Invasão de privacidade está longe de ser um problema apenas de seres humanos. Animais também são atingidos por esse ônus da vida moderna — mas, às vezes, é por uma boa causa. Ao menos será o caso de macacos bugios que vivem no Parque Estadual da Cantareira e no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), ambos em São Paulo. Desde maio, esses primatas não podem nem mais cochichar entre si que tudo está sendo gravado e registrado.
Foi quando teve início um projeto científico da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) do Estado de São Paulo em parceria com o Laboratório de Acústica e Meio Ambiente (Lacmam), do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). A ideia é gravar especificamente as vocalizações desses animais, com a finalidade de estimar sua população. A intrusão tem o objetivo de combater epidemias de febre amarela, como a que ocorreu entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, atingindo sobretudo o Sudeste.
Sensíveis à doença, entre 80% e 90% da população de 4 mil bugios do Cantareira morreram no último surto. Atualmente, a Sucen depende do aviso de sitiantes que porventura encontrem um animal morto no campo ou na floresta. Só que pode ser tarde demais, já que há o risco de a enfermidade ter se alastrado. Ao gravar esses macacos, os estudiosos pretendem criar um algoritmo que será capaz de soar um alerta sobre a mortalidade dos animais de forma automática.
“O bugio apresenta um rugido que é superfácil de detectar, porque é de longo alcance. E se houver redução da taxa de vocalização, podemos inferir que há alta na taxa de mortalidade naquela área”, explica a bióloga Bruna Campos Paula, doutoranda no Lacmam. O veterinário Adriano Pinter, pesquisador científico da Sucen, que lidera o projeto, destaca que a tecnologia seria muito mais eficiente do que a metodologia atual. “O algoritmo pode interpretar se o animal está saudável, a forma como ele está fazendo a vocalização, mais fraco ou mais baixo, ou ausência dela”, explica.
A iniciativa — que tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e conta com a atuação de 20 cientistas — terá ainda a colaboração da Fiocruz, que analisará sangue, saliva e fezes dos primatas para realizar testes sobre a situação de saúde dos bugios. Também serão investigadas as principais doenças que os acometem e se eles são sensíveis ao Sars-CoV-2, coronavírus causador da Covid-19.
Mas a justificativa para a vigilância sobre esses animais vai além: segundo Pinter, a superintendência está se preparando para uma eventual nova explosão de casos de febre amarela entre 2026 e 2027. “Os surtos no Sudeste e no Sul serão cada vez mais frequentes”, alerta o especialista. “Nossos invernos estão mais quentes, por causa do aquecimento global. Antes era mais frio e os mosquitos morriam no inverno, e o vírus [da febre amarela] não conseguia se estabelecer.” É por isso que os bugios não serão os únicos a sofrerem a intromissão em nome da saúde pública: o projeto também pretende contemplar outros primatas dessas regiões, como sagui, macaco-prego e sauá, para entender o impacto da doença nessas espécies.
Ciência ouvinte
O uso do som em pesquisas científicas não é novo, mas ganhou expressão nos anos 2000 devido ao barateamento dos equipamentos necessários a essas investigações. Os primeiros estudos nesse sentido surgiram na Grécia, com Aristóteles. O naturalista inglês Charles Darwin também aborda o assunto no livro A expressão das emoções no homem e nos animais (1872). Mas foi na década de 1960 que a gravação de paisagens sonoras começou a chamar a atenção de um número maior de cientistas.
O músico e ecologista norte-americano Bernie Krause — que chegou a ser guitarrista de estúdio de bandas como The Doors e Rolling Stones — começou a gravar, em 1968, uma série de músicas com sons da natureza. Ele acumulou um banco de dados com nada menos do que 4,5 mil horas de sons de 15 mil diferentes espécies de animais.
No início daquela mesma década, o engenheiro brasileiro Johan Dalgas Frisch, após várias incursões na floresta com gravador e uma parabólica que ele mesmo inventou, lançou em 1962 o disco Cantos das Aves do Brasil. Naquele ano, no Acre, Frisch se tornou também a primeira pessoa no mundo a gravar os oito cantos do uirapuru-verdadeiro, ave nativa da Amazônia.
