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Brasileiro vence desafios e testa vacina de DNA

Publicado em 07 junho 2004

Por Evanildo da Silveira escreve para 'O Estado de SP':
Se o farmacêutico bioquímico Célio Lopes Silva tivesse realizado seu sonho de infância, hoje o Brasil teria um fazendeiro a mais, mas teria perdido um cientista de primeiro time. E os milhões de vítimas de tuberculose ou câncer do mundo teriam menos esperanças de um dia se curar. Silva desenvolveu uma vacina de última geração, que em teste em animais se mostrou eficiente contra essas doenças e lhe valeu artigo na revista 'Nature' e o reconhecimento da comunidade científica internacional. Graduado em Farmácia, mestre e doutor em Bioquímica pela USP, Silva nunca imaginou chegar aonde chegou. Nascido na área rural do município de Leme, em 18 de agosto de 1952, ele teve infância pobre, mas esse período lhe deixou lembranças que não se apagam e disposição de lutar por seus objetivos que nunca fraqueja. 'Aprendi muito cedo que com força de vontade se quebra qualquer barreira', diz hoje o chefe do Depto. de Bioquímica e Imunologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. É o que ele vem fazendo há 12 anos, no desenvolvimento da vacina gênica ou de DNA, chamada DNAhsp65. Ele iniciou as pesquisas em 1992 e publicou os primeiros resultados da vacina na prevenção da tuberculose em camundongos em 1994. Cinco anos depois, o trabalho, mais aprofundado, foi apresentado à comunidade científica internacional no artigo da 'Nature'. Um cientista comum teria parado por aí. 'Eu fazia ciência básica e nesse sentido meu trabalho estaria terminado', explica. 'Eu poderia colocar o artigo na parede e partir para outras pesquisas.' Não foi isso o que Silva fez, no entanto. 'Senti que era preciso ir adiante, produzir a vacina', explica. 'Percebi que poderia dar uma contribuição científica e tecnológica muito grande para a sociedade e o país. Como gosto de desafios, fui adiante.' A primeira barreira a ser vencida foi ausência de estrutura para produzir a vacina. Silva venceu-a criando o Centro de Pesquisa em Tuberculose, na FMRP, do qual é o coordenador. O passo seguinte foi a criação da Rede Brasileira de Pesquisas em Tuberculose (Rede TB), um dos Institutos do Milênio implementado pelo MCT, que reúne 300 pesquisadores de 52 instituições, também sob a coordenação de Silva. Depois, ele instalou laboratórios com nível de biossegurança 3, numa escala que vai de 1 a 4, na FMRP, para manipular microrganismos e desenvolver vacinas. Como elas deveriam ser produzidas em empresas e ainda não há nenhuma interessada, Silva montou, com o apoio da USP e da Prefeitura de Ribeirão de Preto, a incubadora de empresas Supera, que por sua vez permitiu a criação da Nanocore, para produzir vacinas. Em fevereiro, ele iniciou os testes clínicos da vacina DNAhsp65 contra câncer em humanos. Os primeiros resultados deverão sair até o fim do ano. Para a tuberculose ainda não há previsão. Faltam recursos de, no mínimo, US$ 6 milhões para concluir todos os testes da vacina contra as duas doenças. Antes de enfrentar essas dificuldades na sua carreira científica, Silva teve de vencer as barreiras que a própria vida lhe impôs. Vindo à luz pelas mãos de uma parteira, numa casa feita de troncos amarrados com cipó e recobertos com barro, Silva é o terceiro filho de um casal em que os pares, Antônio e Maria, ambos viúvos, estavam no segundo casamento. O pai já tinha três filhos e a mãe, dois. Ao recordar-se da infância, o cientista conhecido de hoje sempre se compara a Chico Bento, o menino matuto ingênuo, criado por Mauricio de Sousa. 'Minha vida de criança era igual à do gibi', diz. 