Notícia

Jornal do Brasil

Ciência e consciência

Publicado em 04 outubro 1995

Por MARCO MACIEL*
Autor da lei que define normas para uso de técnicas de engenharia genética, devo dizer que o conceito de biossegurança, de que trata a lei, se reveste de um conteúdo jurídico que tem por finalidade preservar alguns dos bens mais inestimáveis do homem: sua vida, sua saúde, sua higidez física e o meio em que vive e do qual depende. Este conceito está na lei. O Estado pode regular, fiscalizar e estabelecer padrões para a manipulação e alteração genética dos seres vivos. O que o Estado lamentavelmente não pode, apesar de sua aparente onipotência, é assegurar o emprego dessas técnicas manipulativas exclusivamente em beneficio da humanidade. Já não me refiro apenas às inegáveis e reconhecidas repercussões econômicas, à relevância científica, às dimensões políticas, ou ao alcance social no domínio desse conhecimento, dessas descobertas e dessas novas técnicas que ampliam nossos horizontes e criam expectativas tão promissoras para o conjunto da humanidade. Em matéria dessa natureza, em que os limites e fronteiras ainda estão por ser estabelecidos, sem dúvida que é dever do Estado prever, prover e prevenir, na medida em que o que está por vir terá repercussões inestimáveis no desenvolvimento científico e tecnológico de cada país, nas condições de saúde, no bem-estar de suas populações e no aumento da produtividade agropecuária. Mas as possibilidades do Estado se esgotam aí. Na justificativa do projeto, tive a oportunidade de assinalar a advertência feita à época pelo papa João Paulo II, de que às pessoas do campo da ciência cabe a "responsabilidade de estimular a reflexão, sobre o aspecto ético das investigações científicas", lembrando os "possíveis riscos morais que cada nova tecnologia desenvolvida pode criar". Algo que, mais tarde, repetiu em outros termos na Academia de Ciências do Vaticano, dizendo que "cada ciência deve ter a sua consciência, e cada técnica a sua ética". A ciência, estou convencido, pode até ser neutra em seus desígnios, mas é necessariamente ambivalente em seus resultados. Em especial, quando se trata das aplicações que a tecnologia de cada etapa do seu desenvolvimento termina promovendo. Einstein não hesitou em advertir, em sua famosa carta ao presidente Roosevelt, para a potencialidade das pesquisas de Enrico Fermi, que poderiam levar à descoberta de uma nova e poderosa forma de energia, acreditando na possibilidade de evitar a perda de vidas humanas, de impedir o prolongamento da destruição causada pela guerra e as ameaças de que ele mesmo tinha sido vítima. Os seus elevados propósitos morais, porém, não evitaram que seu colega Oppenheimer tivesse, mais tarde, de protestar contra os horrores da ameaça de um conflito nuclear, que pairou sobre o mundo por mais de um quarto de século. Isto nos leva, inevitavelmente, à reflexão sobre a natureza do poder que a biotecnologia, a engenharia genética e a chamada terapia de substituição dos genes estão colocando nas mãos dos responsáveis pelo desenvolvimento da biologia celular, da genética molecular, da bioquímica e da bioengenharia. Parece-me que, dentro de algum tempo, não estaremos mais condenados a viver com a nossa própria herança genética, pois será possível modificá-la, transformá-la, em última análise, manipular esse código, o que significa criarmos ou mudarmos a forma de vida a que o destino e a natureza tinham condenado os seres vivos. Presumo que tal quadro, mais cedo ou mais tarde, implicará criar vida com formas diferentes daquelas com as quais foi originalmente concebida. Temo não estar incorrendo em erro se disser que já não estamos em face de um novo limiar da ciência, mas sim de uma nova forma de poder. Todos nós sabemos que, na tipologia clássica do poder, os pensadores gregos definiram duas formas clássicas de dominação. A primeira é a dominação do homem sobre o homem, que é o fundamento imemorial e contemporâneo da política. A segunda, do homem sobre a natureza, que é o fundamento da ciência: dominar o conhecimento sobre as forças, recursos e possibilidades da natureza e de sua utilização pelo homem. Quando nos referimos aos recursos da terapia de substituição dos genes, não estamos diante de nenhuma das duas formas clássicas de poder. Não se trata de dominação política, nem se trata só e apenas de um poder sobre a natureza ou sobre os recursos da natureza. Trata-se de poder sobre as características dominantes da vida. Daí, inevitavelmente, hoje ou em algum dia no futuro, de poder sobre a própria vida. É nesse sentido que me refiro a uma nova, e permitam-me a expressão, aterradora forma de poder. Façamos votos para que não tenhamos de esperar, neste ou no próximo século, que algum biólogo, algum bioquímico, algum botânico, algum médico ou algum geneticista seja obrigado a reinterpretar o papel de Oppenheimer da nova era. Não se vejam minhas advertências ou minha visão peculiar destas questões como manifestação de pessimismo. Muito pelo contrário. Descortino estas conquistas, como assinalei, não como novas etapas do conhecimento científico da humanidade, mas como um novo limiar, como novas fronteiras que se abrem, para ajudar na construção desse "admirável mundo novo" que a ciência será capaz de criar, identificando os genes responsáveis por doenças como distrofia muscular, hemofilia, câncer, mal de Alzheimer e o vírus HIV, abrindo caminho para a sua prevenção e cura. Confio em que a manipulação de organismos vivos no campo animal e no campo vegetal termine por criar condições para erradicar situações extremas e endêmicas, como a fome e a degradação do meio ambiente, causadas pelo mais predador dos seres vivos que é o homem, vivendo em sociedade e nas grandes conturbações. Meu propósito não é outro senão aquele para o qual advertiu o papa João Paulo II, de "estimular a reflexão sobre os aspectos éticos da investigação científica e os possíveis riscos morais que cada nova tecnologia desenvolvida pode criar". O que estou dizendo, em última análise, é que em minha experiência de homem público não vejo como o Estado ou o ordenamento jurídico da sociedade seja capaz de lidar com tais problemas. Em outras palavras, que a responsabilidade moral do que se convencionou chamar de Bioética está nas mãos dos cientistas, ou melhor dito, em suas consciências. Acredito que em nenhuma outra etapa do formidável desenvolvimento científico da humanidade, que acumula séculos de sabedoria, conhecimento e saber, um segmento da comunidade científica concentrou tanto poder. Caberá a todos que militam nessas áreas afins do desenvolvimento, da investigação e da pesquisa estatuir o que será, daqui para a frente, a Bioética, os verdadeiros limites do poder humano sobre a vida e a transformação da própria vida. Algo que, como acredito, está, desde a criação, apenas nos desígnios de Deus. * Vice-presidente da República