O interesse da comunidade científica na pesquisa de paisagens sonoras cresceu em 2011, após o cientista norte-americano Bryan C Pijanowski defender estudos nesse sentido em um congresso. “Ele ressuscitou a ideia do Krause, passando a ver o som como uma questão mais holística, um intermediador de relações, de canais específicos de comunicação”, conta Renata Sousa-Lima, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coordenadora do Laboratório de Bioacústica do Centro de Biociências (LaB) da UFRN. “As pessoas começaram a prestar a atenção no ambiente como um todo e como o som emanado da natureza traz informações sobre o bioma e a paisagem, dependendo da escala.”
Uma das pioneiras no Brasil, a bióloga-zoóloga estuda bioacústica desde a década de 1980, quando analisou a influência dos ruídos de barcos em baleias-jubarte e baleias-francas austrais. Sousa-lima ainda estudou os sons dos aerogeradores de energia elétrica na paisagem sonora da Caatinga, as vocalizações de lobos-guará na Serra da Canastra (MG) e até o som das formigas.
“E, hoje em dia, com meus colaboradores, estamos explorando similaridades de várias paisagens acústicas, diferentemente da maioria do pessoal que busca as diferenças do soundscape”, diz a bióloga. Seu laboratório completa dez anos em 2021, com o lançamento do Ecoacustic Research Hub (Ear), um espaço virtual de troca de informações e bancos de dados sonoros entre pesquisadores do Brasil e do exterior. “Eu gosto de ser casamenteira”, brinca Renata.
Um bom “casamento” ocorreu também em 2016 entre a Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, no interior de São Paulo, e a Universidade de Helsinque, na Finlândia, usando a gravação de paisagens sonoras para mapear a biodiversidade. A equipe espalhou gravadores em 22 áreas das serras da Cantareira e da Mantiqueira, entre 2016 e 2017, estudando sons da floresta densa, de pastagens e brejos. Ao todo, foram gravadas 10.500 horas de ruídos, captando períodos específicos programados para serem registrados de manhã, à tarde e à noite.
Desse total, foram selecionados 18.594 minutos pela manhã e 22 mil minutos noturnos. “Cada minuto tem uma lista de espécies. A gente os agrupa manualmente para caracterizar a avifauna naquele período”, detalha Lucas Gaspar, mestre em ecologia, evolução e biodiversidade pela Unesp de Rio Claro, que participa do projeto. Pela análise do espectrograma das gravações e com a ajuda de especialistas que ouviram esses sons, foram detectados 10 mil registros de aves e anfíbios de 199 espécies.
Em parceria com a USP de São Carlos e a Universidade de Helsinque, a ideia agora é criar um algoritmo que detecte cada espécie automaticamente. “Queremos entender como a fragmentação e a perda das florestas influencia a biodiversidade”, diz o professor Milton Cezar Ribeiro, do Departamento de Biodiversidade da Unesp de Rio Claro, coordenador do estudo. “A paisagem, a quantidade de floresta, influencia nos padrões sonoros. E podem nos ajudar a prever a riqueza e diversidade de avifauna.” A partir de agosto deste ano, a equipe retornará às serras para ampliar o estudo sonoro das aves e também investigar os sons de morcegos.
Barulho do mar
O período entre 2021 e 2030 será marcado pela Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) para mostrar a importância do maior bioma do planeta. E acredite: os sons também podem ser indicadores relevantes da situação daqueles que vivem em ambientes subaquáticos.
É o que estão analisando cientistas brasileiros que monitoram, desde fevereiro, golfinhos-rotadores que descansam na Baía dos Golfinhos de Fernando de Noronha. Foi instalado um único microfone na água, que gravará os ruídos desses mamíferos 24 horas por dia, durante um ano. A cada quatro meses, o aparelho será trocado por outro, e os que forem substituídos serão levados ao laboratório para estudo da amostra sonora. “Esse grupo de golfinhos se reúne sempre naquele lugar. E queremos descobrir por que isso acontece, além de saber quando eles chegam e o que estão conversando”, explica o engenheiro e professor Linilson Padovese, coordenador do Lacmam. “Vamos avaliar, ao longo de um ano, qual é a flutuação no número dessa população. Conforme o projeto seguir, estudamos a possibilidade de instalar mais microfones.”