'Tratava do porcos e das vacas, comia frutas no pé, pescava e tomava banho no rio. Só não tirava notas na escola tão ruins como as do Chico.' O colégio em que teve as primeiras letras não passava de um barracão, na qual uma única professora dava aulas para quatro séries diferentes, ao mesmo tempo. Quando Silva tinha 8 anos, a família se mudou para a área urbana de Leme e ele trocou de escola. Nesse tempo, nada indicava que ele seguiria a carreira de cientista. Até os 15 anos, sua vida se dividia entre a escola e a venda de frutas e verduras nas ruas da cidade. Ele também trabalhou de engraxate, servente de pedreiro e auxiliar de mecânico. Aos 15 anos, entrou no curso de magistério e aos 18 mudou-se para São Paulo, para fazer cursinho. Ficou um ano. Não teve sorte na primeira tentativa de entrar numa faculdade. Não passou no vestibular para Medicina. Teve de voltar para sua cidade, para servir ao Exército, onde ficou seis meses. Voltou a SP fez mais seis meses de cursinho e se inscreveu no vestibular para Farmácia. Dessa vez passou. Logo que começaram as aulas, passou num concurso para técnico de laboratório do Instituto de Química da USP e apaixonou-se pelas pesquisas. Era o início de sua carreira. Hoje, aos 51 anos, Silva, tido como de convívio fácil e alegre com a família e os amigos, tem a imagem pública sisuda, principalmente na imprensa. Isso talvez venha de uma relação não muito tranqüila com jornalistas. Logo depois da publicação do artigo 'Nature', ele foi muito requisitado para reportagens. 'Foram publicadas muitas coisas erradas, até meu nome', queixa-se. Apesar disso, ele não evita entrevistas. Ao contrário, resolveu fazer um curso de jornalismo científico, no Laboratório de Jornalismo (Labjor), da Unicamp, para se comunicar melhor com os repórteres. 'Ele foi um aluno dedicado, correto, disciplinado e bem relacionado com os colegas', elogia Carlos Vogt, presidente da Fapesp e coordenador do Labjor. 'Sem falar que foi importante para nosso curso ter um aluno ilustre como ele.' Outra medida tomada por Silva para evitar erros dos jornalistas foi escrever um texto básico sobre a vacina DNAhsp65, que sempre envia a eles antes das entrevistas. O texto teve um efeito colateral, no entanto, principalmente para quem o entrevista. Quando se pergunta algo sobre a vacina, ele quase sempre responde: 'Vou ter de explicar tudo de novo?' Mas, em seguida, não se nega a falar. Vacinas: 3.ª geração de uma descoberta importante Desde que Edward Jenner (1749-1823) criou a primeira vacina — contra a varíola — em 1796, elas evoluíram muito. Hoje, estão na terceira geração. As da primeira são produzidas com microrganismos vivos e atenuados (como é o caso da BCG contra a tuberculose) ou mortos e inativados (como a vacina contra coqueluche ou tosse comprida). As de segunda geração usam antígenos — proteína do microrganismo causador da doença que induz a uma resposta do sistema imunológico da vítima — purificados e provenientes de fontes naturais, sintéticas ou recombinantes. Exemplo é a vacina contra a difteria. Embora eficientes, essas vacinas oferecem certo risco de que a pessoa venha a ser contaminada pela doença que se está combatendo. A vacina gênica é diferente. Ela é produzida com um pedaço do DNA do agente causador da doença — escolhe-se o trecho responsável pela produção do antígeno que vai induzir a uma resposta do sistema imunológico — que é inserido num plasmídeo (trecho circular de DNA de bactérias). Após manipulado em laboratório, esse plasmídeo se transforma na vacina, que pode ser inoculada com injeção intramuscular. Ela cria condições para que as próprias células do vacinado combatam o causador da doença. Se a vacina DNAhsp65, criada pelo farmacêutico bioquímico Célio Lopes Silva, tiver os mesmos resultados em humanos que teve em animais, será um avanço na luta contra a tuberculose, doença que afeta 1 milhão de pessoas no Brasil (130 mil novos casos por ano) e 50 milhões no mundo (8 milhões de novos casos por ano). A vacina de Silva não apenas previne como cura os já infectados. 'A tuberculose está latente em um terço da população mundial ou 2 bilhões de pessoas', diz. 'Então não havia sentido em fazer um produto apenas para prevenir.' Além disso, segundo o pesquisador, os testes em animais mostraram que sua vacina poderia também curar a tuberculose multidroga resistente (que resiste a todos os medicamentos existentes), evitar a reinfecção endógena ou quando em contato pela segunda vez com o bacilo e reduzir o período de tratamento da doença para dois meses (hoje é necessário o uso de pelo menos três medicamentos simultâneos por um período de pelo menos seis meses). 'Os testes também revelam que ela pode ainda ser eficiente contra vários tipos de câncer', conclui Silva. (E.S.) (O Estado de SP, 6/6) JC e-mail 2540, de 07 de Junho de 2004.