A epidemia atual de oropouche é causada por uma nova variante do arbovírus OROV capaz de se replicar até cem vezes mais do que a original e de evadir parte da resposta imune. As conclusões são de um estudo divulgado em versão pre-print (artigo sem revisão por pares) no repositório medRxiv.
A febre do oropouche faz parte do rol de doenças negligenciadas, como a malária e outras arboviroses (dengue, por exemplo). É transmitida por moscas hematófogas da espécie Culicoides paraensis e causa dor de cabeça, artralgia, mialgia, náusea, vômito, calafrios e fotofobia – mas também pode levar a complicações mais graves, como hemorragia, meningite e meningoencefalite.
Apesar de documentada na América do Sul desde a década de 1950, a doença apresentou um aumento substancial de casos entre novembro de 2023 e junho de 2024 no Brasil, Bolívia, Colômbia e Peru. Em território nacional, foram detectadas infecções autóctones em áreas anteriormente não endêmicas nas cinco regiões, com casos relatados em 21 unidades federativas e aumento de quase 200 vezes na incidência em comparação com a última década.
Para investigar os fatores virológicos por trás desse ressurgimento, pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), de São Paulo (USP), do Kentucky, do Texas (Estados Unidos) e da Federal de Manaus (Ufam), além do Imperial College London (Reino Unido) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), combinaram dados genômicos, moleculares e sorológicos de OROV do período entre 1º de janeiro de 2015 e 29 de junho de 2024, além de caracterização in vitro e in vivo, em um estudo financiado pela FAPESP (projetos 18/14389-0, 22/00723-1, 22/10408-6 e 23/11521-3).
O primeiro passo foi testar por PCR um grupo de 93 pacientes do Amazonas com doença febril não identificada e negativos para Malária, entre dezembro de 2023 e maio de 2024. O resultado foi positivo para OROV em 10,8% dos casos e, posteriormente, foi isolado o soro de sete pacientes em culturas de células.
Em seguida, esses isolados foram usados para avaliar a capacidade replicativa em diferentes células – de primatas e humanos – sempre em comparação com um isolado antigo de OROV. Por fim, foi avaliada a capacidde de ambos os vírus serem neutralizados por anticorpos presentes no soro de camundongos previamente infectados com o OROV e de humanos convalescentes para linhagens anteriores, infectados até 2016. Para isso, foi feito um teste de neutralização por redução de placas (PRNT50), que mede a redução do número de partículas virais viáveis formadas após a incubação com diferentes diluições do soro dos pacientes ou de camundongos.
“Percebemos que o novo OROV apresenta replicação aproximadamente cem vezes maior em comparação com o protótipo”, explica Gabriel C. Scachetti, pesquisador do Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve) da Unicamp e um dos autores do estudo. “Além disso, produziu 1,7 vez mais placas, de tamanhos 2,5 vezes maiores, um indício de maior virulência.”
“Também infectamos camundongos com as duas cepas e vimos que o vírus antigo não protege contra o novo – a redução na capacidade de neutralização foi de pelo menos 32 vezes”, completa Julia Forato, também autora e pesquisadora do Leve.
Saúde pública
“Além de traçar um panorama da epidemia de oropouche, o trabalho apresenta possíveis explicações para o aumento no número de casos, servindo de base para ações de controle epidemiológico”, afirma José Luiz Proença Módena, professor do Instituto de Biologia da Unicamp (IB-Unicamp), líder do Leve e um dos coordenadores do estudo. “Se o novo vírus escapa da proteção em áreas com alta soroprevalência, há maior probabilidade de infecções e transmissão, inclusive com disseminação para outras regiões do Brasil, portanto precisamos confirmar e monitorar casos positivos e lançar mão de ferramentas para diminuir o risco de transmissão.”
“Essa epidemia está longe de acabar e tem potencial de causar estragos em áreas onde não havia qualquer circulação do vírus”, alerta o pesquisador.
As professoras Ester Sabino e Camila Romano, ambas da Faculdade de Medicina da USP, participaram do estudo. William Marciel de Souza (Universidade de Kentucky) e Pritesh Jaychand Lalwani (Ufam e Fiocruz Manaus) também são coautores.