O Instituto Butantan submeteu pedido de autorização à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para o início dos testes clínicos com o soro anti-SARS-CoV-2 desenvolvido pela instituição. Composto de anticorpos que reconhecem diferentes partes das proteínas virais, o produto foi desenvolvido em apenas cinco meses. Já foram produzidas 3 mil unidades do soro para os testes com pacientes e outras 3 mil estão prontas para serem envasadas.
“Submetemos à Anvisa um dossiê de desenvolvimento clínico desse produto e devemos receber ainda hoje as observações da agência em relação a esse pedido. Estamos aguardando para começar um estudo clínico com pacientes transplantados de rim, com doutor [José Osmar] Medina no Hospital do Rim, e pacientes com comorbidade, com o doutor Esper [Kallás] no Hospital das Clínicas [da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo]”, disse Dimas Tadeu Covas, diretor do Instituto Butantan, em coletiva realizada nesta sexta-feira (5).
O soro é obtido a partir da inoculação, em cavalos, do vírus inteiro, inativado por radiação graças a uma parceria com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). Quando recebem o vírus, os animais produzem anticorpos para combatê-lo. O plasma sanguíneo, repleto dessas proteínas, é então extraído e passa por diferentes processamentos, além de purificação e controle de qualidade. O produto que vai nas ampolas é composto apenas de anticorpos, que por sua vez reconhecem proteínas presentes no vírus e, assim, podem impedir que ele se replique no organismo.
“Antes de injetar o vírus em animais, nós constatamos que, mesmo inativado, a sua composição proteica estava mantida, ou seja, todas as proteínas conhecidas como importantes para gerar resposta imune estavam preservadas. Assim, obteve-se um produto policlonal, em que há uma gama de anticorpos contra diferentes epítopos das proteínas virais. Espera-se que essa estratégia seja eficiente em reconhecer o vírus de forma mais abrangente do que, por exemplo, anticorpos dirigidos para apenas uma porção restrita de uma proteína. Isso pode ser uma vantagem no combate às novas variantes do vírus”, explica à Agência Fapesp Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, diretora de inovação do Instituto Butantan e responsável pelo desenvolvimento do soro.
A pesquisadora coordena o Centro de Excelência para Descoberta de Alvos Moleculares (CENTD), um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) constituído pela Fapesp e pela farmacêutica GlaxoSmithKline no Instituto Butantan.
A geração e a inativação dos isolados virais ocorreram no âmbito do projeto “Infecção por Coronavírus (SARS-Cov2) em modelos celulares humanos: busca por estratégias terapêuticas”, financiado pela Fapesp.
Outros soros desenvolvidos contra o SARS-CoV-2 utilizam apenas a proteína S (spike), da espícula do vírus, como antígeno. Um desses produtos foi aprovado para uso em pacientes na Argentina em janeiro. Nos testes clínicos, o soro argentino teria reduzido a mortalidade, o número de dias em cuidados intensivos e a necessidade de respiradores pelos pacientes.
A principal vantagem de usar o vírus inteiro é a possibilidade de os anticorpos policlonais serem eficazes também em novas variantes do SARS-CoV-2. Colaboradores do projeto atualmente realizam testes para avaliar a capacidade do soro de neutralizar as cepas mutadas em circulação, entre elas a P.1. – considerada mais transmissível que as anteriores.
Os últimos testes exigidos pela Anvisa foram realizados no Instituto Butantan e no Laboratório NB3+ do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), em colaboração com Ana Marcia de Sá Guimarães e Edison Luiz Durigon, professores do ICB-USP. Nos experimentos, hamsters foram infectados com o vírus e tratados com uma única dose do soro dois dias depois, quando já apresentavam sintomas da doença. Os resultados revelaram diminuição da carga viral nos pulmões, modulação da resposta inflamatória e preservação das estruturas pulmonares nos animais tratados, quando comparados aos que não receberam o tratamento. A melhora foi estatisticamente significativa no grupo que recebeu o soro.
Pacientes
“O soro anti-SARS-CoV-2 é uma estratégia diferente, por exemplo, do plasma de pacientes convalescentes, que depende da disponibilidade de pessoas que se recuperaram da Covid-19 para doarem o plasma. Além da oferta incerta desse recurso, no plasma de pacientes não se controla a quantidade de anticorpos presentes. No soro, podemos garantir uma proporção de proteína neutralizante em função de uma quantidade de vírus”, diz Chudzinski-Tavassi.
