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São Paulo (Agência Fapesp) - Hábil em encontrar pessoas talentosas, que deixa trabalhando com liberdade, o químico Tetsuo Yamane formou no Brasil um grupo de pesquisa já com ramificações em outros países que em poucos anos levou à identificação das propriedades bastante raras de uma proteína do veneno de uma serpente típica do Cerrado e da Caatinga, a cascavel. A crotamina, como essa proteína é chamada, atravessa a membrana celular e transporta genes ou outras moléculas para o interior e mesmo para o núcleo das células — não qualquer célula, só as que estão se multiplicando. Por essa razão, essa proteína pode ser usada em diagnósticos de doenças, para conduzir medicamentos e, a julgar pelos experimentos mais recentes, para destruir tumores.
Yamane, hoje com 76 anos, à frente de um laboratório de biotecnologia no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e no Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), começou a criar novas vertentes para o estudo da crotamina lá por 1993, quando pensava em voltar ao Brasil, depois de 40 anos vivendo nos Estados Unidos. Isolada na década de 1950 pelo bioquímico José Moura Gonçalves, a crotamina já havia sido bastante estudada, em razão de sua capacidade de paralisar os músculos de roedores. Quarenta anos depois parecia não oferecer mais grandes enigmas — a não ser para um químico, filho de japoneses, cuja ousadia havia sido nutrida dia a dia pela convivência com cientistas do nível de Richard Feyman e Linus Pauling, durante a graduação e a pós no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech); sua capacidade de fazer perguntas novas aprimorou-se ainda mais ao longo dos quase dez anos de trabalho com os físicos do Laboratórios Bell, onde foram inventados o transistor, o laser, o circuito integrado e a comunicação por satélite. Ao conhecer a crotamina, Yamane se deixou levar pelas dúvidas sobre os mecanismos então ainda nebulosos pelos quais a proteína age no organismo e pelas possíveis interações dessa molécula cuja estrutura lembra um dragão de lã.
Interferência da crotamina na divisão celular
A crotamina poderia interferir na divisão das células? Foi com essa pergunta que Yamane, desde 1994 instalado no Instituto Butantan e então trabalhando apenas com os bioquímicos Gandhi Rádis-Baptista e Álvaro Prieto da Silva, atraiu o interesse do biólogo celular Alexandre Kerkis e de sua esposa, a bióloga Irina. Ambos são russos. Haviam trabalhado em um dos maiores centros de pesquisa da Rússia, na Sibéria, antes que a perestróica fragmentasse a estrutura de produção de conhecimento científico por lá. Depois de uns tempos na Universidade Estadual do Norte Fluminense, os Kerkis vieram em 1999 para São Paulo. Instalaram-se no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e começaram a estudar células-tronco embrionárias de camundongo. Foi quando conheceram Yamane e, em conjunto, descobriram novas propriedades da toxina que parecia não ter mais nada para contar. Em doses muito baixas, verificaram, a crotamina chegava rapidamente — em apenas cinco minutos — ao núcleo não só de células-tronco embrionárias de camundongos como também a outros tipos de células.
Contra dor e parasitas
Foi também no Butantan que outra equipe encontrou na cascavel uma substância com um poder de analgesia 600 vezes maior que o da morfina e aparentemente sem efeitos colaterais relevantes. Em um experimento realizado na USP, o veneno da Crotalus durissus terrificus, que rasteja pelas terras do sul e oeste do Brasil, foi o que se mostrou mais eficaz contra o parasita causador da leishmaniose, em comparação com o de outras duas subespécies, uma típica da Caatinga e outra das regiões Sudeste e Centro-Oeste. As frações mais ativas nos testes em células e em camundongos foram a girotoxina e a crotamina.
Componente majoritário do veneno da cascavel, a crotamina é uma proteína pequena. Tem apenas 42 aminoácidos, quase tanto quanto a insulina, o hormônio de 51 aminoácidos que controla a quantidade de açúcar no sangue. Mas é minúscula se comparada, por exemplo, com a hemoglobina, a portentosa molécula de quatro cadeias de 140 aminoácidos cada uma que transporta oxigênio a toda célula do corpo. Como é pequena, é compreensível que atravessasse facilmente a membrana das células. Mas como?
Eis a resposta: unindo-se a moléculas da superfície celular conhecidas como proteoglicanos de heparam-sulfatos, que transitam pelo interior da célula. Não se trata de uma ligação fortuita. "O momento em que as células mais produzem heparam-sulfatos é durante o ciclo reprodutivo", conta o bioquímico Ivarne Tersariol, professor da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC).