Manter a palha sobre o campo e aprimorar os cuidados como o solo contribui para a redução de gases de efeito estufa na agricultura
Remover de forma indiscriminada a palha da cana-de-açúcar do campo após a colheita pode reduzir os estoques de carbono no solo e elevar as emissões de gases de efeito estufa (GEE).
Já se sabia que a palha usada nas usinas para a produção de etanol celulósico (E2G) e de eletricidade fornece vários serviços ecossistêmicos, como retenção de água no solo e controle de erosão. Agora, um estudo do Laboratório Nacional de Biorrenováveis, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (LNBR-CNPEM), mostrou que também é importante para a garantia de estoque de carbono no solo.
Enquanto cresce, a cana captura dióxido de carbono (CO2) da atmosfera e o acumula na palha, no colmo e nas raízes. Quando a cana é colhida, a palha é deixada no campo e, com o tempo, o CO2 nela contido se transforma em carbono estabilizado no solo. A transferência de carbono da atmosfera para o solo favorece o balanço de emissões do setor.
“Foi a primeira vez que uma pesquisa incluiu os estoques de carbono do solo na contabilização das emissões de GEE do ciclo de vida da bioenergia derivada da palha”, conta o engenheiro-agrônomo Ricardo Bordonal, primeiro autor de um artigo publicado em julho na revista Science of the Total Environment. “Utilizando modelos de simulação e avaliação do ciclo de vida, concluímos que, dependendo da quantidade de palha removida, os benefícios ambientais quanto ao balanço de GEE variam”.
Os pesquisadores avaliaram o impacto no balanço de carbono por meio de três cenários: remoção de 100% da palha, de 50% e de 0%. “Para a produção de bioeletricidade nas usinas, não vale a pena retirar a palha”, diz Bordonal. “Como o Brasil já tem uma matriz elétrica limpa, que emite pouco carbono, é mais vantajoso deixar a palha no campo para que o carbono contido nela seja fixado no solo”, afirma.
De acordo com esse estudo, apoiado pela FAPESP e pelo projeto Sugarcane Renewable Electricity (Sucre), do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, a remoção para a produção de E2G, contudo, pode ser vantajosa.
“A retirada orientada de 50% da palha do campo para a produção de etanol celulósico é eficaz na mitigação das emissões de GEE, já que a substituição de gasolina por etanol no carro leva a uma redução da emissão de CO2 que compensa o carbono que seria acumulado no solo”, comenta Bordonal. Segundo ele, quando se remove toda a palha, a perda, em termos de fixação de carbono, porém, é maior e não compensa.
“A pesquisa traz uma mensagem forte para o setor. Não há custo zero em tirar a palha para produzir etanol 2G ou bioeletricidade”, diz o engenheiro-agrônomo Maurício Cherubin, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP).
Ele também é vice-coordenador do Centro de Estudos de Carbono em Agricultura Tropical (CCarbon-USP), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. “Sempre que se deixa a palha no campo, é possível acumular entre 400 kg e 500 kg de carbono por hectare por ano”, estima.
Para reduzir as emissões
O estudo reflete o esforço para aprimorar os cuidados com o solo e reduzir as emissões de GEE da agropecuária brasileira, responsável por 27% dos 2,3 bilhões de toneladas de gás carbônico equivalente (CO2e) emitidos no país em 2022, correspondentes a 9,6 toneladas por hectare. Gás carbônico equivalente é uma medida internacional que estabelece a equivalência entre todos os GEE (metano, óxido nitroso e outros) e o CO2.
“Técnicas produtivas mais sustentáveis poderiam auxiliar a agropecuária brasileira a superar a condição de emissora líquida de GEE e se tornar protagonista no esforço do país para conter as mudanças climáticas”, ressalta o engenheiro-agrônomo da Esalq, Carlos Eduardo Cerri, coordenador do CCarbon-USP.
Instituído oficialmente em setembro de 2023, o centro, sediado na Esalq, em Piracicaba (SP), reúne cerca de 40 pesquisadores e 90 bolsistas. “São técnicas que substituem os sistemas baseados em monoculturas por modelos que promovem a biodiversidade. Melhoram a saúde do solo, reduzem as emissões de GEE e promovem o sequestro de carbono no solo”, complementa.
Para o engenheiro-agrônomo Guilhermo Congio, a criação de um centro de pesquisa em carbono voltado à agricultura tropical pode trazer benefícios ao país: “Além da redução das emissões de GEE, o CCarbon-USP poderá elucidar questões relativas à segurança alimentar, à economia de baixo carbono, ao desenvolvimento social, entre outras”.
Congio trabalha no Instituto de Pesquisa Nobel, nos Estados Unidos, que desenvolve técnicas para reduzir os impactos ambientais da produção de bovinos de corte. “Em um de nossos projetos, buscamos quantificar métricas de saúde do solo para ambientes de pastagens e vinculá-las a ferramentas de sensoriamento remoto, bem como determinar como as práticas dos pecuaristas impactam a saúde do solo e o sequestro de carbono em pastagens nativas e cultivadas”, relata.
Sistemas produtivos inspirados em processos naturais conhecidos como soluções baseadas na natureza (SbN) geram sustentabilidade, produtividade e serviços ambientais, como o sequestro de carbono, argumentam pesquisadores agora associados ao CCarbon-USP em um estudo publicado em março de 2023 na Green and Low-Carbon Economy. São exemplos de SbN: a ocupação de uma mesma área para produção agrícola, criação de animais e plantio de árvores, uso de biofertilizantes e controle biológico de pragas.
“Temos a possibilidade de substituir um ciclo produtivo de pouca atenção ao ambiente por outro, que aproveita a capacidade natural das plantas de capturar carbono da atmosfera e a do solo de armazenar esse carbono”, diz Cherubin.
Segundo ele, uma área agrícola com solo saudável é capaz de reter o carbono por longo tempo: “O carbono enriquece o solo com nutrientes e gera ganhos de produtividade”. Por sua vez, o aumento na produção vegetal proporciona mais sequestro de CO2, o que resulta em áreas ainda mais ricas e produtivas.
Inversamente, o solo degradado leva à baixa produtividade e capacidade de reter carbono, que em grande parte retorna à atmosfera como CO2. Quanto mais degradado o solo, maior a dependência de fertilizantes nitrogenados para estimular o crescimento das plantas.
Esses fertilizantes são compostos petroquímicos, cujo processo produtivo é realizado mediante emissões de gases poluentes. Além disso, o uso de fertilizante nitrogenado para adubar as plantas resulta na emissão de óxido nitroso (N2O), um GEE 300 vezes mais potente do que o CO2.
A biodiversidade microbiana
A saúde do solo depende de sua composição mineral e da biodiversidade vegetal e microbiana. Sistemas produtivos intensivos baseados em monoculturas – por exemplo, de grãos, cana-de-açúcar ou pasto para o gado – empobrecem o solo.
Uma linha de pesquisa do CCarbon-USP examina como as mudanças na composição e na atividade do microbioma do solo poderiam interferir no sequestro de carbono nos sistemas agrícolas.
“Vamos utilizar as abordagens microbiológicas mais consolidadas, como sequenciamento e quantificação massiva de genes, metagenômica [estudo da comunidade de microrganismos de determinado ecossistema] e bioinformática”, diz o engenheiro-agrônomo da Esalq e do CCarbon-USP Fernando Dini Andreote. Um dos objetivos é propor formas para reduzir o uso de fertilizantes nitrogenados e defensivos agrícolas, gerando menor emissão de GEE.
A agricultura brasileira já adota técnicas para preservar a biodiversidade e promover a saúde do solo, como a rotação de culturas, que alterna as espécies vegetais em uma mesma área, e o plantio direto, no qual os resíduos da colheita permanecem sobre o terreno e a semeadura é feita sobre o solo não revolvido mecanicamente. Segundo Cerri, o plantio direto absorve até meia tonelada de CO₂ por hectare por ano.
Converter áreas de pastagens degradadas e agricultura convencional em sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) ou sua versão sem o plantio de árvores (ILP) também poderia reduzir a emissão de GEE.
“O solo de sistemas integrados é um potencial dreno para metano [CH4], consumindo entre 0,8 e 1 kg do gás por hectare por ano. Já a transição de monocultura de pastagens para sistemas integrados reduziu a emissão de óxido nitroso em até 1,63 kg por hectare por ano”, informa o engenheiro-agrônomo Wanderlei Bieluczyk, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP.
Ele é o primeiro autor de um estudo da edição de junho na Journal of Cleaner Production que detalha esses resultados. Gás 30 vezes mais danoso que o CO2, o metano é produzido na digestão de bovinos e liberado principalmente por meio de arrotos.
Financiada pelo Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), apoiado pela FAPESP, a pesquisa revelou que a conversão de pastagem degradada em sistemas integrados tem o potencial de reduzir a intensidade de metano entérico gerado pelo gado com eliminação de até 122 gramas do gás por quilo de ganho de peso diário médio.
“Basicamente se produz a mesma quantidade de carne com uma queda de cerca de 25% da emissão de metano entérico”, calcula Bieluczyk. O Brasil detém o maior rebanho bovino comercial do mundo, com aproximadamente 220 milhões de animais.
Para Congio, é importante que as estimativas do balanço de carbono da agropecuária no Brasil adotem uma padronização nas unidades de fluxos dos GEE – recomendação feita no artigo científico de Bieluczyk. “Muitos estudos usam fatores de conversão dos GEE recomendados pelo IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas], que são geralmente baseados em trabalhos desenvolvidos em condições de clima temperado e sistemas de produção distintos dos tropicais”.
Um dos propósitos do CCarbon-USP é identificar combinações de plantas e formas de ocupação do solo mais adequadas para compor um sistema de produção que proporcione maior retenção de carbono, torne o solo mais saudável e aumente a produtividade agrícola. Os pesquisadores miram as plantas de cobertura, como braquiárias, crotalárias, milheto e sorgo, usadas entre o plantio das culturas principais.
“Depois da colheita da soja, por exemplo, o agricultor deve utilizar uma dessas plantas para, literalmente, cobrir o solo”, explica Cherubin. “Elas têm um papel crucial, pois ajudam a ciclar nutrientes, fixar nitrogênio atmosférico, sequestrar carbono, controlar nematoides e proteger o solo contra o impacto das gotas da chuva e da erosão”, completa.
De acordo com ele, na última safra, por causa das altas temperaturas, algumas lavouras de Mato Grosso precisaram fazer três replantios por não ter o solo coberto com a palhada.
Em julho, o grupo de pesquisa em manejo e saúde do solo da Esalq, associado ao CCarbon-USP, publicou o e-book Guia prático de plantas de cobertura: espécies, manejo e impacto na saúde do solo, com o propósito de auxiliar os agricultores a planejar melhor a janela de cultivo.
“Imprimimos 3 mil cópias e entregamos a produtores rurais em um evento na Bahia”, relata Cherubin. Segundo ele, a agropecuária é bastante vulnerável às mudanças climáticas. “Hoje, é parte do problema, emitindo GEE. Pretendemos mostrar ao produtor que, adotando práticas de manejo sustentáveis, ele pode ser parte da solução, sequestrando carbono e revertendo esse carbono em ganho de produtividade. O maior beneficiário será o próprio produtor rural”.
Domingos Zaparolli e Yuri Vasconcelos