O governador de SP Tarcísio de Freitas e o prefeito Ricardo Nunes, que desdenharam da vacina, agora saem em defesa para aprovar projeto mal explicado e afinado com seus interesses políticos
Por Cida de Oliveira*
O trator da devastação da floresta urbana no Instituto Butantan ganhou mais potência nesta semana. Na segunda (11), ambientalistas, moradores, vereadores da oposição e servidores foram surpreendidos com a publicação de uma nova proposta do prefeito de São Paulo, o bolsonarista Ricardo Nunes (MDB). Na minuta de substitutivo ao Projeto de Lei (PL) 691/2025, de sua autoria, ele autoriza instalações industriais em toda a área do Instituto Butantan, localizado no bairro de mesmo na zona oeste da capital paulista, ao lado da Cidade Universitária (USP).
Conforme o vereador Nabil Bonduk (PT), integrante da Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara, o texto é “inaceitável”. E piora o projeto original, aprovado em primeira votação em junho. Isso porque:
Libera loteamento de todo o terreno do instituto Butantan;
Permite o corte de toda a vegetação, já que a prefeitura não considera a Mata Atlântica em estado médio ou avançado de regeneração existe na área;
Legaliza os prédios problemáticos já em funcionamento, que estão incomodando a população devido ao barulho, e permite que sejam ampliados;
O substitutivo difere completamente de mapa já apresentado, que limitava desmatamento às áreas onde já estão os prédios; agora libera cortes em todo terreno do instituto;
Permite atividades industriais de alto potencial para incomodar os moradores do entorno;
Autoriza ruídos até 65 decibéis, índice para área industrial; e
Libera até eventos no local.
“É importante o Instituto ampliar a produção de vacinas, mas isso precisa estar compatibilizado com a proteção ambiental e sem prejudicar a vizinhança”, disse Bonduki. O vereador, que dialogou com todas as partes envolvidas, elaborou um substitutivo que possibilitava a ampliação fabril, mas restrita à área do atual complexo industrial, e com prédios mais altos. Isso para não devastar o bosque que inclui exemplares da Mata Atlântica. Obteve apoio das bancadas do PT, PSB e Rede, mas não foi acolhido pela Câmara. Segundo o mandato, ainda há diálogo em busca de um substitutivo capaz de garantir a proteção ambiental e da vizinhança.
Vacina sim, mas com sustentabilidade
Na avaliação do Movimento SOS Instituto Butantan, o projeto e a minuta de substitutivo são uma tentativa clara de viabilizar o plano diretor do Instituto Butantan, carregado de ilegalidades de natureza ambiental, urbanística, social e sanitária. Em nota de repúdio, o grupo apontou “a falta de lealdade e de transparência” do diretor do instituto, o médico Esper Kallás. Em audiência pública no último dia 5, ele disse que o plano previa o corte de aproximadamente 6.600 árvores, o que foi reduzido para 1.550 exóticas e 150 nativas. E na véspera, em entrevistas à grande mídia, ele havia assumido compromisso de preservação do restante da área do Instituto.
“Nos bastidores, pelo visto, já se preparava um outro substitutivo para viabilizar a execução completa do Plano Diretor original e muito mais. A notícia em audiência pública e que ganhou manchetes, então, não era verdadeira? Seria só uma estratégia para captar a simpatia do espectador e da mídia?”, questiona o movimento na nota. Ο SOS Instituto Butantan voltou a defender que a construção de fábricas para a produção de vacinas contra a dengue, gripe aviária e vírus sincicial seja realocada para uma outra área, em outro ponto, devido aos riscos que representa. “E eventual atraso na produção de vacinas, se há ou se haverá, não pode ser imputado à sociedade civil, mas será resultado da falta da Fundação e do Instituto Butantan, que há anos resistem em adotar procedimentos legais obrigatórios que já lhes teriam rendido condições de ter alcançado seu objetivo institucional”, disse o movimento, que reitera a defesa da vacina e da sua produção, mas em local adequado.
Se não fossem sórdidos, os pontos do projeto de licença para o crime ambiental ainda estão em desacordo com o seu próprio relatório de sustentabilidade, referente a 2023. Segundo a publicação oficial, “a flora e a fauna do Instituto Butantan são predominantemente típicas da Mata Atlântica, destacando-se tanto as árvores centenárias que compõem o ambiente arbóreo, como o cedro-rosa e o jatobá, quanto a diversidade de mamíferos, aves e répteis que habitam suas dependências”. E que o parque do instituto “se destaca por agir sobre o microclima local e a possibilidade de lazer e contato com a natureza”.
