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Brasileiros estão por trás de telescópio de raios gama revolucionário (1 notícias)

Publicado em 10 de julho de 2022

Por Roger Marzochi

Quando o italiano Galileu Galilei apontou para o céu o telescópio que havia construído em 1609, descobriu que a superfície da Lua não era uniforme como se pensava, identificou centenas de estrelas que não poderiam ser vistas a olho nu, viu os satélites de Júpiter e identificou as fases de Vênus. Essas descobertas lhe mostraram que não existiam esferas cristalinas que carregavam os astros no espaço e que era o momento de a Igreja mudar sua crença de que a Terra seria o centro do Universo.

“Como ocorre com frequência na história da ciência, um novo instrumento de observação revelou aspectos completamente inesperados da realidade física”, escreve o físico Marcelo Gleiser em seu livro A Ilha do Conhecimento (Record, 2014). Na obra, ele traz uma metáfora em que, a cada nova descoberta, a ilha cresce, mas novas perguntas mostram que há sempre um novo horizonte a se buscar com humildade.

Esse horizonte vem se expandindo desde a época de Galileu. Com pensadores como Johannes Kepler, Isaac Newton e Albert Einstein, a ciência fez imensos avanços em busca de explicar o Universo. Mas não só: mentes brilhantes também criaram equipamentos como o acelerador de partículas LHC, na Suíça; o Sirius, no Brasil; e os telescópios espaciais Hubble James Webb, lançado em 25 de dezembro pela Nasa. Entre os diversos inventos que auxiliam a humanidade na eterna busca por entender o que existe para além da Terra está um aparelho que conta com participação direta de brasileiros.

Trata-se do Cherenkov Telescope Array (CTA), que estudará a emissão cósmica de raios gama em um nível de energia jamais analisado pela ciência. Idealizado em 2005, o CTA começou a ser construído em 2012 e a previsão é de que seja concluído em 2027. “Estamos abrindo uma janela de descobertas”, declara o físico Luiz Vitor de Souza Filho, professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP). “O CTA não é um instrumento de conhecimento incremental, ele é focado em regiões extremas da natureza, para estudar as mais altas energias, operando em objetos astrofísicos extremos, com muita massa, com campos magnéticos muito intensos”, acrescenta o docente, que foi escolhido, em dezembro de 2021, como presidente do Comitê Científico do CTA por um período de dois anos.

O empreendimento reúne 1,5 mil cientistas de 31 países em um projeto avaliado em 350 milhões de euros. “Não há dúvida de que será um dos principais instrumentos da astrofísica de partículas das próximas três décadas”, opina Filho. Além dele, integram o conselho científico Ulisses Barres de Almeida, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), e Elisabete Dal Pino, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. No Brasil, são mais de 30 cientistas representando 11 instituições de pesquisa, entre elas diversas universidades federais do país.

O CTA prevê a instalação de cerca de 100 telescópios divididos entre Cerro Paranal, no Chile, e La Palma, nas Ilhas Canárias. Parecidos com parabólicas, eles são compostos de espelhos que direcionam a luz para células fotomultiplicadoras e terão três tamanhos: 24, 12 e 4 metros de diâmetro.

Os menores serão usados para captar emissões de maior energia e estarão praticamente todos no Chile, junto aos telescópios médios, que vão estudar emissões de raios gama da Via Láctea. Mesmo sendo considerada uma galáxia de tamanho mediano, seu diâmetro é estimado em 100 mil anos-luz. Outros telescópios médios e os grandes serão alocados nas Ilhas Canárias, e estarão em busca de sinais extragalácticos médios e fracos.

Para a primeira fase de construção estão programados 13 telescópios (quatro grandes e nove médios) em La Palma, ao passo que no Chile serão 51 antenas: 37 pequenas e 14 médias. A previsão é de que todos os 100 equipamentos sejam instalados nos próximos cinco anos, mas com seis antenas já será possível iniciar os primeiros experimentos.

