Partidos de oposição pedem que a PGR avalie a conduta dos parlamentares
O lamentável ataque racista protagonizado pelos parlamentares acabou por obscurecer uma das mais relevantes conquistas obtidas pelo movimento negro no Brasil, último país das Américas a abolir formalmente a escravidão. De acordo com o relatório “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, lançado recentemente pelo IBGE, pela primeira vez na história os estudantes pretos e pardos passaram a compor a maioria nas universidades públicas brasileiras (50,3%), em 2018.
A Lei nº 12.711, sancionada por Dilma Rousseff em 2012, garante a reserva de metade das vagas em cursos de graduação de universidades federais a estudantes que cursaram o Ensino Médio integralmente na rede pública. As cotas raciais incidem sobre essas matrículas, e as instituições de ensino devem levar em conta, na hora de preenchê-las, o porcentual de cidadãos autodeclarados pretos, pardos e indígenas no estado em que estão localizadas. “O problema é que as fraudes abundam. Em cursos mais concorridos, como Medicina, às vezes a maioria das cotas é preenchida por brancos fraudadores, que se declaram pardos para se beneficiar indevidamente da política afirmativa”, denuncia o frei David Santos, diretor-executivo da Educafro, ONG dedicada à democratização do acesso ao Ensino Superior no Brasil. “As universidades não estão cumprindo o seu dever de fiscalizar a execução das ações afirmativas. Por isso, em 2020, cogitamos apresentar denúncias ao Ministério Público contra reitores por improbidade administrativa.”
Beneficiária das cotas, a pesquisadora Tamiles Alves confirma a dificuldade. Nascida em Ubatã, município de 25 mil habitantes no litoral baiano, ela conseguiu graduar-se em Comunicação Social e fazer mestrado pela UFBA, financiada por uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia. Recentemente, foi aprovada em um programa de doutorado em políticas públicas na USP, mas desta vez não obteve o apoio de qualquer agência de fomento, nem das federais CNPq e Capes nem da estadual Fapesp. “Tenho contrato de trabalho temporário com um centro cultural, mas daqui a três meses isso acaba. Não sei o que fazer para me sustentar.” Atualmente, ela vive de favor na casa das irmãs no Jardim Ângela, um dos bairros mais pobres e violentos da capital paulista.
“O fato de ter 50,3% de negros nos cursos de graduação não quer dizer que as universidades públicas estão oferecendo acesso equitativo”, acrescenta Edneia Gonçalves, da Ação Educativa. “A permanência passa por numerosos desafios que não se limitam à questão econômica. Vou dar um exemplo didático. Em 2003, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi alterada, e passou a prever o ensino de história e cultura africana nas escolas. Mas as universidades não modificaram os seus conteúdos para formar os professores da Educação Básica. Permanecemos com um currículo eurocêntrico.”
“O racismo é um sistema de dominação social que opera nos planos comportamental, cultural e institucional. Muita gente não percebe, mas uma das formas mais comuns de mascarar o problema é reduzi-lo às condutas individuais, quando as práticas discriminatórias estão entranhadas nas instituições”, afirma o advogado Adilson Moreira, doutor em Direito Constitucional Comparado pela Universidade Harvard e professor da Universidade Mackenzie. “Hoje, em grande parte das ocupações de nível superior, as contratações ocorrem por meio das redes de relacionamento. Quando o filho precisa de estágio em um escritório de advocacia, o pai médico passa a mão no telefone e pede para o amigo do clube empregá-lo. Depois retribui o favor quando a filha desse amigo precisar de indicação para a residência clínica. Como os brancos costumam ter, em seus círculos de amizades mais íntimas, outros brancos, o favoritismo racial persiste.”
(Editora Letramento), Moreira presta consultoria para companhias que desejam aumentar a participação de minorias em seus quadros de funcionários. “Um número cada vez maior de empresas busca adotar modelos de governança corporativa antidiscriminatórios, mas o caminho é longo”, afirma. “O Estado pode e deve, porém, criar programas de incentivos tributários para que as organizações adotem programas de inclusão, garantindo acesso equitativo às oportunidades para negros, mulheres, LGBTs e outros grupos.” De fato, com um legado de três séculos e meio de escravidão, o governo não pode mesmo se esquivar da responsabilidade.