A eficácia do uso de plasma de pacientes, aliás, tem sido questionada. Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos suspenderam recentemente um ensaio clínico que visava avaliar a segurança e a eficácia desse tratamento em infectados com sintomas leves a moderados de Covid-19. Um conselho independente avaliou que, embora a intervenção com plasma convalescente não causasse danos, era improvável que beneficiasse esse grupo de pacientes.
As psquisas do Butantan com o soro obtido a partir da inoculação do vírus em cavalo tiveram como base os resultados de experimentos in vitro (em células em cultura) e in vivo (em animais), os pesquisadores podem sugerir a indicação da soroterapia para pacientes infectados em diferentes graus de intensidade da doença. A efetividade maior da soroterapia provavelmente ocorrerá enquanto o vírus estiver presente no organismo.
O soro pode ser especialmente importante para pacientes que estão com o sistema imune suprimido, como aqueles que receberam transplante de órgãos ou realizam tratamento para câncer e doenças autoimunes, por exemplo. Nesses casos, a imunidade passiva, como é chamado o efeito do soro, pode ser a única solução.
O Instituto Butantan tem em seu portfólio soros contra venenos de serpentes e artrópodes, difteria, tétano, botulismo e vírus da raiva. A fábrica do instituto tem capacidade para produção em larga escala.
“Uma das perguntas que fazem é: se estamos vacinando a população, para que desenvolver um soro? Da mesma forma que vacinamos contra difteria e tétano, por exemplo, nós temos os soros para essas doenças. Sempre haverá alguém que, por alguma razão, não tem anticorpos contra o vírus: aquelas que não se vacinaram ou que realizam tratamentos que suprimem a capacidade do sistema imune de produzir anticorpos são alguns exemplos. Essas pessoas são as que mais se beneficiam do soro”, conta Ricardo Palacios, diretor médico de pesquisa clínica do Instituto Butantan.
Palacios explica ainda que o soro poderia ser usado como forma de prevenção em pessoas expostas ao vírus que possuem comorbidades e podem desenvolver um quadro grave. “Um idoso que vive numa casa em que os outros moradores estão com a doença, por exemplo. Ao tomar o soro, quando o vírus infectá-lo, ele terá anticorpos que podem neutralizá-lo”, diz. O pesquisador ressalta, porém, que soros do tipo só devem ser administrados em ambiente hospitalar.
Monoclonais e policlonais
O soro de anticorpos policlonais pode ter vantagens em relação a outra terapia baseada no mesmo princípio, a de anticorpos monoclonais. A estratégia ficou conhecida por ter sido administrada no então presidente dos Estados Unidos Donald Trump, no ano passado.
O medicamento – aprovado para uso emergencial pela Food and Drug Administration (FDA, a agência norte-americana correspondente à Anvisa) – é composto de cópias sintéticas de anticorpos encontrados no sangue de pessoas que se recuperaram da Covid-19, com capacidade de neutralizar alguma proteína do vírus. Outro grupo do Butantan trabalha no desenvolvimento de uma terapia baseada nesse tipo de anticorpo.
“Anticorpos monoclonais são bastante específicos para uma parte do antígeno contra a qual foram desenvolvidos. Em uma situação de pandemia, uma desvantagem é que têm um tempo de desenvolvimento maior e um custo muito mais elevado do que anticorpos policlonais, como os presentes no soro”, diz Chudzinski-Tavassi.
A especificidade pode ainda se tornar uma desvantagem num cenário em que surgem mutações do SARS-CoV-2. O novo soro do Butantan, por sua vez, age sobre diferentes proteínas e por isso tem potencial para reconhecer mesmo as novas variantes do vírus.
Para Chudzinski-Tavassi, apesar da tradição do instituto na produção de soros e em toda a infraestrutura já presente, o novo soro trouxe uma série de aprendizados. Além da patente do antígeno de vírus inativado por radiação e seus usos, foram estabelecidas novas metodologias. A experiência de reunir uma equipe de mais de 70 pessoas mostrou ainda que é possível desenvolver na instituição um produto do começo ao fim em tempo recorde.
“Fica claro que, quando há uma infraestrutura pronta, investimento contínuo e uma equipe especializada, é possível dar uma resposta rápida, mesmo numa emergência como essa pandemia”, conclui.