Desde dezembro, um prédio moderno localizado no emergente bairro de Vila Olímpia, na zona sul de São Paulo, vem atraindo cientistas como um ímã. Depois que o fundo de capital de risco Votorantim Ventures abriu operações de financiamento para projetos de biotecnologia, sua sede vive cheia de visitantes. Cerca de 40 cientistas já apresentaram idéias e candidataram-se a receber parte dos 300 milhões de dólares em recursos disponíveis. Doze projetos já foram avaliados. Os primeiros contratos deverão ser anunciados agora em março.
Quem abre as portas nesse entra-e-sai é um cientista de 46 anos, o paulista Fernando Reinach. Desde dezembro, ele é sócio e diretor executivo do fundo de capital de risco do grupo Votorantim. Seu foco são as chamadas ciências da vida, a nova mania dos fundos no Brasil e no mundo após o estouro da bolha das empresas ponto-com.
Por que o biólogo Reinach foi escolhido para liderar esse negócio? Bem, em primeiro lugar, porque ele é uma das estrelas da ciência brasileira. Professor titular de bioquímica do Instituto de Química da USP, empresário bem-sucedido e ex-secretário de desenvolvimento científico do Ministério da Ciência e Tecnologia, Reinach foi o inventor da idéia do Projeto Genoma brasileiro, que seqüenciou os genes da bactéria Xylella fastidiosa. Depois porque possui algo raro nos meios acadêmicos: vocação para os negócios.
Um cientista na direção de um fundo de investimento pode ser novidade no Brasil, mas não em outros países. Nos Estados Unidos, fundos de investimento como o Sequoia Partners e o Burril and Co. têm cientistas no conselho executivo. O biólogo brasileiro convertido em caçador de negócios parece à vontade quando se trata de correr riscos. "Sou o primeiro cara da universidade que vem ajudar a criar empresas de biotecnologia", diz. "Minha missão é descobrir projetos e transformar idéias em empreendimentos." Reinach vai circular no meio acadêmico e usar seu conhecimento para detectar pesquisas com potencial de negócios.
A tarefa não é só traduzir avanço científico em linguagem empresarial. "Reinach vai fazer uma transdução: tradução misturada com indução de negócios", diz Guilherme Emrich, diretor do fundo mineiro Fir Capital Partners, que também está prestes a fechar contratos de financiamento de risco para seis projetos de biotecnologia em Minas Gerais e em São Paulo, todos na área da saúde. O terceiro fundo de risco em operação no setor é o Investech, do grupo Rio Bravo, do Rio de Janeiro, que está analisando projetos em agribusiness e em pesquisa genômica. São negócios novíssimos. Há dois anos não existia investimento de risco para biotecnologia no país.
"A entrada da Votorantim Ventures no mercado sinaliza seu crescimento e amadurecimento", diz Valéria Judice, diretora científica da Fundação Biominas, uma associação de 36 companhias que mantém uma incubadora de empresas de biotecnologia em Belo Horizonte, no momento com 14 empreendimentos. No ano passado, a Fundação Biominas fez um censo para o Ministério da Ciência e Tecnologia. Descobriu que existem 304 empresas de biotecnologia em operação no país, responsáveis por 0,65% do PIB. O censo anterior, realizado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo em 1995, registrou 76 empresas. Em seis anos o setor cresceu 416%. "E vai crescer ainda mais", diz Reinach.
A questão é que é preciso mais do que financiamento para que surjam as start-ups brasileiras -- as "empresas de arranco" que se despegam das universidades e geram a faísca da inovação tecnológica. Falta apoio ao empreendedorismo. "Nossa idéia é ajudar os cientistas a fazer planos de negócio. Vamos disponibilizar gente para ajudá-los a pensar em produto, vendas, marketing e lucros." Segundo Reinach, os pesquisadores brasileiros sabem muito bem planejar despesas e fazer projetos de pesquisa. Trata-se, agora, de planejar a receita e pensar em investimento com retorno. "Temos centros de excelência comparáveis aos americanos e cientistas brilhantes", diz. "Sento com eles, explico o que é um plano de negócios e três dias depois eles voltam com tudo pronto."
Reinach está trocando o lado de atuação, não abandonando a ciência. Há dois anos deixou o regime de dedicação integral na USP. Agora, pediu licença para dar aulas em dois cursos do departamento de bioquímica sem receber um tostão, conciliando os horários com o trabalho na Votorantim. "Não acho justo com a universidade", afirma. "Não quero furar a política de dedicação integral da USP. Gostaria de continuar com a mesma carga de aulas sem receber." Seu contrato com a Votorantim é por tempo indeterminado, e uma parte da remuneração é variável, dependendo da performance do fundo. "É claro que tenho o maior interesse em que tudo dê certo", diz Reinach. "Capital de risco em biotecnologia só funciona junto com a universidade. Eu sei como a universidade trabalha e já estive do lado de quem levanta dinheiro."
