Notícia

Nexo Jornal

Câmeras nos uniformes policiais: investimento político, ganhos sociais e jurídicos (1 notícias)

Publicado em 20 de janeiro de 2023

Há oito anos uma abordagem policial mudaria completamente a vida de seis pessoas, duas delas de maneira irreversível. O episódio, que ficou conhecido como a “farsa do réveillon de 2015”, lançou luz sobre os mais viscerais desafios da responsabilização jurídica quando a polícia mata. No entanto, quando olhamos para o presente, passado mais um réveillon, o que se nota é que temos a receita perfeita para que mais episódios como aquele ocorram. As body cams – câmeras corporais nos uniformes policiais – que poderiam alimentar desfechos diferentes das absolvições sistemáticas, comum em casos de letalidade policial, seguem sob ataque. Mas, por quê? Por que ainda encontramos tamanha resistência na implementação desta importante ferramenta de monitoramento do trabalho policial? Neste texto, enumero quatro explicações à resistência social para a inserção e institucionalização de mais transparência na atuação policial, através das Body-Worn Cameras, especificamente na Polícia Militar de São Paulo.

Quem acompanhou de perto as eleições no Brasil sabe que o uso das câmeras nos uniformes policiais alimentou parte do debate eleitoral – o que foi inclusive destaque na imprensa estrangeira. A promessa do então candidato, agora governador Tarcísio de Freitas, de “Rever a política das câmeras corporais” 1, mesmo diante das estatísticas que provaram ter havido uma redução de 30% nas mortes decorrentes de intervenção policial naquele estado, em 2021, explicita uma descrença estrutural de que a Polícia pode ser transformada. E como esse fato pode ser explicado? Através dos insumos produzidos na pesquisa “Institutional design for accountability of the police that kills: possibilities and limits in racially unequal democracies”2, e de dados da Plataforma Justa, nos voltamos para as possíveis explicações.

A primeira razão que pode explicar esse desinvestimento político nas body cams é o longo histórico de exposição social à violência incontida. Em 1997, a sociedade paulista acompanhou, em horário nobre da TV brasileira, imagens de um cinegrafista amador que flagrou abusos – injúrias, lesões corporais e até um homicídio – cometidos por policiais durante uma operação na Favela Naval. Embora o caso tenha impulsionado mudanças institucionais iniciadas com os desdobramentos do Massacre do Carandiru, em 1992, aquelas imagens alimentaram uma audiência sedenta por apreciar atos violentos contra negros, pobres e minorias em geral, e para isso, não precisamos de body cams. Imagens de violência policial – produzidas por celulares ou câmeras de vigilância privada – são rotineiramente transmitidas em rede nacional e local, porém pouco se sabe sobre as medidas tomadas, ou não, para responsabilizar os agentes pelos seus atos. Além disso, ao lado da violência policial, somos diariamente inundados de casos de tortura, homicídio, feminicídio, racismo e toda a sorte de violência cometidos e aplaudidos por uma sociedade que se beneficiou por mais de 350 anos da escravidão de pessoas negras e atualizou seu código de violência nos mais de vinte anos de ditadura militar.

A segunda razão é a sensação de impunidade experimentada por familiares de vítimas da violência policial. As mães negras que enfrentam a batalha pela responsabilização por atos abusivos e ilegais, que tenham ou não causado a morte de seus filhos, encaram uma luta inglória no Brasil. Os nós institucionais que blindam a Polícia fazem com que muitas dessas mulheres empreguem toda a sua vida na luta por justiça e poucas ainda estarão saudáveis quando o veredito absolver os réus, muitas serão paradas com o arquivamento dos inquéritos – e é preciso que se diga, as mães brancas experimentam o mesmo fel, mas certamente em menor frequência, porque mesmo com depoimentos de amigos, familiares, imagens de vigilância privada, ou até mesmo quando o policial confessa que atirou porque estava com raiva, como aconteceu na farsa do réveillon, nada disso garante uma condenação, conforme documentamos no livro “Justiça e letalidade policial”.

A terceira razão diz respeito à natural resistência dos profissionais atingidos pelas body cams. Policiais ou qualquer outra categoria profissional que exerce cargo público podem efetivamente rechaçar instrumentos que promovam o registro de toda e qualquer ação que eles possam realizar, e não necessariamente porque querem esconder eventual ato ilícito e abusivo – afinal de contas, muitos desses atos são protegidos por uma cultura institucional e por uma legislação que ampara e justifica esses mesmos atos. Mas porque eles têm a certeza de que há uma invasão injusta de privacidade no seu cotidiano de trabalho. “Eu quero ter a tranquilidade de conversar algo com meu colega sobre o que ocorreu no meu final de semana”, ou saber que “não serei mal interpretado por alguém que não conhece o protocolo interno”, conforme me relatou um policial. São temores reais que só saberemos se e quando acessarmos o sujeito que está por trás da instituição. Sem fazer esse esforço não há meios de construir mudanças na Polícia.

Por fim, cabe explorar a dimensão orçamentária. Segundo levantamento realizado pela Plataforma Justa 3, em 2021, o governo de João Dória criou a Ação de governo n. 2643 que empenhou R$ 9,11 milhões para assegurar a implementação do projeto de câmeras corporais portáteis, no âmbito da Polícia Militar. Para 2022, o valor empenhado saltou para R$ 68,74 milhões. Em novo ato do Poder Executivo, houve a contratação de uma empresa para execução de serviços, ou seja, o Estado não adquiriu os equipamentos, apenas o serviço de “Gestão, captação, transmissão, armazenamento, custódia e compartilhamento, de evidências digitais por câmeras operacionais portáteis”, no valor de R$ 165,7 milhões por 30 meses. A Lei Orçamentária de 2022 reservou R$ 86,1 milhões para executar o contrato. Mas ao que correspondem todos esses valores? significa que a implementação das body cams representa 1% do Orçamento da Polícia Militar e 0,03% do Orçamento total do Estado para 2022. Isso significa que o mesmo estado que investiu R$13,8 bilhões de reais nas suas polícias resiste em investir o mínimo para que saibamos o que essa mesma polícia tem feito nas ruas com todo esse dinheiro público.

Sabemos que as body cams são preciosas para aumentar a transparência pública, qualificar as provas judiciais e administrativas, e potencialmente tornar as ocorrências menos letais para policiais e moradores, valores importantes na construção de uma democracia. Mas eu não tenho dúvidas que, para alcançarmos esse patamar social, precisamos fazer investimento de várias ordens, e isso passa, necessariamente, pela (re)visão dos elementos que alimentam e enrijecem a descrença estrutural na Polícia.

BIBLIOGRAFIA

Ferreira, Poliana da Silva. 2021. Justiça e letalidade policial: responsabilização jurídica e imunização da polícia que mata. Editora Jandaíra.

Poliana Ferreira é doutoranda em Direito na FGV-SP. Realiza estágio doutoral no Ash Center for Democratic Governance and Innovation, na Harvard Kennedy School e no Hutchins Center for African & African American Research da Harvard University (2022/2023). Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV. Bolsista da Fapesp (Processo n. 2021/12667-6).

Os artigos publicados na seção Opinião do Nexo Políticas Públicas não representam as ideias ou opiniões do Nexo e são de responsabilidade exclusiva de seus autores.