1. Este texto fala sobre o quê?
Na partida, eu gostaria de delimitar o tema que vou tratar. Atualmente, e com bastante razão, as categorias Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) são apresentadas como irmãs siamesas, intrinsecamente associadas e, muitas vezes, amalgamadas. A imagem que faço dessa abordagem é a de um conceito estudado no campo da topologia matemática chamada de Enlace Borromeano ou Nó Borromeano. Ele consiste em três círculos, ou anéis, que estão interligados de forma que a remoção de qualquer um de seus anéis desata simultaneamente todos os três. A imagem que se segue mostra uma versão artística, do século XVI, desse enlace. Aliás, foi aí que o enlace assumiu esse nome, em homenagem à família Borromeo, nobres no Ducado de Milão.
A relação entre CT&I tal como representada pelo Enlace Borromeano teve uma contribuição teórica fora do campo da saúde. Ela diz respeito ao que seria uma nova missão das universidades norte-americanas (EUA) e teve como fundadores dois pesquisadores – Henry Etzkowitz e Loet Leydesdorff. Essa nova missão sugere que as universidades nos EUA operaram uma primeira revolução passando de uma instituição predominantemente formadora de profissionais para uma instituição de pesquisa. E que, atualmente, vivem uma segunda revolução passando de uma universidade de pesquisa para uma universidade empreendedora (entrepreneurial university). Essa nova configuração gerou um modelo conceitual para o processo de inovação denominada Triple Helix (universidade-empresa-governo). A rigor, esses autores não excluem as duas missões anteriores da academia. Entretanto, a ênfase numa universidade empreendedora vem ocupando cada vez mais espaço na vida acadêmica, subordinando ao empreendedorismo o ensino e a pesquisa na universidade ii.
No campo específico da pesquisa em saúde, com o extraordinário desenvolvimento da família das “ômicas” (genômica, proteômica, metabolômica, etc.) a relação entre C&T e inovação gerou uma modalidade de pesquisa denominada Pesquisa Translacional, hoje com grande relevo e prestígio nas políticas de CT&I em saúde (CT&I/S) pelo mundo afora. O conceito de pesquisa translacional nasceu nos anos 1990 no National Cancer Institute nos EUA e ganhou grande impulso na década seguinte quando foi abraçada pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) iii. Essa modalidade, na verdade a exaltação de um modo de olhar a pesquisa científica e tecnológica em saúde, nasceu como um conceito operacional, mas foi perseguindo aos poucos um estatuto epistemológico próprio, tendo expandido o seu ‘racional’ para uma ‘Medicina Translacional’ e, em seguida, para uma ‘Ciência Translacional’ iv.
A Triple Helix e a Pesquisa Translacional propõem que a construção de políticas de CT&I/S devem mirar predominantemente a inovação e que as universidades e institutos de pesquisa são o lugar onde ela nasce e se desenvolve, entendida a inovação como a invenção de processos e produtos que chegam ao mercado. Entretanto, com base na perspectiva translacional e empreendedora hoje amplamente disseminada, o próprio conceito de inovação no ambiente acadêmico e de institutos adquiriu elasticidade, fazendo com que mesmo que uma invenção não chegue ao mercado ela já pode ser considerada uma inovação.
Há outros modelos explicativos do processo de inovação, talvez mais sofisticados, que envolvem universidades e institutos de pesquisa, mas que não as colocam em posição de liderança do processo. Dentre esses modelos, destacam-se as contribuições nascidas na Universidade de Sussex (Science Policy Research Unit) no Reino Unido genericamente denominadas de Sistemas Nacionais de Inovação v e, mais recentemente, as desenvolvidas no University College de Londres sob a liderança de Mariana Mazzucato vi.
No campo da saúde humana as duas abordagens que hoje norteiam a atividade de ciência e tecnologia nas universidades e nos institutos de pesquisa vêm sendo particularmente valorizadas pois este campo é um terreno extremamente dinâmico no que se refere à inovação industrial e de serviços. Entretanto, a pesquisa científica e tecnológica em saúde possui um forte e muito importante componente não diretamente ligado à inovação. Não apenas no espaço das ciências sociais e humanas em saúde, mas também na epidemiologia e mesmo na pesquisa biomédica de bancada. Mesmo que os termos “pesquisa básica” e “pesquisa desinteressada” estejam cada vez mais em desuso, havemos de convir que aqueles espaços de pesquisa não terão esse vínculo direto e imediato com o empreendedorismo e a translação tal como propostas pelos dois modelos.
Essa introdução conceitual tem o objetivo de circunscrever este texto aos limites da C&T/S desenvolvida nas universidades e institutos. Não tratará da inovação, muito embora ela possa ter ligação com boa parte da atividade de pesquisa realizada nessas instituições, mas que se tornará realidade fora dela, em empresas privadas e públicas bem como na prática dos sistemas de saúde.
2. Um sumário histórico da política de C&T em Saúde no Brasil.
Não há novidade em afirmar que no Brasil as universidades apareceram muito tardiamente, a partir da década de 1920, não apenas em relação aos países centrais, mas também em relação aos nossos vizinhos. E que, de modo geral, foram criadas a partir da fusão de escolas pré-existentes de direito, medicina e engenharia, nas quais a inexistência de atividades permanentes de pesquisa era o padrão. E, finalmente, que esse padrão das escolas que as constituíram permaneceu nas instituições recém-criadas. A rigor, apenas três universidades no Brasil incorporaram atividade profissional e permanente de pesquisa como componente existencial fundamental – A Universidade de São Paulo (1934), a Universidade de Brasília (1962) e a Universidade de Campinas (1966).
Já os institutos de pesquisa tiveram uma trajetória distinta. Sua criação foi anterior, remontando ao final do século XIX e aos primeiros anos da República. Sempre orientados por missão vinculada ao setor econômico e social que os originou, mormente agricultura e saúde. Disso decorreu que as atividades de pesquisa voltadas à solução de problemas econômicos ou sociais (inovações), tenha estado sempre mais presente do que nas universidades que vieram depois. No campo da saúde, destacam-se o Instituto Butantã (1899) e o Instituto de Manguinhos (1900). Em ambos, o espírito translacional esteve inscrito desde que foram fundados.
Entretanto, nas universidades e mesmo nos institutos, a sua criação não obedeceu ao que se poderia chamar de uma política pública de ciência e tecnologia no sentido de uma política de governo. O que vigorava nessas instituições eram políticas estritamente institucionais vii. Nos institutos de pesquisa, o olhar de cada política institucional era voltado a solucionar um problema daquele setor específico, respeitados os limites de atuação da instituição. No caso da saúde o combate às epidemias – febre amarela e peste – e a alguns agravos – acidentes ofídicos e outros.
Uma política pública de C&T no sentido de política de governo, não mais apenas de corte institucional, mas numa perspectiva transversal, é muito recente. Tomando como indicadores seus marcos fundacionais e de desenvolvimento, ela começou com a criação do CNPq e da CAPES (1950) e foi se ampliando com a FAPESP (1962); a Finep/FNDCT (1971); Ministério da Ciência e Tecnologia (1985); outras agências estaduais de fomento (décadas de 1980/90); Fundos Setoriais (2000); e a Embrapii (2013).
A mudança do padrão da política de C&T no Brasil foi muito influenciada pelas transformações na política de C&T nos EUA durante e logo após a 2ª Guerra Mundial que, nessa mesma época, consolidou a sua política de C&T como uma política de governo viii. O NIH, agência voltada à pesquisa em saúde, principalmente pesquisa biomédica, foi fundada entre 1944 e 1946 ix. No mesmo período, a National Science Foundation (NSA) teve sua criação proposta em 1944 e foi inaugurada em 1950 x.
