Gostaria de apresentar algumas observações a partir da recente entrevista da professora Rita de Cássia Barradas Barata, ex-diretora da Capes (“Modelo da produtividade na pesquisa está esgotado”, 31/ago). Relacionadas, primeiramente, às ciências das engenharias, algumas dessas observações foram apresentadas em meu artigo “Ciência das Engenharias: para onde vamos?” (O Estado de Minas, 14/jul), que, na minha opinião, abordou questões bem importantes sobre o estado das ciências das engenharias no Brasil e sobre o papel dos pesquisadores nessa área, da sua avaliação e dos caminhos para aumentar sua contribuição para o desenvolvimento do país.
Na época em que o professor Erney Felício Plessmann Camargo, da USP, presidia o CNPq, a política de avaliação de pesquisadores já estava bem definida. Essa política considerava quase que exclusivamente publicações em revistas de alto nível e, como consequência, pesquisadores reduziram, e pleno direito, a produção de estudos, passando a se dedicar à geração de artigos (“pesquisas” e “artigos” não são sinônimos). Posso citar muitos projetos, financiados pelo CNPq, que tinham como um de seus objetivos principais (não raramente como único objetivo) publicar, por exemplo, três artigos.
Além disso, essa política de avaliação de pesquisadores gerou uma questão fundamental que ainda existe: deve haver diferenças entre as avaliações de pesquisadores nas engenharias e em outras áreas? Em minha opinião, sim. A tarefa, por exemplo, nas ciências exatas é gerar conhecimento. No entanto, é muito importante mencionar que nas engenharias, além de conhecimento, devem ser gerados resultados práticos: materiais, softwares, hardwares, processos tecnológicos, entre outros produtos, e este importante aspecto raramente é levado em consideração.
Sou da ex-União Soviética, onde existiam e ainda existem dois tipos de doutorado, o Ph.D. e o D.Sc. (habilitação). Ambos exigem, como pré-requisito obrigatório, publicações de alto nível. E a publicação em revistas de alto nível na URSS não consistia em uma tarefa mais simples que publicar nas melhores revistas do mundo: publicações diretas para o exterior eram proibidas e, portanto, a competição interna atingia níveis bem altos. Mas o que importa é que para a defesa era obrigatório não só mostrar a aplicabilidade dos resultados das teses, mas também apresentar aplicações já realizadas, comprovadas por atos de ministérios, companhias, empresas, etc.
Pesquisadores ‘práticos’ e ‘teóricos’
Levando em conta essas observações, enviei uma mensagem ao professor Erney, comentando que nas engenharias deveriam ser considerados outros valores além de artigos publicados em revistas de alto nível. O motivo foi muito simples: o cidadão que paga impostos não tem interesse na quantidade e na qualidade dos artigos do pesquisador, mas nos resultados que podem ser alcançados ou, melhor ainda, nos já obtidos, como aumento do PIB, melhoria da qualidade do produto, aumento da confiabilidade de fornecimento de energia, melhoria da eficiência de processos tecnológicos, entre outros.
A resposta de um assessor do professor Erney chegou rapidamente, informando que o presidente do CNPq reconhecia a existência desses problemas e estava bastante preocupado, mas que tentaria uma solução em alguns dias. Essa resposta me deixou bastante intrigado.
Na realidade, após duas semanas, foi anunciada a Bolsa de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico, que criou uma barreira oficial nas engenharias entre o pesquisador “teórico” e o pesquisador “prático”. A justificativa da bolsa foi a seguinte: o pesquisador “prático” deveria introduzir na prática os resultados das pesquisas (não ficando claro se por pesquisas próprias ou de outros pesquisadores) e gerar patentes.
Essas metas foram atendidas? Em minha opinião, não. Em muitos casos, os pesquisadores “práticos” têm o mesmo perfil que os “teóricos”, mas com produção acadêmica mais fraca. Durante três anos (2012 a 2015), fui membro do Comitê de Assessoramento de Engenharias de Produção e de Transportes do CNPq. Em nossas reuniões, escutei muitas vezes que o pesquisador é “fraquinho” e, portanto, deveria pedir uma Bolsa de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico.
O Brasil precisa disso?
Considerando isso, é possível formular a seguinte pergunta: o Brasil precisa da Bolsa de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico na forma como ela existe agora? O Brasil precisa de uma divisão de pesquisadores em “teóricos” e “práticos”? Vamos discutir estas perguntas.
O Brasil não possui grandes centros de pesquisa e desenvolvimento, como aqueles dos Estados Unidos ou da rede nacional do Instituto Fraunhofer, da Alemanha, que permitem de maneira flexível, rápida, eficiente e convincente avaliar ideias e hipóteses apresentadas em publicações de alto nível. Se as ideias e hipóteses são merecedoras, esses centros podem implementá-las como softwares, hardwares, protótipos, pilotos, etc., para sua utilização prática nas indústrias.
Além disso, com longa experiência como membro do Conselho de Desenvolvimento Tecnológico da FIEMG e de coordenação de projetos relacionados ao planejamento estratégico, a novos negócios, e a outras atividades, posso afirmar que existe uma posição bastante forte e rigorosa entre muitos empresários e gerentes de alto nível de que é mais seguro, mais barato e mais flexível comprar no exterior softwares, hardwares, sistemas de operação e controle e outros produtos do que produzi-los no Brasil. Assim, para quem os melhores cérebros brasileiros escrevem artigos? Para os Estados Unidos? Para a Alemanha? É possível que esses artigos não tenham nenhum valor para o Brasil?
A propósito, é necessário relatar que o percentual de resultados publicados por pesquisadores brasileiros e não introduzidos na prática no Brasil é muito alto. Será possível que cheguem a 100%
Como é possível alcançar um salto tecnológico no Brasil sem grandes investimentos e sem uma longa espera?
Perfil necessário
Em minha opinião, não deve existir a divisão de pesquisadores em “teóricos” e “práticos”. Estes deveriam ser as mesmas pessoas. Então, é necessário falar sobre o perfil (modelo) de pesquisador brasileiro que pode realmente aumentar o PIB, melhorar a qualidade do produto, aumentar a confiabilidade de fornecimento de energia, melhorar a eficiência de processos tecnológicos, etc. Esses mesmos pesquisadores devem possuir as capacidades de:
identificar o problema relevante, formular o problema, resolver o problema teoricamente junto com sua equipe, organizar o desenvolvimento de softwares, hardwares, pilotos, protótipos e outros produtos, e organizar a introdução na prática.
Isso seria o ideal. Também seria muito importante o CNPq, a Capes, a Fapesp, a Fapemig e outras agências de fomento garantirem, se necessário, o suporte aos itens 1, 4 e 5.
Na época, discuti esse assunto com o professor Guilherme Sales Soares de Azevedo Melo, diretor do CNPq. Ele disse que a comunidade científica poderia não aceitar isso. Eu concordei plenamente com sua opinião. Um professor que, havia 20 ou 30 anos, escrevesse “belos” artigos e desenvolvia projetos financiados pelo CNPq, Capes, Fapesp, Fapemig, etc., provavelmente, não ia querer mudar seu cotidiano ou sua forma de produção, mesmo que, como cientista, não fosse um “artista livre”.
Levando isso em consideração, minha sugestão é a concessão de um “desconto”, como forma de incentivo de produção, para os pesquisadores que desenvolvem projetos práticos para a indústria. É necessário incluir na avaliação de alto peso esses projetos, financiados diretamente pelas indústrias. Além disso, para jovens pesquisadores que entram no sistema do CNPq, deve ser claro que o crescimento pode ocorrer até o nível 1C, por exemplo, e para alcançar um nível maior, somente será possível caso sejam desenvolvidos projetos práticos para a indústria. Justifico essa visão.
O pesquisador de boa qualidade deve saber como responder a duas questões fundamentais: “o que fazer?” e “como fazer?”. Posso afirmar, infelizmente, que muitos pesquisadores brasileiros bem avaliados podem responder à segunda questão mas não apresentam uma resposta convincente para a primeira. Dou um exemplo.
Participei de uma banca de doutorado de um programa de pós-graduação (de nível 6 da Capes), sendo o orientador pesquisador do nível 1B do CNPq. Perguntei ao aluno, após a defesa de sua tese, por que ele a atrasara. A resposta foi que ele estivera procurando um exemplo de aplicação de seus resultados teóricos por mais de seis meses. Nesse contexto, pergunto qual é a real utilidade desse doutorado na área das engenharias? Não seria isso um treinamento na formalização e satisfação de curiosidade e prazeres próprios, e com o financiamento de dinheiro público?
Em princípio, é muito desejável que os temas das teses e das dissertações sejam coordenados com os planos de desenvolvimento nacionais e setoriais.
