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Correio da Paraíba

Cascavel ajuda na cura do câncer (1 notícias)

Publicado em 09 de setembro de 2007

Por Carlos Fioravanti, revista Pesquisa FAPESP

do Portal Correio.

São Paulo (Agência Fapesp) - Hábil em encontrar pessoas talentosas, que deixa trabalhando com liberdade, o químico Tetsuo Yamane formou no Brasil um grupo de pesquisa já com  ramificações em outros países que em poucos anos levou à identificação das propriedades bastante raras de uma proteína do veneno de uma serpente típica do Cerrado e da Caatinga, a cascavel. A crotamina, como essa proteína é chamada, atravessa a membrana celular e transporta genes ou outras moléculas para o interior e mesmo para o núcleo das células — não qualquer célula, só as que estão se multiplicando. Por essa razão, essa proteína pode ser usada em diagnósticos de doenças, para conduzir medicamentos e, a julgar pelos experimentos mais recentes, para destruir tumores.

Yamane, hoje com 76 anos, à frente de um laboratório de biotecnologia no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e no Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), começou a criar novas vertentes para o estudo da crotamina lá por 1993, quando pensava em voltar ao Brasil, depois de 40 anos vivendo nos Estados Unidos. Isolada na década de 1950 pelo bioquímico José Moura Gonçalves, a crotamina já havia sido bastante estudada, em razão de sua capacidade de paralisar os músculos de roedores. Quarenta anos depois parecia não oferecer mais grandes enigmas — a não ser para um químico, filho de japoneses, cuja ousadia havia sido nutrida dia a dia pela convivência com cientistas do nível de Richard Feyman e Linus Pauling, durante a graduação e a pós no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech); sua capacidade de fazer perguntas novas aprimorou-se ainda mais ao longo dos quase dez anos de trabalho com os físicos do Laboratórios Bell, onde foram inventados o transistor, o laser, o circuito integrado e a comunicação por satélite. Ao conhecer a crotamina, Yamane se deixou levar pelas dúvidas sobre os mecanismos então ainda nebulosos pelos quais a proteína age no organismo e pelas possíveis interações dessa molécula cuja estrutura lembra um dragão de lã.


Interferência da crotamina na divisão celular

A crotamina poderia interferir na divisão das células? Foi com essa pergunta que Yamane, desde 1994 instalado no Instituto Butantan e então trabalhando apenas com os bioquímicos Gandhi Rádis-Baptista e Álvaro Prieto da Silva, atraiu o interesse do biólogo celular Alexandre Kerkis e de sua esposa, a bióloga Irina. Ambos são russos. Haviam trabalhado em um dos maiores centros de pesquisa da Rússia, na Sibéria, antes que a perestróica fragmentasse a estrutura de produção de conhecimento científico por lá. Depois de uns tempos na Universidade Estadual do Norte Fluminense, os Kerkis vieram em 1999 para São Paulo. Instalaram-se no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e começaram a estudar células-tronco embrionárias de camundongo. Foi quando conheceram Yamane e, em conjunto, descobriram novas propriedades da toxina que parecia não ter mais nada para contar. Em doses muito baixas, verificaram, a crotamina chegava rapidamente — em apenas cinco minutos — ao núcleo não só de células-tronco embrionárias de camundongos como também a outros tipos de células.


Contra dor e parasitas

Foi também no Butantan que outra equipe encontrou na cascavel uma substância com um poder de analgesia 600 vezes maior que o da morfina e aparentemente sem efeitos colaterais relevantes. Em um experimento realizado na USP, o veneno da Crotalus durissus terrificus, que rasteja pelas terras do sul e oeste do Brasil, foi o que se mostrou mais eficaz contra o parasita causador da leishmaniose, em comparação com o de outras duas subespécies, uma típica da Caatinga e outra das regiões Sudeste e Centro-Oeste. As frações mais ativas nos testes em células e em camundongos foram a girotoxina e a crotamina.

Componente majoritário do veneno da cascavel, a crotamina é uma proteína pequena. Tem apenas 42 aminoácidos, quase tanto quanto a insulina, o hormônio de 51 aminoácidos que controla a quantidade de açúcar no sangue. Mas é minúscula se comparada, por exemplo, com a hemoglobina, a portentosa molécula de quatro cadeias de 140 aminoácidos cada uma que transporta oxigênio a toda célula do corpo. Como é pequena, é compreensível que atravessasse facilmente a membrana das células. Mas como?

Eis a resposta: unindo-se a moléculas da superfície celular conhecidas como proteoglicanos de heparam-sulfatos, que transitam pelo interior da célula. Não se trata de uma ligação fortuita. "O momento em que as células mais produzem heparam-sulfatos é durante o ciclo reprodutivo", conta o bioquímico Ivarne Tersariol, professor da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC).