Agência O Globo
O número de sequenciamentos genéticos de amostras do coronavírus em circulação no Brasil sofreu um "apagão" nos últimos meses. Esse tipo de estudo, que permite acompanhar o surgimento e a propagação de novas variantes do Sars-CoV-2 — possivelmente mais contagiosas, como a B.1.1.7, identificada inicialmente no Reino Unido e que já chegou a São Paulo —, ficou menos intenso no segundo semestre de 2020.
Para Fernando Spilki, virologista que é coordenador da Rede Corona-ômica, uma iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações para observar a evolução do coronavírus, o período mais afetado foi o de julho a outubro. Nesse intervalo, como conta, a burocracia e a busca por novos recursos diminuíram o ritmo no grupo que ele dirige.
— No primeiro momento [da pandemia], tivemos muito recurso relacionado a outros projetos tanto nacionais quanto internacionais que permitiram um sequenciamento razoavelmente grande. Depois disso, tivemos que tramitar todas as questões de comitê de ética, de liberação de recursos… — diz Spilki. — O problema é que a pandemia evoluiu muito rápido, e a tramitação desses recursos obedece a um ritmo diferente. Isso é uma coisa que temos que repensar no Brasil, para que a gente tenha um fluxo mais contínuo e mais adequado de fomento à pesquisa.
Essa queda foi notada também pelos pesquisadores do Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde). Esse projeto, liderado por Ester Sabino, professora do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), já sequenciou 600 genomas do Sars-CoV-2. Essa quantidade corresponde a quase 33% do total (1.828 genomas, até os primeiros dias de janeiro) publicado por brasileiros na plataforma Gisaid, espaço no qual cientistas do mundo todo compartilham dados sobre o vírus da Covid-19.
De todas essas sequências publicadas pelo Brasil, somente 8% delas foram submetidas entre os meses de agosto e dezembro. A observação foi feita por Darlan Cândido, integrante do grupo, à Agência Fapesp (a instituição de fomento à ciência do governo paulista é uma das apoiadoras do Cadde) nesta segunda-feira (12).
Brasil fica para trás
No projeto paulista, dificuldades com a importação de reagentes e a necessidade de concluir outros trabalhos durante o segundo semestre de 2020 estão entre as causas dessa queda no período. Mas, para além da baixa naqueles meses, os números do Brasil não são bons nesse aspecto de modo geral.
O Reino Unido, que deu o alerta sobre a nova linhagem mais infecciosa, lidera o ranking de sequenciamentos disponibilizados na Gisaid, com mais de 40% dos esforços em um universo de 359 mil submissões (em dados de até esta segunda, 12). Isso equivale a dizer que os britânicos conhecem o genoma de aproximadamente 5% dos casos confirmados de Covid-19 no país. No Brasil, essa porcentagem está em 0,024%, segundo cálculos do pesquisador Darlan Cândido.
— Realmente no momento é muito importante termos o foco em aumentar a quantidade de sequenciamento realizado no país, principalmente agora que parece estar ocorrendo um recrudescimento da epidemia em vários lugares — analisa Ester Sabino.
Trabalhar com amostras de diferentes regiões também é um ponto chave. Até agora, vêm do Sudeste 75% das amostras sequenciadas. Assim, não é possível saber o que acontece em outras partes do país.
— Foi o Japão que nos alertou hoje sobre uma variante no Amazonas — destaca o virologista José Eduardo Levi, em referência à confirmação de uma nova linhagem do Sars-CoV-2 identificada em japoneses que estiveram no Amazonas. A novidade foi revelada nesta segunda.
Levi, que trabalha na Dasa, rede privada que lidera a medicina diagnóstica no país, e no Instituto de Medicina Tropical da USP, faz parte do grupo que identificou, no final de dezembro, dois casos de infecção pela variante britânica B.1.1.7 em São Paulo. Esses são os primeiros episódios conhecidos no Brasil com essa cepa.
A Dasa, ele explica, estuda implantar um projeto de sequenciamento em grande escala para ajudar nos esforços brasileiros. A empresa tem um sequenciador que pode analisar até mil genomas por vez, o que ampliaria com rapidez os estudos por aqui.
O custo e a viabilidade da ideia, no entanto, ainda estão sendo analisados pelo laboratório. A companhia, para além de auxiliar na vigilância como um todo, tem o interesse de entender as novas linhagens, e assim checar a validade de seus testes, que podem resultar em falsos negativos, a depender do tipo de mutação do vírus.
Novo fôlego
Uma retomada nos sequenciamentos, afirma Spilki, já está em curso nas últimas semanas. Segundo ele, que trabalha na Universidade Feevale (no Rio Grande do Sul), o Brasil conseguiu publicar um número "considerável" de sequências nas últimas semanas. Essa volta é reforçada pela preocupação com novas cepas que podem ser mais transmissíveis, como uma encontrada inicialmente na África do Sul e identificada também em uma mulher de Salvador (BA) nos últimos dias.
— Temos um bom número de laboratórios com capacidade para fazer isso, com sequenciadores, e, a coisa mais importante, a gente tem formado ao longo do tempo no Brasil grupos de pesquisa com expertise para trabalhar nisso — relata. — Acho que em 2021 a gente vai conseguir ter um acompanhamento melhor e, na medida possível, vai conseguir mapear isso que ficou para trás entre julho e outubro. Temos nos concentrado no que está circulando neste momento, mas devemos depois conseguir recuperar também um bocado desse tempo perdido analisando sequências que ficaram armazenadas, para a gente conhecer um pouco mais também do processo evolutivo naqueles meses em que a gente ficou mais parado.
Spilki destaca, no entanto, que chegar ao nível do Reino Unido, que deposita até 7 mil sequências no banco de dados por dia, é uma meta distante, "em virtude do volume de recursos e da infraestrutura atual".
CoronavírusFoto: LMMV/IOC/Fiocruz (Foto: Foto: LMMV/IOC/Fiocruz)