Além disso, ainda segundo o documento, a vegetação conta com espécies de árvores nativas e exóticas, com valor histórico significativo e de importância “para a manutenção das demais espécies, além de contribuir para um ambiente mais saudável e para o bem-estar da comunidade nas proximidades”. Mais: tem papel fundamental “na manutenção de processos ecológicos essenciais e no abrigo de populações remanescentes de animais e plantas nativas”, servindo de abrigo e fonte de recursos para a fauna local e descanso e alimentação para espécies migratórias.
Segundo o relatório, há no local espécies arbóreas típicas, como cedro-rosa, jatobá, angico-branco, paineira, figueira-branca, com mais de 100 anos e significativo valor histórico e ambiental, “tanto para o Instituto quanto para a Mata Atlântica Paulistana”. Quanto à fauna local, abriga mamíferos como o gambá-de-orelha- -preta, preá, sagui, tatu-galinha e esquilo, entre outros, com funções essenciais ao habitat. Há ainda mais de 60 espécies de aves, como a rolinha, asa-branca, beija-flor-tesoura, tucano-de-bico-verde, pica-pau-de-cabeça-amarela, carcará, periquito-verde, joão-de-barro, bem-te-vi e sabiá-laranjeira, entre outros. E também espécies de répteis e anfíbios.
Reunião da tropa de choque
Combinada com a apresentação da proposta nefasta, na mesma segunda-feira o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) reuniu no Palácio dos Bandeirantes o prefeito Nunes e seus vereadores aliados. Muito provavelmente para pressionar a aprovação dos planos governamentais para o Butantan “em nome da vacina”, já que a pressão popular ganha força. E também porque o PL do prefeito passou em votação no primeiro turno com 33 votos favoráveis, seis contrários e oito abstenções. Embora sejam necessários 28 votos, a votação foi considerada apertada.
Um dos vereadores presentes, Danilo do Posto de Saúde (Podemos) festejou a reunião. Em seu post em uma rede social, destacou a participação em encontro para discutir “importante projeto de ampliação da produção de vacinas do Instituto Butantan que devemos votar na Câmara nos próximos dias”. O tom eufemista do parlamentar que sempre votou a favor dos interesses da gestão e contra o dos trabalhadores da sua categoria, aliás, foi ofuscado por um leitor. Em seu comentário, lembrou o posicionamento antivacina de Tarcísio e Nunes. “Eu hein, vão pensando que esqueci em quem esses dois apoiam. Quem era contra vacina e oferecia cloroquina enquanto 700,000 morriam. Contra fatos não existem argumentos.”
Tarcísio de Freitas e Ricardo Nunes chamaram vereadores para reunião no Palácio dos Bandeirantes, como Danilo do Posto de Saúde (Podemos) para tratar da aprovação da ampliação do Butantan
Em outubro de 2024, durante campanha que o elegeu prefeito, Nunes reafirmou ser contra o passaporte de vacina da covid-19, uma exigência criada pela prefeitura no início de 2022 em eventos realizados na capital. “Imagina você ter que ter um documento para ir a uma missa, ir a um culto, ir a um restaurante. Acho que isso não tem sentido”, disse. Dias antes, afirmou ser contra a obrigatoriedade da vacina em participação no podcast do também bolsonarista Paulo Figueiredo. O empresário ligado à extrema direita é o mesmo parceiro de Eduardo Bolsonaro em suas incursões contra o Brasil junto a autoridades dos Estados Unidos. “Tenho muita tranquilidade, depois de toda experiência, e tenho humildade para te falar que hoje sou contra a questão da obrigatoriedade [da vacina]”.
Embora tenha classificado recentemente como erro o discurso contra vacinas do então presidente Jair Bolsonaro (PL), o governador Tarcísio, bolsonarista, chegou a dizer em entrevistas ser contra a obrigatoriedade. “Acreditamos na vacina, vamos ter uma política de estímulo à vacinação, de conscientização de pais e mães. Mas entendo que a vacina não deve ser obrigatória. Devemos despertar a consciência”, Tal posicionamento, que desestimula pais a levarem seus filhos aos postos de vacinação, está entre as causas da perigosa redução da cobertura vacinal no Brasil. Coerentemente, o governador vetou, em setembro de 2023, um projeto de lei para ampliação da prevenção do HPV, levando para as escolas a vacinação de crianças e adolescentes contra o vírus. O projeto havia sido apresentado pelas deputadas Marina Helou (Rede), Edna Macedo (Republicanos), Delegada Graciela (PL) e Patrícia Gama (PSDB). Ao vetar, Tarcísio alegou que já havia em execução políticas nesse sentido.
Ex-negacionistas antivacina
De uns tempos para cá, porém, os gestores dão sinais de que mudaram de opinião. E até apresentam e defendem a aprovação de mudanças na lei, que permitem até devastação ambiental, em nome da ampliação da produção de vacinas. Mas chama a atenção que esse discurso em favor do Instituto e sua importância para a saúde, não inclua ações para reverter o desmonte do instituto em curso há tempos, nem para recuperar os salários dos seus pesquisadores, defasado há pelo menos uma década em relação ao de outros órgãos, como a Fiocruz.