A Baía dos Golfinhos chega a reunir até 2 mil animais em um dia. Como o som é o sentido mais importante para esses cetáceos, o objetivo é entender seus hábitos, bem como avaliar o impacto do ruído de barcos. O trabalho é conduzido pelo veterinário Raul Rio Ribeiro, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, e pós-doutorando em acústica subaquática no Lacmam. Segundo ele, o projeto ainda se expandirá para o México, em parceria com a Universidade Nacional Autônoma do México e a Universidade Autônoma da Baixa Califórnia.
“São duas instituições parceiras que demonstraram interesse em ampliar o mesmo projeto daqui para lá, para fazer uma aliança latino-americana”, diz Ribeiro, que é fundador da ONG Ocean Sounds, cujo principal projeto é sua pesquisa de pós-doutorado. “O projeto se chama Ocean Sounds Secrets, brincando com essa ideia de que existe um segredo sonoro oceânico que é preciso revelar”, justifica o veterinário. Em maio, a ONG obteve autorização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) para realizar estudos acústicos subaquáticos no Atol das Rocas (RN), nas ilhas Trindade e Martim Vaz (ES) e no arquipélago de São Pedro e São Paulo (PE).
Pesquisadores do Lacman já trabalham em conjunto com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em São Pedro e São Paulo, um conjunto de rochas a 1,1 mil quilômetros de Natal. A bióloga Lilian Sander Hoffmann, mestre e doutora em Biologia Animal e pós-doutoranda do Programa Arquipélago e Ilhas Oceânicas, estuda os golfinhos-nariz-de-garrafa, mais conhecidos como flipper, nesse arquipélago. Os estudos são feitos com hidrofones colocados na água pelos pesquisadores dentro de embarcações por curtos períodos.
A UFRGS adquiriu um novo hidrofone no exterior que pode ser instalado no fundo do mar, mas o uso do aparelho foi adiado pela pandemia. “Estamos loucos para voltar e conseguir instalar esses equipamentos, o que será um ganho muito grande, porque tem outros animais mais ariscos que não vêm na proa do barco como os golfinhos”, diz Lilian Sander, que há 20 anos estuda esses animais, comparando-os com os golfinhos que habitam regiões costeiras. “O grande problema dos mares hoje em dia, fora a poluição com metais pesados e contêineres afundando a todo momento, é o ruído antrópico, que é muito alto”, afirma.
A bióloga mantém ainda uma parceria de pesquisa de paisagem sonora sobre as toninhas que habitam a região portuária de Linhares, no Espírito Santo, junto a pesquisadores da universidade federal do estado. “Queremos saber como elas [toninhas] se comportam em regiões diferentes, em áreas do porto e de preservação. É como a gente quando está com a música alta e tem que falar mais alto”, exemplifica. Ao terem que modular regularmente sua frequência sonora, as toninhas podem sofrer estresse a médio e longo prazos.
“Monitorar populações costeiras é importante porque elas estão em contato com atividade humana”, destaca Sander. A pandemia pode ter atrasado as pesquisas de Lilian, mas um grupo de cientistas estrangeiros lançou em abril o International Quiet Ocean Experiment (IQOE), um projeto de pesquisa internacional reunindo mais de 200 hidrofones de uso civil ao redor do globo, justamente para monitorar o nível de ruído nos mares, que também caiu em decorrência da redução da atividade econômica global imposta pela Covid-19. A iniciativa, que tem sido incentivada pela Unesco desde 2011, ainda não tem a participação de pesquisadores brasileiros, segundo a Agência Fapesp.
A paisagem sonora exerce fascínio de tal forma que, há oito anos, a plataforma Soundtent, que une cientistas e artistas sonoros de Londres, organiza, todo dia 1º de maio, uma transmissão ao vivo do amanhecer de diversas partes do mundo no projeto chamado Reveil. A audiência chega a centenas de pessoas, que podem acompanhar a alvorada com sons de pássaros, rios, oceanos, cachoeiras e até os carros em meio a uma avenida de Pinheiros, em São Paulo, transmitida neste ano pelo artista sonoro Nicolau Centola. Seja na terra, seja no mar, os sons têm muito a dizer sobre o planeta em que vivemos e como podemos protegê-lo. Basta escutar.
TEXTO: ROGER MARZOCHI | EDIÇÃO: LUIZA MONTEIRO