O Brasil deve construir 23 telescópios com tecnologia nacional. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) aprovou um orçamento de R$ 10 milhões para o pagamento de bolsas de pesquisa e construção da estrutura de nove telescópios, enquanto a Fundação Araucária, do Paraná, liberou outros R$ 1 milhão que vão permitir fabricar a estrutura de mais um telescópio, além de investimentos em recursos humanos. O Brasil construirá estruturas para os equipamentos médios e pequenos, mas para esses últimos ainda não há fonte de financiamento.

A professora Dal Pino está participando também da construção do projeto Astri Mini-Array, grupo de nove telescópios pequenos de raios gama que começa a ser instalado ainda este ano em Tenerife, uma das ilhas que compõem as Ilhas Canárias.

Com previsão de iniciar as operações em 2024, esse projeto vai inspirar a construção dos outros equipamentos do CTA. “Como os telescópios pequenos têm alcance em energias mais extremas, ele [CTA] vai conseguir mirar no espaço e observar raios gama com energias jamais alcançadas com os telescópios de hoje. Vamos captar as emissões mais extremas de raios cósmicos do Universo”, assegura a docente do IAG-USP.

Mais energéticos que a luz

Os raios gama são um dos componentes dos chamados raios cósmicos, expelidos em altas energias a partir de fenômenos como galáxias com núcleo ativo ou buracos negros e explosões de estrelas em supernovas. Grande parte do material liberado são prótons de hidrogênio, além de núcleos mais pesados como nitrogênio, ferro, carbono, oxigênio, hélio e silício. Os raios gama, por sua vez, são emissões eletromagnéticas — mas são 10 trilhões de vezes mais energéticos que a luz visível.

Quando se chocam com a atmosfera da Terra, os raios cósmicos (incluindo os gama) entram em colisão com partículas de nitrogênio e oxigênio, gerando uma luz entre o azul e o ultravioleta. Essa é a luz Cherenkov, batizada em homenagem ao cientista russo Pavel A. Cherenkov, que descobriu esse efeito e, por isso, foi laureado com o Nobel de Física em 1958.

“Na atmosfera, essa luz que surge é tão rápida que nenhuma câmera consegue captar, porque dura bilionésimos de segundo, é uma coisa infinitamente pequena”, detalha o astrônomo Rodolfo Langhi, professor da Unesp de Bauru, no interior paulista, e coordenador do Observatório Didático de Astronomia. “Hoje, os cientistas não têm como enxergar essa faixa, mas com o CTA eles vão enxergar algo que nunca foi visto pelo ser humano. E isso é bonito de ver, por conseguir explorar os enigmas da ciência para os quais não temos resposta, o que é fascinante.”

Como são fótons, os raios gama não possuem massa nem carga e, portanto, não sofrem desvios de trajetória influenciados por fontes magnéticas no Universo. “O raio cósmico é desviado por campos magnéticos fora e dentro da galáxia. O gama não é desviado. Quando o telescópio olha para o céu, sabe a direção de que veio o raio”, explica a astrofísica Rita de Cássia dos Anjos, professora no campus de Palotina da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Ela integra o projeto do CTA, que vai analisar eventos com energia de 20 gigaelétron-volt (GeV) até 300 teraelétron-volt (TeV). Para ter ideia, os experimentos que existem hoje em raios gama não ultrapassam 2 TeV. Se transformasse a energia de 300 TeV em movimento cinético, uma bola de tênis de 57 gramas iria adquirir uma velocidade de 0,14 km/h. Pode parecer pouco, mas para um fóton é muito. “Essa energia de detecção de gama é altíssima, uma vez que os observatórios atuais detectam energias 100 vezes menores”, diz dos Anjos.

Um dos grandes nomes da astrofísica brasileira, Rita de Cássia dos Anjos é estudiosa de raios cósmicos e colaboradora do Observatório Pierre Auger, na Argentina. Pelos seus estudos sobre a trajetória dos raios cósmicos de partículas de próton, ela venceu o prêmio Para Mulheres na Ciência 2020, promovido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a L’Oréal junto à Unesco Brasil. “O CTA será como se você colocasse óculos para enxergar raios gama, [e visse] o Universo só em radiação gama”, explica a cientista. “Poderemos analisar eventos extremos e raríssimos, buscando entender o que acontece com a matéria em mais alta energia.”

