Unesco faz sete recomendações para reduzir a lacuna de gênero em ciências, tecnologia, engenharia e matemática
A presença feminina nas ciências exatas tem origem nos tempos remotos do Antigo Egito. Foi por volta do ano 355, em Alexandria, que nasceu Hipátia, a primeira matemática da história, que inventou o densímetro, um instrumento para medir a densidade de líquidos.
Quase dois milênios depois, as mulheres ainda lutam por um lugar ao sol, sobretudo nas áreas representadas pela sigla Stem, abreviação de ciências, tecnologia, engenharia e matemática. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apenas 30% dos cientistas no mundo são mulheres, e o porcentual é ainda menor nos cargos de liderança e coordenação de pesquisa.
O acesso desigual entre homens e mulheres na carreira científica e acadêmica tem sido objeto de estudo por muitos anos, segundo Sandra Unbehaum, mestre em Sociologia, doutora em Educação e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, onde estuda as relações de gênero, raça e etnia. A cientista social foi uma das autoras do levantamento "Elas nas Ciências: um estudo sobre equidade de gênero no ensino médio", quando mapeou dados relacionados ao tema no Brasil e no mundo nas áreas Stem.
Segundo a pesquisadora, uma hipótese para o baixo envolvimento das mulheres no campo das ciências exatas e tecnologia é a concentração feminina nas áreas relacionadas com o cuidado, como enfermagem, psicologia e certas áreas da saúde, um fenômeno observado no mundo todo. "Temos mais de duas décadas de programas e políticas de ação afirmativa para incentivar a equidade de gênero, mas é preciso ter paciência histórica porque os movimentos de avanço são lentos", ela diz. Tornar-se cientista, afirma Sandra, implica investimento e dedicação de pelo menos mais dez anos de estudo depois do ensino médio, incluindo graduação, mestrado e doutorado.
Mulheres na academia
No Brasil, de acordo com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), as mulheres somam 43,7% das pesquisadoras. No entanto, menos de 10% dos membros da Academia Brasileira de Ciências são mulheres e cerca de 20% ocupam postos de coordenação de projetos temáticos na Fapesp, por exemplo.
Um relatório da Elsevier sobre a jornada do pesquisador pelas lentes de gênero, realizado em 15 países, incluindo o Brasil, mostra que, embora a participação feminina nas ciências exatas esteja aumentando, a desigualdade em relação aos colegas do gênero masculino permanece quando o assunto são publicações, citações de artigos, bolsas e projetos de pesquisa.
Uma das hipóteses para isso são os estereótipos sobre as funções sociais de homens e mulheres. Apesar de o número de mulheres bolsistas de pesquisa ser expressivo em períodos de graduação e pós-graduação, esse número diminui conforme a faixa etária aumenta. Ou seja, conforme a mulher se aproxima da maternidade, menos chances como pesquisadora ela terá, aponta Roseli de Deus Lopes, professora livre-docente da Escola Politécnica e vice-diretora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP).
Maternidade e carreira
O tabu da maternidade é uma questão mundial, mas só recentemente surgiram ações e políticas efetivas para resolver esse entrave, que funciona como barreira ao avanço da participação feminina. Uma ação bem-sucedida foi a campanha Maternidade no Lattes, promovida pelo grupo Parent in Science, que conseguiu a inclusão dos períodos de licença-maternidade na plataforma Lattes, a base de dados alimentada pelos próprios pesquisadores com informações sobre seus currículos e grupos de pesquisa dos quais participam.
A mudança tem importância porque uma das formas de avaliação para cientistas e acadêmicos que concorrem a bolsas, editais ou projetos de pesquisa é a produção científica, medida principalmente pela publicação de artigos. Uma mulher que precisou pausar sua carreira para cuidar dos filhos perde chances de se candidatar, o que pode comprometer para sempre seu sucesso como pesquisadora.
Algumas responsabilidades recaem mais fortemente para as mulheres, afirma Roseli, entre elas o cuidado com a casa, com os filhos e com os idosos. "Em países como o nosso, em que as tarefas não são divididas igualmente entre homens e mulheres, há uma sobrecarga para as mulheres, o que atrapalha a carreira acadêmica", ela diz.
Por isso, Roseli defende a profusão de editais de pesquisa específicos para mulheres, com o intuito de tentar reverter o quadro de desigualdades históricas e conseguir maior equilíbrio de participação. Um exemplo é o edital intitulado "Mulheres e Meninas na Ciência: o futuro é agora", lançado pela Universidade de Brasília (UnB), e que busca fomentar projetos de extensão para incentivar a participação feminina nas áreas de ciência e tecnologia. "Há um número expressivo de meninas que terminam o ensino médio e ingressam no ensino superior e, à medida que elas se aproximam da idade de maternidade, acabam sendo prejudicadas", afirma Roseli.
Políticas de diversidade não são apenas uma questão de justiça histórica, argumenta a especialista da área de tecnologia. "É cientificamente comprovado que times mais diversos são uma fortaleza, tanto no ambiente acadêmico quanto no ambiente das empresas, e são fundamentais também para que as mulheres consigam ter desempenho e salários compatíveis", diz Roseli. Ela conta que na escola de engenharia da USP, onde atua, há 20% de meninas nos cursos. E dependendo da especialidade, esse número é bem menor.
Quando se trata do recorte racial, a situação é ainda pior. Estima-se que a participação de mulheres negras no Brasil representa apenas 3% dos orientadores de doutorado. Ainda há muito caminho pela frente quando se trata de igualdade de oportunidades.
Cinco cientistas que fizeram história
Conheça exemplos de mulheres que tiveram reconhecimento na área
Ada Lovelace (1815-1852) - considerada a primeira programadora de computadores da história. Escreveu o primeiro algoritmo destinado a ser processado por uma máquina.
Marie Curie (1867-1934) - física e química polonesa pioneira no estudo da radiação. Sua descoberta de dois elementos radioativos (rádio e polônio) lançou as bases da ciência nuclear moderna e lhe deu direito a dois prêmios Nobel, de Física, em 1903, e Química, em 1911.
Nise da Silveira (1905-1999) - médica brasileira que mudou a maneira de encarar doenças psiquiátricas ao se opor às práticas usuais de tratamento. Em vez de técnicas como eletrochoque, camisas de força e isolamentos, Nise usou terapias artísticas.
Johanna Döbereiner (1924-2000) - agrônoma brasileira pioneira em biologia do solo. Sua pesquisa sobre fixação de nitrogênio foi fundamental para o Brasil se tornar grande produtor agrícola, e rendeu uma indicação ao Nobel de Química de 1997.
Márcia Barbosa (1960) - física especializada em estruturas complexas da molécula de água, que podem ajudar a resolver os problemas de escassez de água doce. Membro da Academia Brasileira de Ciências e considerada pela ONU Mulheres uma das cientistas memoráveis, recebeu o Prêmio L'Oréal-Unesco para Mulheres na Ciência.
As recomendações da Unesco para reduzir a lacuna de gênero em ciências, tecnologia, engenharia e matemática
1 Mudar a percepção, atitudes, comportamentos, normas sociais e estereótipos em relação às mulheres na sociedade.
2 Envolver meninas e mulheres jovens nas matérias de ciências, tecnologia, engenharia e matemática (Stem) em todas as etapas da educação, desde o início do fundamental.
3 Atração, acesso e retenção de mulheres no ensino superior Stem em todos os níveis.
4 Igualdade de gênero na progressão da carreira de cientistas e engenheiros.
5 Promover a dimensão de gênero nos conteúdos, nas práticas e agendas de pesquisa.
6 Promover a igualdade de gênero na elaboração de políticas relacionadas a Stem.
7 Promover a igualdade de gênero nas atividades de empreendedorismo e inovação de base científica e tecnológica.