Uma espécie de mamífero que habitou o território do Brasil no período mesozoico conviveu com os dinossauros e a mais antiga já conhecida acaba de ser descrita. A descoberta foi publicada no dia 30 de maio na revista científica Royal Society Opens Science pela equipe do professor Max Langer, do Laboratório de Paleontologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP).
Segundo a paleontóloga Mariela Cordeiro de Castro, líder do estudo, o processo de descrição e comparação, que levou cerca de dois anos, foi possível a partir de um único fóssil, incompleto: um dente de 3,5 milímetros de comprimento, sem as raízes. “Apesar de parecer pouco, pudemos verificar por meio dele que se trata de um dos maiores mamíferos descritos para o Cretáceo (fim da era mesozoica)”, explica ela. No período, os mamíferos eram mais raros e pequenos, do tamanho de camundongos, pois ocupavam nichos não explorados pelos dinossauros, como os de animais noturnos, arborícolas ou fossoriais.
David Bowie – “A estimativa é de que ele era do tamanho de um gambá e, com respeito à forma, por meio de comparações, foi possível atribuí-lo a um grupo chamado Tribosphenida, que abarca os marsupiais (cangurus e gambás, por exemplo) e os placentários (mamíferos que possuem placenta, como os seres humanos)”, acrescenta a paleontóloga.
Desenvolvida com apoio de cientistas da Universidade Federal de Goiás, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), do Museu de La Plata (Argentina) e do Massachusetts Institute of Technology (EUA), a pesquisa também revelou que o animal viveu onde hoje é o noroeste do Estado de São Paulo entre 87 milhões e 70 milhões de anos atrás, antes da extinção dos dinossauros, há 66 milhões de anos.
Como o fóssil foi encontrado pouco antes da morte do roqueiro David Bowie, ídolo de Langer, os pesquisadores se inspiraram nele para nomear a espécie como Brasilestes stardusti, nome que faz alusão ao país de origem e ao personagem vindo do espaço que o astro criou para uma canção, o Ziggy Stardust.
Diferente de tudo – O trabalho teve financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e integra o projeto temático A Origem e Irradiação dos Dinossauros no Gondwana (Neotriássico – Eojurássico), coordenado por Langer. De acordo com ele, além de ser o primeiro mamífero descrito para o mesozoico brasileiro, o Brasilestes stardusti é um dos poucos desse período descobertos em regiões mais centrais da América do Sul. Fósseis argentinos foram achados anteriormente em formações geológicas na Patagônia, no sul do continente.
Langer ressalta que, além disso, o animal difere de todos os já identificados antes dele, indicando que possivelmente mamíferos placentários habitavam a América do Sul entre 87,8 milhões e 70 milhões de anos atrás. Fato considerado inusitado é que o mamífero mesozoico que guarda mais semelhanças com o registro fóssil brasileiro, o Deccanolestes, viveu em outra parte do mundo, na região da Índia, entre 70 milhões e 66 milhões de anos atrás.
Os fósseis mais antigos de mamíferos encontrados por aqui foram de tatus, no Rio de Janeiro, com cerca de 50 milhões de anos de idade, ou seja, da era cenozoica, que começou há 65,5 milhões de anos e se estende até a atualidade.
Novas questões – Portanto, a descoberta traz uma série de novas dúvidas para a ciência e ressalta a importância do Brasil para a compreensão da história evolutiva dos mamíferos. Mariela enumera algumas questões suscitadas: “Quando e como os mamíferos Tribosphenida chegaram à América do Sul? Vieram da América do Norte ou já estariam presentes no supercontinente Gondwana (que unia América do Sul, África, Austrália, Índia e Antártida)? Por que estavam ausentes em porções mais austrais do continente (especialmente na bem estudada Patagônia argentina)? Por que esses achados são tão raros? Eram os mamíferos de fato pouco abundantes ou algum outro motivo dificultava sua preservação? Enfim, são muitas questões por responder”, finaliza.
Simone de Marco
Imprensa Oficial – Conteúdo Editorial
O acaso na Ciência
A descoberta da nova espécie se deu quase por acaso. Mariela, professora na Universidade Federal de Goiás, em Catalão, e alguns outros cientistas levaram um colega para visitar a Fazenda Buriti, em General Salgado, onde nos últimos anos foram coletados diversos fósseis de crocodilos mesozoicos, incluindo esqueletos completos e cascas de ovos.
Estavam com foco nisso quando Júlio Marsola, pesquisador da FFCLRP-USP, avistou o dentinho. “Brinco que, naquele dia, ele gastou a sua quota de descobertas extraordinárias para toda uma vida – e olha que ele nem estuda mamíferos, mas dinossauros”, conta a colega.
Ele concorda, já que, segundo observou, se o dente permanecesse mais alguns dias exposto, seria levado pela chuva. Além disso, avistou algo realmente muito pequeno. “Quando Júlio e eu suspeitamos que se tratava de um mamífero, ficamos felizes mas reticentes, afinal achados desse tipo são extremamente raros”, acrescenta Mariela.
A confirmação veio após o envio do fóssil à Universidad Nacional de La Plata, por meio da análise dos doutores Eduardo Ortiz-Jaureguizar e Francisco Goin, especialistas em mamíferos mesozoicos. Para aprimorar ainda mais o estudo, Carolina Vieiyter, da mesma instituição, analisou a estrutura do esmalte dentário, que apresenta uma espessura muito mais fina do que a dos dentes de qualquer mamífero do período Cretáceo no registro fóssil.
“Ao final desse processo, ficou claro que o dente era diferente de tudo o que já fora descrito, ou seja, era uma espécie nova para a ciência”, informa Mariela. Segundo ela, para a reconstituição do paleoambiente em que o animal viveu, foram fundamentais as pesquisas do geólogo Alessandro Batezelli, da Unicamp, assim como as dos cientistas Jahandar Ramezani e Kaori Tsukui (do MIT) para a datação precisa das rochas arenosas de reconhecida riqueza paleontológica que cobrem boa parte do oeste paulista. “Chegou-se a uma idade máxima de 87 milhões de anos, sendo esta a primeira datação radioisotópica para todo o Grupo Bauru (unidade geológica que recobre os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Goiás)”, finaliza a paleontologista.