O Centro de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), de Campinas (SP), iniciou neste mês de abril a montagem de uma equipe de pesquisa e desenvolvimento que trabalhará com possíveis aplicações da física de plasmas para produção do bicombustível e também para melhorar o funcionamento do motor dos veículos.
A equipe será coordenada pelo engenheiro e militar Jayr de Amorim Filho, que acaba de ser contratado pelo centro. Até ir para o CTBE, ele trabalhava como professor e pesquisador do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Seus estudos sobre plasma no ITA já geraram uma patente.
Amorim Filho estruturou os trabalhos a ser desenvolvidos no CTBE em três grandes áreas. Para uma delas, que trata da ignição dos motores, foi obtido financiamento de R$ 2 milhões das Fundações de Amparo à Pesquisa dos Estados de São Paulo (Fapesp) e de Minas Gerais (Fapemig). O dinheiro vem do convênio estabelecido entre as duas fundações para financiar pesquisas conjuntas na área de bioenergia, uma das ações do Programa de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) da Fapesp.
Amorim Filho explica que plasma pode ser definido como o quarto estado da matéria. "No ensino fundamental, aprendemos que existem transições bem-definidas do sólido para o líquido e deste para o gasoso. O plasma não tem transição de fase como ocorre com outros estados da matéria", acrescenta. O plasma é definido como um outro estado por suas propriedades elétricas, magnéticas, ópticas, químicas e físicas diferentes do gás comum; e por ser muito reativo. "Os gregos já conheciam o plasma, eles falavam que a matéria na natureza tinha a forma de sólido, líquido, gasoso e fogo. O fogo é um plasma", comenta o pesquisador.
Esse termo da física tornou-se recentemente muito popular por causa das televisões de plasma. "Estamos falando do mesmo plasma da televisão, só que na TV são feitas várias pequenas descargas em pressão elevada, usando um gás raro, normalmente o xenônio. A indústria faz uma otimização para ter a sensibilização da tela, de forma a conseguir mostrar as imagens", diz.
Os plasmas podem ser naturais, como, por exemplo, o Sol, as estrelas e as nuvens de hidrogênio que permeiam o universo. A aurora boreal e o relâmpago também são manifestações de plasmas naturais. Ou podem ser artificiais, produzidos pelo homem. Como o plasma das televisões.
Aplicações dos plasmas
O termo plasma surgiu em 1921 e se refere à "disformidade" desse estado da matéria, que assume a forma do ambiente em que está contido. Os pesquisadores trabalham com dois tipos de plasmas: os quentes, que tentam imitar o Sol, e os frios, como o plasma usado em lâmpadas fluorescentes. Os pesquisadores começaram a trabalhar com a criação de plasmas em laboratório para aplicações civis e militares. O grande interesse inicial foi controlar esses plasmas para produzir eletricidade. A ideia surgiu nos anos 1950: fazer um reator que pudesse fundir isótopos de hidrogênio, e com isso produzir eletricidade de maneira controlada.
"Não deu certo porque esse plasma formado é muito instável, ele se choca com as paredes e 'morre' antes de produzir mais energia do que consome. Quem descobrir como controlá-lo ganha um Nobel", comenta Amorim Filho. Outras aplicações de plasmas são observadas hoje na medicina, em cateteres ou para resolver problemas como a cicatrização da pele, e ainda na odontologia, para tratamento de cáries.
Como os pesquisadores pretendem usar o plasma em etanol
Amorim Filho propôs ao CTBE que se trabalhe com três linhas de pesquisa envolvendo o plasma em etanol. A primeira linha é o estudo do plasma produzido no sistema de ignição dos automóveis. O que mecânicos e a população em geral costumam chamar de faísca, aquela pequena fagulha que ocorre na vela e provoca a combustão do etanol ou da gasolina no motor, é um plasma.
O CTBE pretende estudar e detalhar como ocorre a explosão do etanol dentro do pistão do motor. Para a gasolina já existe algum conhecimento, mas para o etanol ainda há muito que se fazer. "Embora todo mundo use carro, ninguém sabe muito bem como ele funciona, no detalhe, do ponto de vista microscópico. Temos algumas pistas, mas não há um trabalho sistemático", justifica.
Hoje os pesquisadores contam com técnicas, recursos, modelos numéricos teóricos para ajudá-los a modelar esse meio. A pesquisa envolvendo a ignição foi iniciada no ITA por Amorim Filho e agora será levada para o CTBE. Para essa linha, os pesquisadores do centro contarão com o recurso da Fapesp e da Fapemig. O parceiro em Minas Gerais é a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A pesquisadora Maria Cristina Andreolli Lopes é a responsável pelo convênio, da parte dessa universidade.
"Os mineiros estão trabalhando na parte de medições de seções de choque que são úteis para modelar esse meio", afirma. Seções de choque, em física de partículas, é a área que mede a probabilidade de ocorrência de uma colisão entre um feixe de partículas e outro. Os plasmas são muito reativos — ou seja, neles ocorrem muitas colisões. Já o pessoal de São Paulo vai olhar a questão da ignição propriamente dita. "O nosso problema no centro será o estudo do plasma formado na vela e a propagação dos radicais pelo plasma até surgir a próxima centelha", explica.
Para esse trabalho, o CTBE precisará de dados básicos, como saber a forma que os elétrons da faísca colidem com a molécula do etanol ali presente. Aqui entra o pessoal de Juiz de Fora e os físicos teóricos do centro, como o próprio diretor do CTBE, Marco Aurélio Pinheiro Lima, que trabalha com esses cálculos.
Também há grupos estudando o assunto nas Universidades Federais do Paraná (UFPR) e do ABC (UFABC), e a interação com esses pesquisadores deve contribuir para o avanço do projeto. Há também parceiros internacionais, na Universidade da Califórnia e no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech).
O plasma e o etanol
A segunda linha de pesquisa vai investigar como o plasma poderá ser usado para auxiliar os processos de hidrólise enzimática e fermentação da cana-de-açúcar. O processo de hidrólise, usado para produzir etanol a partir de açúcares extraídos da celulose das plantas, utiliza enzimas que interagem com a cadeia celulósica e ajudam a água a desconstruir os anéis da glicose, que depois será convertida em etanol por fermentação.
"Existem já algumas pistas de que o plasma, como esse estado da matéria rico em radicais, é bastante eficiente", aponta. No ITA, Amorim Filho construiu com sua equipe uma microtocha de plasma. Trata-se de uma pequena chama que gera todos os radicais do plasma. "A gente já sabe como produzir, quais as condições, fizemos diagnósticos ótimos de base", completa.
Mas qual a importância dos radicais presentes no plasmaω Na parede celular dos vegetais, há lignina — que endurece o caule e protege a planta contra agressões do meio externo. O problema é que a lignina também atrapalha o processo de hidrólise — justamente porque protege a celulose e, portanto, dificulta o acesso a ela. O plasma teria radicais ativos capazes de quebrar a lignina, expondo assim a celulose, que seria quebrada para extração das moléculas de glicose, o açúcar que será fermentado e convertido em etanol.
"Os radicais, os átomos excitados do plasma, chocam-se com a lignina e a desconstroem. Mas ninguém sabe como se faz isso, é algo que todos procuram hoje e que não é fácil de entender", aponta. Amorim Filho diz ter conhecimento de pesquisas feitas na Dinamarca mostrando que é possível usar o plasma para remover quase toda a lignina. Os norte-americanos também estão interessados nesse campo. "Tudo está começando hoje nesse assunto", diz.
Tratamento de superfícies
A terceira linha de pesquisa no CTBE envolvendo o plasma seria a de tratamento de superfícies. "Os reatores usados na planta-piloto serão submetidos a situações drásticas de funcionamento, como altas temperaturas e eventualmente o uso de um elemento químico mais agressivo. Pretendemos trabalhar o tratamento de superfícies depositando filmes ou mudando o estado da superfície de modo a diminuir a corrosão e aumentar a dureza", conta. Essa área, embora ainda dependa de muito desenvolvimento, já tem mais avanços do que as outras duas.
"Os problemas maiores estarão nas outras duas linhas de pesquisa, em especial na linha do estudo do plasma para processos de hidrólise e fermentação, sobre a qual falta literatura. E já temos estrutura para trabalhar na terceira linha, por conta de o CTBE estar instalado no complexo do LNLS [Laboratório Nacional de Luz Síncrotron]. Aqui já temos e podemos utilizar equipamentos como os microscópios eletrônicos de varredura, de força atômica", destaca. O CTBE ainda está em construção, em área vizinha ao LNLS.
Segundo o pesquisador, para a primeira e a terceira linhas de pesquisa já existe uma idéia do que será feito no CTBE. "A segunda, de interação do plasma com a lignina, com a celulose, com a cana de maneira geral, é a mais escondida para mim. Isso, por falta de literatura. A ignição também tem falta de literatura, mas é algo mais tratável, estamos mais acostumados, usamos motores há muito tempo." A interação de plasma com botânica é uma pesquisa muito desafiadora e estimulante, define Amorim Filho. "Se conseguirmos mostrar tudo isso que estamos querendo, as portas que se abrirão serão fantásticas. Até mais do que nas outras duas linhas de pesquisa", avalia.
O centro tem uma área prevista para a implantação física do laboratório que investigará o assunto plasma. "Queremos desenvolver toda a parte experimental dentro do CTBE", conta. O processo de contratação de pesquisadores para essa área vai respeitar a política do centro: primeiro admitir um pesquisador, com pós-doutorado, de preferência, que vai iniciar os trabalhos.
Passado o período de experiência, se o pesquisador realmente se identificar com as propostas do CTBE, ele será contratado. Alunos de doutorado também poderão trabalhar no projeto. E com nível de mestradoω "O problema do mestrado é que ele é muito rápido, normalmente o sujeito passa um ano fazendo o curso. Ele pode até fazer algo, mas em um problema muito específico, delimitado; o ideal é ter um sujeito fazendo doutoramento, porque a gente tem tempo para evoluir no assunto", justifica.
Política de parceria e propriedade intelectual
Essas pesquisas, como outras a ser desenvolvidas no CTBE, têm grande potencial de aplicação, já que a missão do centro é justamente fazer pesquisa avançada para manter a competitividade brasileira na produção de etanol. Por conta disso, inclusive, a entidade contratou, em meados de abril, a ex-diretora de Propriedade Intelectual e Desenvolvimento de Parcerias da Agência de Inovação Inova Unicamp, Rosana Ceron di Giorgio.
Ela é atualmente a responsável pela operação local da Imprimatur, empresa internacional de venture capital com sede em Londres. Rosana explicou que, com a crise, a Imprimatur se tornou ainda mais seletiva na busca por empresas nascentes com inovações radicais que possam se transformar em produtos ou serviços revolucionários.
Dessa forma, é possível para ela conciliar o trabalho na Imprimatur com a estruturação da política de parcerias e de propriedade intelectual do CTBE. Rosana foi indicada ao CTBE pelo diretor-executivo da Inova, Roberto Lotufo.