A pauta de exportações brasileira está prestes a ganhar um novo item, pequeno o suficiente para caber no bolso de uma calça, mas de grande peso para a balança científica nacional. O primeiro carregamento - dois frasquinhos com 10 mililitros de anticorpos cada um - deverá deixar os laboratórios do Instituto Butantã, em São Paulo, nos próximos dias com destino à empresa Millipore, nos Estados Unidos, que comprou o direito de comercializar o produto no mercado internacional.
O acordo foi firmado recentemente entre a companhia e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que financiou os estudos no Centro de Toxicologia Aplicada (CAT) no Butantã. Os anticorpos foram desenvolvidos para se ligar a uma enzima chamada Eopa, que tem papel fundamental na formação do cérebro e de todo o sistema nervoso central. Estudos indicam que ela pode estar envolvida em uma série de distúrbios neurológicos, como esquizofrenia e lissencefalia (patologia conhecida como "cérebro liso").
A Eopa foi descoberta no Brasil, no fim da década de 60, em um desdobramento das pesquisas com o veneno da jararaca - que eventualmente, levariam ao desenvolvimento (fora do Brasil) do captopril, uma das drogas de maior sucesso no mundo para tratamento da hipertensão. O pesquisador Antonio Carlos Martins de Camargo, hoje diretor do CAT, descobriu a molécula quando procurava por enzimas capazes de degradar a bradicinina, um neurotransmissor com efeito anti-hipertensivo que é superativado pelo veneno da cobra.
Quatro décadas de pesquisa mais tarde, a Eopa pode se transformar em um grande exemplo de sucesso da pesquisa básica brasileira. Em 2002, os pesquisadores entraram com pedido de patente sobre o uso da enzima e de suas atividades como alvo terapêutico. O que significa que qualquer laboratório que quiser usar a Eopa como alvo para o tratamento de doenças terá de pagar royalties aos cientistas brasileiros. "Teoricamente, todas as patologias que envolvem o desenvolvimento do sistema nervoso central poderiam ter essa proteína como alvo", diz Camargo.
É nesse ponto, também, que entram em cena os anticorpos. Eles funcionam como uma ferramenta de pesquisa, essencial para que os cientistas possam rastrear as atividades da Eopa em laboratório. "Eu não consigo enxergar a Eopa sozinha, só quando ela está associada ao anticorpo", explica a farmacêutica Mirian Hayashi, que coordenou a maior parte das pesquisas no CAT e hoje é professora do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Difusão - O contrato com a Millipore, empresa especializada na venda de reagentes científicos, servirá para disseminar essa ferramenta para outros laboratórios. Tradicionalmente, numa situação como essa, o outro pesquisador simplesmente pediria uma amostra dos anticorpos a Mirian - que, pelo "código de ética" da boa convivência científica, enviaria a encomenda sem cobrar nada (porém, enfrentando uma burocracia tremenda e até pagando frete do próprio bolso).
Agora, ela enviará os anticorpos para a Millipore, que fará a comercialização - sem que isso a impeça de continuar a colaborar com outros pesquisadores. Os anticorpos são produzidos em linhagens especiais de camundongos, desenvolvidos dentro do Butantã. Uma forma é específica para a Eopa de ratos e outra, para a Eopa de seres humanos.
O volume de produção (10 ml) parece quase nada. Mas é muito. Depois de fracionados e embalados pela Millipore, os anticorpos serão vendidos em porções de aproximadamente 100 microlitros (um milionésimo de litro). "Dá para fazer muita pesquisa", afirma Mirian. O projeto é um dos destaques deste mês da revista "Pesquisa", da Fapesp.