Como editor associado e membro de corpos editoriais de algumas revistas de boa qualidade, observei e analisei artigos brasileiros aceitos e não aceitos – os artigos são elegantes e permitem, por exemplo, reduzir o valor da função objetivo por 0,5%, esquecendo que a precisão da informação inicial é de ±20%. Enfim, qual a utilidade disso? Isso é, novamente, um jogo em formalização e satisfação de curiosidades e prazeres particulares.
Resultados desconsiderados
Como conclusão, gostaria de mencionar e apresentar as duas seguintes questões.
É racional manter a bolsa de produtividade em desenvolvimento tecnológico ou deve haver uma única bolsa? A avaliação dos pesquisadores nas engenharias deve ser distinta da avaliação, por exemplo, daquela dos pesquisadores nas ciências exatas?
Essa distinção deve existir para incentivar a geração ampla, profunda e eficiente de materiais, softwares, hardwares, processos tecnológicos e outros produtos. Essa geração, na prática, elevaria o PIB, melhoraria a qualidade do produto, aumentaria a confiabilidade de fornecimento de energia, melhoraria a eficiência dos processos tecnológicos, etc., e não beneficiaria somente outros países.
Como pequeno exemplo de contradição, observo que é preferível, na avaliação de artigos, um menor número de autores. Para as ciências exatas isto é provavelmente correto. Entretanto, se falamos sobre engenharias, se o artigo está associado a um produto pronto para comercialização ou a um protótipo, o número de autores deve ser maior, sendo um dos autores responsável pelas questões teóricas, outro pelos dados experimentais, etc. (O Brasil precisa exatamente de artigos desse tipo!). Infelizmente, os artigos com muitos autores, sem análise, são penalizados pelo CNPq e pela Capes, por exemplo.
Outro exemplo pessoal: fizemos os primeiros projetos para a indústria nos anos 1997 e 1998. Essa não foi a melhor época. Não existiam programas como o P&D Aneel e os investimentos da Finep eram relativamente baixos. Mas é necessário mencionar uma explicação mais importante: existia a opinião de empresários e gerentes, indicada acima, de que é mais seguro, mais barato e mais flexível comprar os softwares, hardwares, sistemas de controle e outros produtos prontos no exterior do que produzi-los no Brasil.
Entretanto, conseguimos convencer a diretoria da uma concessionária de energia elétrica de nossa capacidade de desenvolver produtos de boa qualidade. A empresa deveria demitir o pessoal das subestações, nas quais foi necessário automatizar o processo de controle de tensão e potência reativa. A concessionária havia começado a comprar sistemas desenvolvidos no exterior. Eu e meu aluno de iniciação científica desenvolvemos um sistema de controle não inferior ao que fora comprado no exterior e, ao contrário, tinha características superiores. O custo de todo o nosso projeto era inferior ao do sistema estrangeiro, e nosso sistema foi instalado nas muitas subestações da concessionária, gerando um resultado econômico significativo.
Na época, já tínhamos muitos artigos em revistas de alto nível e, por isso, publicamos um artigo em anais de Congresso Nacional da qualidade de energia elétrica. Publicamos um capítulo em livro internacional e também recebemos um convite do editor da revista “Eletricidade Moderna” para publicar uma versão estendida.
No entanto, para o CNPq e sua política, o resultado foi nulo, apesar do alto nível de desenvolvimento e do ganho econômico de milhares de reais. Portanto, independentemente do grande impacto positivo alcançado, os padrões da CNPq não avaliaram o que foi realizado, já que os aspectos analisados foram outros, desconsiderando os resultados práticos para o Brasil.
Petr Ekel é engenheiro elétrico com experiência em pesquisa, ensino, consultoria e serviço público. Graduou-se no Instituto Politécnico de Kiev (Ucrânia, URSS) e obteve os graus de mestre, Ph.D. e D.Sc. (habilitação). Tem títulos de Cientista Sênior, Professor Titular e Acadêmico da Academia de Ciências de Engenharia da Ucrânia. Atualmente, é professor titular da PUC-MG e orientador de teses de doutorado da UFMG. É pesquisador nível 1A do CNPq e atua nas áreas de pesquisa operacional, tomada de decisão e inteligência computacional. Na imagem acima, foto de Seilerseiler sob licença Creative Commons Share Alike 4.0, via Wikimedia Commons.
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