A Votorantim Ventures oferece parceria aos potenciais inovadores. "Ninguém sabe como funciona um investimento de risco", diz Reinach. "Quando vou à universidade, o pessoal pergunta qual é a taxa de juro. Digo que não tem juro, e eles ficam desconfiados." Sua técnica para desarmar os espíritos nessas situações é propor sociedade num futuro negócio. "Eles entram com idéias e com trabalho. Nós entramos com o dinheiro a longo prazo. A renda, a gente divide lá na frente", diz Reinach. Outra novidade são os prazos de retorno. "Ofereço capital de risco com retorno para sete a dez anos. Não se fazem empresas de biotecnologia antes disso."
Reinach sabe o valor do capital de risco porque já precisou dele. Em março de 2000, junto com a mulher, a economista Lúcia Hauptman (ex-analista dos bancos de investimento Morgan Stanley, do Crédit Suisse e do Opportunity), e com o amigo Pérsio Arida (um dos país do Plano Real), montou com capital próprio a empresa .ComDominio, uma central inteligente de sites da internet. Cinco meses depois, os três sócios precisaram de 50 milhões de dólares. "Pegamos nosso plano de negócios e fomos bater na porta dos bancos americanos. O JP Morgan topou e comprou mais de 50% das ações. É claro que a experiência da Lúcia ajudou muito."
Muito antes disso, porém, Reinach já havia revelado faro para negócios. Em 1990, após 12 anos de estudos em universidades brasileiras, Ph.D. na Universidade de Cornell, dois anos de pesquisa na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e uma livre-docência na USP, ele abriu, com outros sócios, a empresa Genomic Engenharia Molecular, focada no mercado de testes genéticos de paternidade. No ano passado, quando vendeu sua parte no negócio para os sócios, a Genomic era líder do setor. "Nunca toquei empresas. Meus sócios é que cuidaram do negócio. Só tive as idéias", afirma.
"O Fernando é um dos expoentes da bioquímica no Brasil", diz o professor João Meidanes, da Unicamp, que também coordenou o Projeto Genoma. Para o escocês Andrew Simpson, chefe do laboratório de genética do Instituto Ludwig, de pesquisas sobre o câncer, Reinach sabe conjugar conhecimento científico com experiência empresarial. "Ele é ideal para os banqueiros. Vamos ver se é ideal para os cientistas", diz Simpson. "A Votorantim fez a escolha certa", afirma o concorrente Paulo Bilyk, diretor da Rio Bravo. "Mas o Reinach vai precisar ter trânsito fácil na universidade. E tem gente que acha que ele se promove muito."
A transmutação de cientistas -- eles já são cerca de 60 mil no Brasil -- em empresários nem sempre é um processo fácil. Para alguns a transição dá certo, como no caso de Reinach e de Antônio Paes de Carvalho, ex-diretor do Instituto de Biofísica da UFRJ, hoje presidente da Extracta Moléculas Naturais, empresa que testa alvos biológicos em espécies da Mata Atlântica, no Rio de Janeiro. "Conheço bem esse processo", diz Carvalho. "Durante 30 anos da minha vida fui um cientista acadêmico, fechado na universidade, voltado para estudos e teses. Mas a gente também aprende e muda."
Há casos em que a simbiose dá prejuízo: perde-se um cientista genial e ganha-se um empresário medíocre. "O ideal é a associação entre o cientista e o empresário", diz Emrich. "Nenhum fundo de capital de risco pode tocar empresa. É preciso um empreendedor para cuidar do negócio 24 horas por dia, e esse cara não é um cientista." Em 1976, junto com o bioquímico Marcos Mares Guia, Emrich fundou em Montes Claros, Minas Gerais, a Biobras, única produtora de insulina para diabéticos na América Latina. Em dezembro passado, vendeu a fábrica para a norueguesa Novo Nordisk, por 75 milhões de dólares. "O que faz o sucesso ou o fracasso de um empreendimento são as pessoas à sua frente", afirma Emrich. "Prefiro um projeto razoável na mão de um grupo bem constituído a um projeto excepcional na mão de um grupo ruim."
Reinach acredita que a oferta de capital de risco a longo prazo mudará o cenário da biotecnologia no Brasil. Com apoio dos fundos, a aventura dos cientistas no mundo dos negócios fica menos perigosa. Sobretudo, afirma, pelo fato de a Votorantim ser um grupo nacional. "Quando você estuda empresas americanas, como a Human Genome Science, a Vertex ou a Celera, percebe que a parceria com o capital de risco amadureceu ao longo de certo período", diz. "Há uma interação constante, uma colaboração contínua entre fundos e empresas recém-nascidas bem-sucedidas." Segundo Reinach, esse relacionamento seria mais difícil com um fundo estrangeiro porque eles teriam uma estrutura mínima no Brasil. Querem projetos já prontos para investir. "Eles não têm tempo para construir um relacionamento de confiança", diz. "Nós temos dinheiro para investir e conhecemos a cultura do país."
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