Notícia

Jornal do Comércio (RS) online

Centenário e morte

Publicado em 20 março 2008

O ano de 2008 assistirá a um sem-número de homenagens à passagem do centenário da morte de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). A revista Estudos avançados, da USP, publicou em sua edição 51 (maio-agosto de 2004) um conjunto de textos que recupera parte da herança deixada pelo grande escritor fluminense. Desses textos quero destacar o de João Roberto Faria, professor titular de Literatura Brasileira daquela universidade. Ele é autor de uma série de livros que traduzem suas pesquisas em torno do teatro brasileiro do período romântico-realista, um dos quais é Idéias teatrais: o século XIX no Brasil (Perspectiva/Fapesp, 2001).

No ensaio referido, Machado de Assis, leitor e crítico de teatro, Faria faz um acompanhamento da relação de Machado de Assis com o teatro, sob diferentes aspectos: a) num primeiro momento, é o crítico teatral; mais que isso, o militante que defende a constituição de um teatro essencialmente nacional e de uma dramaturgia brasileira; b) num segundo momento, quando Machado de Assis expande sua atividade jornalística também para a crítica literária em geral, abandona o enfoque exclusivo no teatro, mas começa a escrever suas peças teatrais, alcançando um êxito apenas comedido na época; mas, na avaliação de Faria, haveria alguns textos de Machado de Assis que deveriam ser revistos, talvez até reencenados sob novas perspectivas; c) a "comédia social" em que se constitui a maneira pela qual Machado de Assis estuda a sociedade de seu tempo (e que na série de artigos daquela revista, merece especial revisão através de artigo de Alfredo Bosi, que faz a releitura machadiana através do ensaio de Raymundo Faoro Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, felizmente, reeditado há pouco tempo, pois é texto fundamental mas que se achava sem reedição há muitos anos) transpõe para os romances aquelas práticas verificadas na cena dramática, mas que serão encontradas igualmente na vida cotidiana.

Na primeira tendência, a do Machado de Assis crítico teatral, temos um levantamento muito interessante das atividades que o escritor-jornalista desenvolveu, inclusive vindo a integrar a comissão censória do Conservatório Dramático. Machado escreveu artigos em jornais como o Correio Mercantil e o Diário do Rio de Janeiro, além de, nos primeiros tempos, ter assinado alguns textos também no Marmota fluminense, de Paula Brito, editor e promotor literário de jovens valores, em seu tempo, e, nos últimos anos de sua militância crítica, em O espelho, onde mais aprofundou suas idéias.

Fundamentalmente, o que ataca e o que defende Machado de Assis? Ele critica João Caetano, nosso primeiro grande ator, mas que, com o passar dos anos, sem qualquer renovação, tornara-se conservador. E defende as encenações realistas que o Ginásio Dramático apresentava, o chamado novo teatro que negava a encenação empostada e artificial, buscava o texto contemporâneo, sobretudo sob a influência da dramaturgia francesa de Dumas Filho e seus companheiros e, enfim, propiciava o desenvolvimento de enredos mais vinculados ao cotidiano.

Enquanto dramaturgo, Machado de Assis tratou de realizar - com coerência - aquilo que havia pregado anos antes. Assim, suas comédias partem dos melhores momentos de José de Alencar, que ele havia elogiado. Mas avançam, buscando refletir a respeito das contradições da sociedade em que vivia.

Relembro aqui uma ou duas montagens recentes que tivemos oportunidade de assistir, nos últimos anos, a partir de textos de Machado de Assis. Levando em conta a época em que ele escreveu, pode-se dizer que seus textos, num primeiro momento aparentemente muito literários e sem grandes tensões dramáticas, na verdade colocam em cena algumas das grandes contradições sociais de seu tempo, como ocorre com Quase ministro, dentre outras peças.

Na essência, Machado de Assis defende a coerência interna da obra. Critica a peça de ocasião. Desvencilha-se do discurso ruidoso e enfático. Faz peça de caracteres. Mas não quer necessariamente a peça de tese: o que pretende é reencontrar a vida, na cena teatral. É muito provável que sua decisão de escrever para o teatro não se ligue, contudo, apenas à sua prática anterior da crítica, mas tenha advindo, especialmente, da visão da sociedade que ele possuía, marcada pelo estereótipo, pela falsidade, pelo "jogo de cena" tão típico das comédias de costumes que começaram a se firmar então. Rechaçando as "revistas" que haviam caído no gosto do público, queria Machado de Assis um teatro de qualidade. Por isso, no momento em que comemoramos o centenário de sua morte, creio que seria interessante fazer-se uma revisão dessa dramaturgia, que foi pouco visitada durante o século XX: o sucesso que o bruxo do Cosme encontra com sua ficção e sua crônica, não tem conhecido na dramaturgia. Quem sabe o século XXI vai fazer-lhe alguma justiça?