O aumento do número e da violência dos trotes é um problema apenas da universidade? Aproveitando o início do semestre letivo, gostaria de fazer com que alunos, professores e dirigentes universitários refletissem sobre o significado da violência do trote e as fortes implicações e contradições introduzidas por esta prática; ao mesmo tempo, gostaria que a sociedade brasileira se conscientizasse de que esta violência também a atinge.
Infelizmente, a época das aulas-trote versando sobre temas como moto perpétuo, vetores curvos, articulação calcâneo-cervical, hemorragia nasal fisiológica e outros temas absurdos, ou esdrúxulos, terminou. Quem ingressasse na universidade no final da década de 70, como eu, via os veteranos preocupados em receber bem os calouros, em inseri-los na vida universitária o mais rápido possível. O panorama político nacional era, incontestavelmente, um fator aglutinador. Paradoxalmente, a abertura política foi, aos poucos, trazendo de volta o trote, que se institucionaliza de vez - mas com outras características - com a abertura democrática.
O lado lúdico do conteúdo daquelas aulas-trote, o popular besteirol, hoje completamente incorporado e tão propalado pela mídia eletrônica, foi abandonado pelos estudantes. Em seu lugar tem início, na Universidade, a brutalização do rito de iniciação (o trote), bastante comum, por exemplo, em várias confrarias, seitas e corporações, onde o novato deve demonstrar diferentes combinações de abnegação, submissão e bravura, totalmente antagônicas aos valores acadêmicos.
Passou a ser parte integrante do quotidiano universitário, e às vezes do noticiário policial, alunos queimados por ácido, alunos com fortes processos alérgicos decorrentes de "pinturas", alunos agredidos física e moralmente, alunos que abandonam o curso que sonharam no primeiro dia de aula etc.
Se, por um lado, é evidente que a violência crescente do trote reproduz a violência desmedida de nossa sociedade, por outro, é igualmente verdadeiro que o descaso e a impunidade também se repetem na universidade. Além, desta constatação incontestável, outras lições devem ser extraídas dessa escalada do trote: a identificação de uma certa falta de perspectiva de inserção social dos jovens e a incapacidade dos professores para atuarem como verdadeiros educadores em sala de aula. Qualquer que seja o nível de escolaridade, é preciso que haja uma constante preocupação com a formação cultural, ética e moral do aluno.
Portanto, o tema trote não pode ser visto como um tabu. Ele deve ser amplamente debatido, pois a complacência com o trote transmite tacitamente ao aluno uma série de valores incompatíveis com os valores da Ciência, com os valores acadêmicos e com todo um conjunto de valores éticos e morais a eles subjacentes, comprometendo seriamente o papel da Universidade. São estes valores, negados pelo trote, que precisamos explicitar e reiterar para os jovens, não apenas para que eles compreendam a dimensão do trote, mas, sobretudo, para que eles compreendam o papel da universidade e seu próprio papel na sociedade que dele tanto espera.
Limitemos-nos, por enquanto, a identificar o que está implícito na idéia de trote: violência, prepotência, humilhação, ódio, dominação, revanchismo, subserviência, desigualdade, autoritarismo, intolerância, desprezo, preconceito, vandalismo etc.
Não é nosso intuito aqui analisar como tudo isto se combina numa mente torpe para gerar o trote violento, mesmo porque isto estaria fora de nossa competência. Para o nosso ponto de vista, basta apenas esta simples identificação do que está por trás do trote.
Quando seres humanos deliberadamente submetem seus semelhantes à, violência e á humilhação por puro preconceito, é óbvio que estão sendo feridos preceitos basilares da Constituição. Claro está, portanto, que cada pessoa, vítima do trote, pode processar seus agressores, mas isto não retira do trote seu caráter institucional, sobre o qual a Universidade, como um todo, tem responsabilidades.
Em nome de que esta violência gratuita? Em nome de um prazer mórbido e fugaz e, a longo prazo, da exaltação do revanchismo, isto é, submetam-se todos passivamente ao trote uma única vez e vocês poderão depois repeti-lo 8 ou 10 vezes em sua vida. Que ganho fantástico! É a mais pura essência da lei de Gerson, tão arraigada (infelizmente) na cultura brasileira.
Acabar com o trote, ou seja, contribuir para que os estudantes tenham instrumentos para compreender e resolver a antinomia provocada pela prática do trote na Universidade é, sem dúvida, um grande desafio para a universidade dos tempos modernos, se ela realmente pretende contribuir para o fim da violência do homem contra o homem.
*Doutor em Física pela Universidade de Turim (Itália), professor adjunto da Uerj, pesquisador associado do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e chefe do Laboratório de Cosmologia e Física Experimental de Altas Energias do CBPF
Notícia
Jornal do Brasil