Butantan sequencia primeiro genoma de serpente do Brasil e desvenda possível origem do veneno
Jararaca foi a espécie alvo da análise genética que trouxe conclusões sobre herança ancestral. Veja como começou a pesquisa do Instituto Butantan que sequenciou o genoma da jararaca
Um grupo de pesquisadores do Instituto Butantan foi o primeiro do Brasil a sequenciar o genoma de uma serpente. A espécie alvo foi a jararaca (Bothrops jararaca) e o estudo conseguiu concluir um dado curioso sobre a origem do veneno: a característica deriva de uma herança ancestral gerada pela incorporação de toxinas por duplicações e transformações.
O material, publicado recentemente na revista PNAS, foi resultado de um trabalho do Instituto Butantan que hospeda o Centro de Toxinas, Resposta-Imune e Sinalização Celular (CeTICS), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP, onde a pesquisa foi desenvolvida, e contou ainda com a colaboração de pesquisadores da Ohio State University, nos Estados Unidos.
A pesquisa começou em meados 2012, mas pôde formalizar os resultados apenas em 2019. O caminho até a descoberta envolveu desafios, compreensão de técnicas e várias revisões até o produto final satisfatório. Uma jornada dura, justificada pelo pioneirismo: “Nós fomos os primeiros a divulgar um genoma de serpente no Brasil e fazer isso é bem difícil então a gente teve que descobrir, dentro das nossas limitações, como desbravar aquilo tudo”, descreve Vincent Louis Viala, coautor do estudo.
Uma conquista até mesmo em nível mundial, já que, quando o processo iniciou, nenhuma serpente do mundo tinha seu DNA sequenciado até então. A espécie escolhida para ser analisada no Brasil é a responsável por grande parte dos acidentes ofídicos, representando o veneno de maior importância epidemiológica no País.
Segundo Inácio Junqueira de Azevedo, pesquisador do Instituto Butantan e coordenador do estudo, a ideia era caracterizar um animal que fosse simbólico e importante para essa área de conhecimento de toxinas. Assim, a jararaca tornou-se a figura central do sequenciamento genético.
A taxa de letalidade da picada de uma jararaca é de 0,3% e, embora não seja a espécie com a maior potência de veneno, é a com maior frequência de acidentes
A taxa de letalidade da picada de uma jararaca é de 0,3% e, embora não seja a espécie com a maior potência de veneno, é a com maior frequência de acidentes
Uma vez definida a “cobaia”, o desafio se concentrava na “tradução” do seu material genético. O DNA das serpentes, assim como o dos humanos, é composto por quatro tipos de bases nitrogenadas definidas por letras (A, T, C e G) que vão se misturando para “escrever” o genoma. Algumas sequências formadas pela ordem em que essas letras se apresentam geram proteínas capazes de desempenharem funções nos organismos, os chamados genes.
Dessa forma, sequenciar um DNA não compreende apenas em decifrar as letras e suas sequências, mas conseguir colocar todos os genes formando uma “linha completa” ou, pelo menos, pedaços dela. “Isso já era bem resolvido para genomas como bactérias, mas quando a gente fala de vertebrados é bem mais complexo, bem mais difícil. Fizemos várias tentativas de montar o genoma com os dados que a gente tinha, mas nunca ficou satisfatório”, explica Inácio.
A dificuldade de escrever a ordem perfeita do genoma da jararaca não impediu a equipe de escolher uma parte bem específica e definida para trabalhar. Exatamente por conhecerem qual era o perfil comum da organização de um gene quando se está lidando com toxinas, a pesquisa se aprofundou na análise da origem do veneno nas serpentes.
Driblando repetições e sobreposições das “letrinhas” analisadas no gene, Diego Dantas Almeida, um dos autores principais do estudo, conseguiu ter uma visão mais ampla da estrutura do veneno. “Vencendo essa etapa de complexidade, você consegue montar o genoma, pelo menos para essas regiões de interesse, e consegue ter um panorama geral do contexto genômico”, explica ele.
A pesquisa apontou com detalhes como um gene de toxina de serpente foi “montado” e o estudo se aprofundou ainda mais: na busca por decifrar a origem dessas propriedades nesses animais, os pesquisadores começaram a comparar a constituição dos genes do presente com genes ancestrais, de antepassados das jararacas.
A descoberta contrariou e confirmou, ao mesmo tempo, o que a ciência já previa. Isso porque o mecanismo mais comum e divulgado pelos estudos como forma de gerar informações genéticas era a duplicação, situação em que os genes se replicam e, com o passar do tempo, uma das duas cópias passa a desempenhar funções diferentes, como a produção de venenos.
De fato, duas das toxinas mais potentes das jararacas surgiram dessa forma, mas outras nove vivenciaram um processo diferente! “O que nos surpreendeu é que para a maioria das outras toxinas não havia evidências da duplicação. Dá impressão que aquele gene que já existia lá simplesmente sofreu algumas modificações e passou a codificar uma toxina, adquiriu essa função. Isso já tinha sido observado em alguns casos, mas ninguém nunca tinha visto de uma forma tão sistemática e na maioria das toxinas”, define o coordenador do estudo.
É como se diversas toxinas dos venenos tivessem sido incorporadas à vida das cobras como uma “herança ancestral”. Ou seja, no decorrer da evolução das serpentes, alguns genes se transformaram para adquirir essa função principal de auxiliar na defesa e na predação. A descoberta é apenas um passo na compreensão desse sistema tão intrigante, mas o sequenciamento do DNA feito pela equipe está disponível agora num banco de dados online e poderá ser a base para novos achados.
“Uma pesquisa básica com a jararaca, inclusive, na década de 70, avançou no sentido de gerar uma molécula que é um anti-hipertensivo muito utilizado para a população. A gente está lançando agora uma base de dados genômicos e de conhecimento que pode servir para outros projetos de desenvolvimento biotecnológicos ou de fármacos”, conclui Diego Dantas, fazendo referência ao remédio captopril.
Dando sequência...
Um outro trabalho na linha das toxinas foi realizado sob a coordenação de Inácio Junqueira e investigou uma família de serpentes que inclui cobras que não são consideradas peçonhentas, embora produzam veneno, como por exemplo as cobras-verde e cobras-cipó. Esses são animais praticamente desconhecidos nesse ramo, pois não causam acidentes em humanos, mas intrigavam a equipe quanto a associação desse mecanismo para a habilidade predadora.
“Nesse grupo de serpentes a gente tinha uma hipótese de se elas teriam novas toxinas, diferentes daquelas que os grupos de espécies mais estudados têm”, conta Inácio. A análise constatou que essas cobras têm famílias de proteínas exclusivas e, com a prática adquirida agora com o sequenciamento do genoma da jararaca, a equipe pretende sequenciar os genomas dessas e de outras espécies e avaliar mais evidências da trajetória desses compostos tão particulares.