Entretanto, se uma mesma conjuntura histórica propiciou uma política governamental de C&T nos EUA e no Brasil, os desdobramentos foram muito diferentes. Entre outros aspectos, esses desdobramentos revelam que nos EUA, após aquele período, a política de C&T tornou-se uma política de Estado, enquanto no Brasil essa “passagem” não ocorreu. E como visto acima isso não decorreu da falta, entre nós, de instituições transversais capazes de organizar a política enquanto política de Estado. As razões são bem mais complexas e dizem respeito às relações entre Sociedade e Estado, tema fundacional da ciência política. Numa perspectiva dialética, essas relações incluem um relacionamento bilateral, do Estado para a Sociedade e vice-versa. Nos EUA, não apenas porque o nível educacional da população era (e continua a ser) mais elevado do que entre nós, como também, na versão norte-americana autorreferente, foram os EUA que venceram a 2ª Guerra Mundial. Mais ainda, a venceram mediante a utilização de um artefato militar altamente tecnológico e derivado de conquistas científicas da física em décadas anteriores. Por outro lado, políticas econômicas sucessivas puderam sustentar esse novo status da política de C&T nos EUA. Se essa interpretação faz sentido, a relação dialética entre sociedade e Estado por lá incluiu, nos dois sentidos da relação, vetores subjetivos de orgulho nacional e vontade política de governos e valores objetivos de nível educacional e sustentação econômico-financeira da política.
As instabilidades da política de C&T no Brasil, que ainda não é uma política de Estado no sentido de estar situada no pequeno rol de políticas estratégicas vinculadas a um projeto nacional, derivam também de fatores subjetivos e objetivos no âmbito das relações entre a sociedade e o Estado brasileiro.
Na esfera subjetiva e no sentido da sociedade para o Estado, C&T não são consideradas itens prioritários na vida das pessoas e isso pode ser medido por algumas pesquisas de opinião já realizadas entre nós. Em 2018, portanto antes da pandemia de covid, foi publicado um texto com os resultados da percepção da população sobre a ciência. Nele, 61% da amostra declarou estar interessada ou muito interessada em ciência. Entretanto, apenas 13% souberam mencionar um cientista e 7% souberam mencionar uma instituição científica, o que sugere um interesse bastante superficial e, provavelmente, distorcido em relação ao tema. Para nós do campo da saúde, a boa notícia é que Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Vital Brasil e Miguel Nicolelis estiveram entre os cientistas mais citados. E que Fiocruz e Butantã pontificaram entre as instituições citadas xi. Já no sentido do Estado para a sociedade, no campo objetivo foram comuns as oscilações orçamentárias, contingenciamentos e outras medidas similares. E no terreno subjetivo, a pouca prioridade (vontade política) derivada em parte dessa baixa percepção da população em relação à importância da C&T.
3) Uma política de C&T em saúde (C&T/S)
Eu creio que devemos pensar mais em uma política de C&T/S para o país na qual o SUS ocupe um lugar central do que em uma política de C&T/S específica para o SUS. Essa diferenciação, que pode parecer apenas um jogo de palavras, tem o objetivo de ampliar as fronteiras da pesquisa prioritária em saúde para além daquela que o Ministério da Saúde possa apoiar diretamente. A maior parte da pesquisa de interesse do SUS será apoiada por agências e outros organismos fora do Ministério da Saúde ou em cooperação com ele.
A partir desse entendimento, penso que a política de C&T/S deve se orientar para diminuir a desigualdade social e promover a inclusão tanto quanto para aprimorar a capacidade de inovação e competitividade do Brasil no país e no mundo. Para isso, deve privilegiar a pluralidade nas abordagens científicas, enfatizar as tecnologias sustentáveis e valorizar as atividades de pesquisa que incorporem o conceito de saúde como direito. Como corolário dessas grandes linhas, deve estimular a internacionalização de suas atividades, inclusive na vertente de cooperação sul-sul e, no país, deve enfrentar as desigualdades regionais. Por outro lado, será importante defender a utilização de instrumentos de discriminação positiva no fazer científico e tecnológico (ações afirmativas). Uma política com essas características gerais vai além da conjuntura atual de reconstrução do país. As dimensões enunciadas acima são estruturantes para a construção de um caminho que poderá, a médio prazo e associada a outras políticas setoriais, conduzir a política de C&T/S a um nível estável e relevante de política pública. No limite, a um status de política de Estado.