Novamente na mira de privatização na gestão João Doria, o centenário centro de pesquisa saiu ileso devido à pandemia. O então governador percebeu que importar uma vacina contra a covid-19, envasando e distribuindo com o selo Butantan, vinculado ao estado de São Paulo, traria mais dividendos políticos do que privatizar.
O fantasma da privatização voltou com o governador bolsonarista, que entregou a Sabesp e tem outros processos avançando. Curiosamente, em abril do ano passado seu governo colocou o Butantan em uma lista de 200 bens públicos a serem vendidos em um site para anunciar imóveis à venda, criado em 2016 com a aprovação da lei que permite a venda de bens públicos. O caso foi denunciado pela Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado (APqC), que representa pesquisadores do Butantan e outros órgãos. E acabou retirado do ar após a repercussão negativa. O governo Tarcísio alegou que houve um erro técnico, que publicou informações descontextualizadas. A APqC não caiu na conversa e acredita que o que ocorreu, na verdade, foi a realização de uma pesquisa de mercado por parte do governo de SP.
Privatização velada
Seja como for, há entre os pesquisadores antigos do Butantan a avaliação de que o instituto já vive um processo velado de privatização desde a criação da Fundação Butantan, em 1989. De direito privado, a fundação criada para gerir o instituto do ponto de vista financeiro e administrativo tem atualmente cerca de 3.500 empregados. Já o instituto, com perto de 400 servidores, convém à fundação por seu caráter público. Com o passar do tempo, a fundação não investiu no instituto. E apenas em si mesma.
A fundação, aliás, vive no radar de órgãos de fiscalização, como o Ministério Público, que já recomendou a preservação das árvores. E também o Ministério Público de Contas do estado. O procurador José Mendes Neto, que já reprovou contas da Fundação Butantan e por isso passou a estudar a relação Fundação-Instituto. Em audiência pública na Assembleia Legislativa (Alesp) em novembro passado, destacou absurdos, como salários acima do teto do funcionalismo na fundação. E a impossibilidade de estabelecer onde termina o público e começa o privado nessa relação.
Segundo ele, o desequilíbrio no número de funcionários e o faturamento com venda de vacinas e outros imunobiológicos, deixam claro a inconstitucionalidade da relação. Em 2015, o instituto tinha 688 servidores e 847 vagas a serem preenchidas por concurso, o que há muito não realiza. Já a fundação tinha naquele ano 1.298 empregados atuando no instituto. “A fundação virou um braço para atuar onde deveria ter funcionários públicos concursados”, disse.
Em 2018, eram 1.531 celetistas na fundação. Em 2022, no período pós-covid, eram 3.352 empregados no complexo Butantan. “O instituto tinha 415 estatutários. Hoje menos de 400 servidores, muitos em vias de se aposentar”.
Fundação inconstitucional
Quanto ao faturamento, em 2015 a fundação teve um bruto de R$ 1,259 bi. E em 2018, R$ 1,796 bi. Na ocasião ele não tinha dados sobre 2021, auge da remuneração com a venda da vacina contra a covid. Mas estimou que, em 2022, esteve em torno de R$ 3,337 bi. “Como um órgão público, que não tem personalidade jurídica, o instituto é uma UGE (Unidade Gestora Executora) da Secretaria Estadual de Saúde de SP, junto com a Fundação Butantan, que é uma associação sem fins lucrativos, pode ter um faturamento de bilhões com a venda de vacinas e biofármacos, concorrendo com empresas imensas do ramo farmacêutico?”, questionou.
E emendou: “Afirmo: essa relação é inconstitucional. Porque quando o estado intervém na economia, explorando atividade econômica e a produção de vacinas, concorrendo com o setor privado, ele só pode fazer de duas formas, conforme o artigo 173 da Constituição federal. Ou por sociedade de economia mista ou empresa pública. Não existe na Constituição a ideia de que um órgão público misturado a uma associação privada sem fins lucrativos tenha atividade empresarial tão grande e tão lucrativa”, disse.
Essa corrida para a derrubada de exemplares de Mata Atlântica, protegidas e tombadas, em nome da alegada ampliação fabril do Butantan, permite muitas indagações. Entre elas, a possibilidade de esse projeto sair do papel com a mesma rapidez com que querem passar seu trator. Em razão da burocracia e da falta de recursos, a Fiocruz enfrenta dificuldades para avançar em seu Complexo Industrial de Biotecnologia (Cibs). Segundo Acordão do TCU, as obras iniciadas em 2009 foram paralisadas logo que começaram, em um distrito industrial no distante bairro de Santa Cruz, no Rio, que lembra um pasto. Há apenas alicerces para os 46 prédios projetados para fabricar imunizantes. Ainda não há previsão de retomada das obras.