, o governo só deveria controlar e regulamentar aquelas profissões que "lidam com a segurança do cidadão". Exemplifica com a medicina e a engenharia. Todos os cursos que não se enquadrassem nesse modelo deveriam ser completamente desregulamentados.
Qual seria então a função do órgão público? O professor Lobo também responde: estimular a concorrência.
Desenvolvendo o raciocínio do eminente educador, diria que o término da gratuidade do ensino superior público passaria a revestir-se da maior prioridade. Com a familiaridade adquirida com o trato da questão, o professor Lobo garante que os alunos da universidade pública são pessoas de posse (que, pode-se inferir, estariam em condições de pagar). Portanto, a constatação não é meramente impressionista como se tem tentado fazer crer, pelo fato de que o argumento mais freqüente, até aqui invocado, consiste em apontar como indicador da circunstância os parques de estacionamento. Mas o professor Lobo deve ter lidado com dados mais consistentes. Assim, o seu depoimento reveste-se da maior relevância.
No entendimento do professor Lobo, as relações entre o governo e a universidade pública deveriam ser reguladas por contratos de gestão. Presumivelmente, esses contratos fixariam metas vinculadas à liberação dos recursos. Sabe-se, por exemplo, que na universidade pública a evasão chega a 50%, tanto pelo fato de que muitos cursos não levam em conta as condições do mercado de trabalho ou se transformaram em simples formas de doutrinação política. Se as verbas fossem condicionadas à permanência dos alunos nos cursos, os gastos reduzir-se-iam à metade. A instituição seria deste modo obrigada a fechar cursos e livrar-se de pessoal ocioso.
O depoimento do professor Roberto Leal Lobo apresenta uma explicação clara para a inflação de docentes na universidade pública, que caracteriza diretamente como "cabide de empregos". Se a instituição "deve" simultaneamente ocupar-se de ensino, pesquisa e extensão, cada professor sente-se com o direito de enquadrar-se em tal perfil e, por esse meio, alcançar os mais elevados níveis de remuneração. O que compete fazer, conclui-se, é proceder-se à reclassificação daquelas instituições. Estou certo de que a maioria não se enquadraria nem como centro de pesquisa nem como centro de extensão, desde que, para merecê-la, fossem fixados parâmetros consistentes. O professor Lobo lembrou o fato - que em geral os nossos professores preferem que nunca seja mencionado - de que não temos nenhum Prêmio Nobel e, tudo indica, não há pesquisa básica que algum dia venha a merecê-lo. Para não lembrar que em matéria de extensão a imensa maioria ganharia nota zero.
Por tudo isso entendo que o professor Roberto Leal Lobo apresentou uma preciosa contribuição aos liberais na fixação das prioridades a serem contempladas numa proposta de reforma universitária, em torno da qual pudesse aglutinar-se a maioria do professorado, a fim de levar a instituição à reconquista do apreço da opinião pública.
Antonio Paim é filósofo, professor e escritor
Notícia
Jornal da Tarde