Entendo que as prioridades de curto prazo são as que estão começando a ser realizadas, todas elas relacionadas à “arrumação da casa” e à retomada do Ministério da Saúde (MS) e do SUS como atores relevantes no cenário da pesquisa científica e tecnológica em saúde no país. Enfatizo a necessidade de refazer e/ou fortalecer a cooperação entre o MS e as agências de fomento vinculadas a outros ministérios e esferas de governo, em particular a FINEP, o CNPq, a CAPES, as FAP’s e a EMBRAPII mediante a participação em programas comuns de pesquisa como tem sido a tradição do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde (DECIT/MS) desde a sua criação, em 2000. Essa cooperação, além de propiciar um impacto positivo no aspecto orçamentário-financeiro, é também importante para a afirmação política do MS e do SUS como atores relevantes na política de C&T no Brasil. Nesse particular, será importante o envolvimento do MS com a organização da 5ª Conferência de Ciência, Tecnologia e Inovação, organizada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e que acontecerá em 2024.
Uma política de C&T/S onde o MS e o SUS cumpram um papel de destaque deve compreender a questão das prioridades de pesquisa de modo amplo, muito além do atendimento das necessidades operacionais do MS e do curto prazo. Suas prioridades devem ser construídas a partir de uma visão de conjunto da atividade de pesquisa científica e tecnológica realizada nas universidades e institutos de pesquisa, aí incluídas as transições saúde-doença, os sistemas e políticas de saúde e as relações entre saúde e sociedade. Embora o debate sobre a política de inovação esteja fora do escopo deste texto, vale frisar que o modo atual de organização das relações entre o conhecimento científico e tecnológico produzido naquelas instituições e a inovação levada a cabo nas empresas e sistemas de saúde deve ocupar um lugar importante nessa política, muito embora não exclusivo.
Referências
i Nature Briefing – [10 May 2023] Daily briefing: The unmistakable signature of a coveted quantum phenomenon. https://www.nature.com/articles/d41586-023-01596-8
ii “ An Entrepreneurial University is defined as a university that has the capacity to innovate, recognize and create opportunities, as well as working as a team, taking risks and responding to challenges. By itself, it seeks to discover a substantial change in the organizational character to reach a more promising posture for the future”. Klein, SB; Pereira, FCM – Entrepreneurial University: Conceptions and Evolution of Theoretical Models. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, vol. 14, núm. 4, pp. 20-35, 2020. https://www.redalyc.org/journal/4417/441765331003/html/#:~:text=An%20Entrepreneurial%20University%20is%20defined,risks%20and%20responding%20to%20challenges.
iii Guimarães, R. Pesquisa Translacional: Uma Interpretação. Ciênc. saúde coletiva 18 (6) • Jun 2013. https://www.scielo.br/j/csc/a/xYQKdDNpz6NkBrykdqxFqnz/?format=pdf&lang=pt
iv NIH, National Center for Advancing Translational Sciences. https://ncats.nih.gov/translation/spectrum
v Freeman C. The ‘National System of Innovation’ in historical perspective. Cambridge Journal of Economics 1995; 19(1):5-24. https://www.jstor.org/stable/23599563
vi Mazzucato M. O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs setor privado. São Paulo: 2014. https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13659.pdf
vii Aqui, políticas institucionais são diretrizes que expressam os parâmetros dentro dos quais as ações da instituição e de seus integrantes devem se desenvolver, nos limites de sua autonomia.
viii Smith, BLR – American Science Policy Since World War II. The Brookings Institution, Washington, DC, 1990. 230 pp. “A distinctive feature of American government since World War II has been the emergency of ’science policy’ as a focus of thougth and action”.