Será possível compreender, por exemplo, como operam os buracos negros. Apesar de sua gravidade gigantesca, da qual nem a luz consegue escapar, esses fenômenos emitem radiação gama no processo de acreção, isto é, quando engolem a matéria ao seu redor. O equipamento também vai permitir estudar a matéria escura, que constitui 25% do Universo, mas que só é possível detectá-la pela influência gravitacional que gera entre as galáxias.

Sabe-se, porém, que ela emite radiação gama quando se choca com suas antipartículas. “Não temos nenhuma informação sobre o comportamento corpuscular, quais são os tijolinhos que a fazem, como ela é e como se comporta”, afirma o físico Souza Filho. Eis aí mais enigmas que o CTA pode ajudar a solucionar.

Uma revolução vem aí?

Quando todos os componentes do Cherenkov Telescope Array estiverem funcionando, espera-se que ele tenha uma sensitividade dez vezes maior que a dos atuais telescópios de raios gama, como o HESS, na Namíbia; o Magic, nas Ilhas Canárias; e o Veritas, nos EUA. Com isso, ele também poderá ajudar a investigar questões sobre a composição dos magnetares, estrelas de nêutrons com campos magnéticos muito poderosos que emitem radiação gama.

“É discutido na literatura se alguns magnetares são estrelas de nêutrons ou anãs brancas, cuja diferença uma da outra, a princípio, é o raio [do diâmetro]. Uma anã branca é mil a 10 mil vezes maior que uma estrela de nêutrons. Porém, elas têm a mesma massa”, explica o físico Jaziel Goulart Coelho, professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Ele é coordenador do Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação (NAPI) Fenômenos Extremos do Universo, iniciativa que visa reunir cientistas do Paraná em torno do projeto do CTA.

O telescópio terá ainda a função inédita de conseguir verificar a teoria sobre a constância da velocidade da luz, um dos pilares da Teoria da Relatividade, de Einstein. A velocidade da luz no vácuo, de 300 mil km/s, sofre reduções pelo índice de refração no ar e na água, por exemplo. A mecânica quântica prevê a existência de um índice de refração exótico no vácuo, o que possibilitaria que a velocidade da luz fosse muito maior do que aquela que aquela que conhecemos. “Ainda são teorias especulativas que são difíceis de testar, e o CTA abre essa janela”, pontua Elisabete Dal Pino.

A ideia é que, em altas energias, a velocidade da luz possa ser maior que 300 mil km/s. Seria possível medir isso verificando as diferenças de tempo de chegada de raios gama à Terra, comparando fótons com diferentes níveis de energia emitidos por um mesmo corpo celeste. “A constância da velocidade da luz é um dos paradigmas da ciência moderna, está dentro do contexto da Teoria da Relatividade, mas ela extrapola, está na base da compreensão da natureza e define vários outros conceitos secundários”, diz Souza Filho. “Se você encontra uma discrepância da velocidade da luz, isso nos obriga a rever a estrutura da ciência moderna desde 1900”, avalia.

São esses motivos que intrigam os cientistas do Brasil e de outros países que farão do CTA um instrumento tão revolucionário quanto o telescópio de Galileu Galilei. “É também um experimento que ajuda a instigar nos jovens uma forma de combater as fake news, ao mostrar a grandiosidade dos experimentos científicos, como o LHC e o James Webb”, opina Rafael Andrade Pereira, professor de física do ensino médio de colégios como Vera Cruz, Espaço Ekoa e Equipe, em São Paulo. “É bem legal ver os brasileiros participando de projetos desse tamanho. E os alunos podem enxergar a oportunidade de trabalhar com ciência de fronteira.”

Com essa e outras inovações, a “ilha do conhecimento” chega aos extremos da natureza, abrindo novos horizontes e trazendo mais perguntas que seguirão alimentando a sede de compreensão da humanidade.