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Galileu

Biotecnologia - O futuro chegou

Publicado em 01 novembro 1999

Por Por GABRIEL MANZANO FILHO E-mail: gmanzano@edglobo.com.br
Daqui a oito semanas, na grande virada do século e do milênio, as habituais retrospectivas na mídia vão dizer, e repetir, que este foi o século da ciência. Certíssimo. Atravessamos as últimas décadas embevecidos, ou atribulados, com Einstein e a relatividade, Oppenheimer e a bomba atômica, o homem na Lua, a televisão, o computador. Mas que ninguém estranhe se, muito em breve, aparecer alguma boa cabeça dizendo: "Século da ciência, que coisa vaga! Tínhamos diante do nariz, acontecendo todos os dias, a mais fantástica revolução de toda a história do conhecimento! Abrimos o livro da vida, uma obra que a natureza compôs em 3 bilhões de anos. Aprendemos a entendê-lo, deciframos suas lições, começamos a reescrevê-lo - e ficamos ali dizendo 'ciência', quando devíamos dizer 'genética'"! Ou, mais precisamente, biotecnologia. Nascida do feliz casamento da biologia com a informática, em pouquíssimos anos de vida essa nova aventura da inteligência humana vem atirando sobre todos nós, a cada dia, um dilúvio de novidades e descobertas com uma rapidez absolutamente espantosa. Por sua obra e graça estamos cercados de genes, embriões, biochips, genomas, neurotransmissores, clonagens, seqüências, transgênicos - e de símbolos intrigantes como a ovelha Dolly, a "escadinha" em espiral do DNA, a soja transgênica, agora até ratinhos inteligentes. Não é só mais uma daquelas novidades apressadamente chamadas de "revoluções", que a cada 30 anos mudam alguns de nossos hábitos. A biotecnologia é uma ruptura, garantem os entendidos, comparável ao momento em que o homem, bem lá atrás, dominou o fogo. Não é uma técnica a mais. É o poder de criar e alterar processos e formas orgânicas, nos mundos vegetal, animal e microorgânico. "Assim como no passado manipulamos plásticos e metais, agora estamos trabalhando com matéria viva", comparou um dos mais respeitados cientistas do século, o britânico Lord Ritchie-Calder. Já está acontecendo. A grande polêmica sobre alimentos transgênicos. produtos de sementes alteradas em laboratório.já se tornou batalha diária entre multinacionais de sementes, governos, cientistas e ambientalistas (Irradiante "As novas cores do verde'"). Em centenas de laboratórios, poderosas máquinas separam, lêem e anotam as bilhões de seqüências de bases químicas de genes do homem e de outros organismos (ler "A batalha do genoma"). E os cientistas naufragam num dilúvio de dados: um estudioso calculou que um só desses laboratórios pode produzir, a cada dia. um volume de informações equivalente a 20 mil vezes as obras completas de Shakespeare. Só nos últimos três meses, biogeneticistas anunciaram ter identificado (em ratos) genes da inteligência, da dislexia, do diabetes, da narcolepsia - as conquistas na medicina agora são semanais. Já se clonam animais e bactérias, para servirem de reservatórios de proteínas. Plástico biodegradável já pode ser produzido por plantas. Breve, florestas inteiras poderão ser "guardadas" (os embriões) em anuários, para se remapear a vegetação do planeta, já se produziu um clone de mosquito cuja picada deposita uma bactéria transformada, que cura a malária, em vez de transmiti-la. E estão lançadas também as bases da poluição genética: curiosos produziram um híbrido de cabra e ovelha e inseriram o gene de um vaga-lume em uma folha de tabaco para fazê-la brilhar. Lá na frente, no centro de toda essa mudança, gurus do meio ambiente como Jeremy Rifkin (ler o quadro "Os temores do advogado da natureza") vêem despontar uma "civilização eugênica". capaz de programar as pessoas e corrigir, em seu código genético, tudo o que for considerado inconveniente. Considerado por quem? Bilhete só de ida Esse futuro tem sedes, empregados e ações na bolsa. Nomes como Organogenes. Nanogen, Mycogen, Mvriad, Celera, Incyte, Hyseq, Du Pont, Monsanto, Novartis, Aventis - mais de 1.200 empresas de pesquisa, produção e comércio na área de biotecnologia só nos EUA. com perto de 100 mil funcionários. E o Brasil, quem diria, vai bem nessa corrida: foi o primeiro país fora do eixo EUA-Europa a seqüenciar um genoma vegetal e a criar métodos próprios (ler "O Brasil Entra na Festa"). Em suma, estamos entrando, sem bilhete de volta, em algo que o biólogo inglês Thomas Huxley imaginou em 1863, em seu livro O Lugar do Homem na Natureza. Ele sugeria, então, que o homem é apenas um estágio transitório no processo evolutivo. E foi justamente um neto dele, o escritor Aldous Huxley, que tentou descrever esse mundo, no clássico Admirável Mundo Novo, em 1932. Um mundo que parece ficção científica mas não é. É apenas a era da biotecnologia chegando. A batalha do genoma Os mais importantes motores a impulsionar a era biotecnológica, hoje, são os projetos genoma. Trata-se de levantamentos completos de todos os genes de um organismo. Como a bússola nas antigas navegações, eles são o mapa da mina. a base para se pesquisar qualquer coisa sobre um homem, uma planta, uma bactéria. Imaginada nos anos 50, quando cientistas americanos tentavam entender os efeitos da radioatividade entre as vítimas da bomba atômica, essa idéia só se tornou viável depois que a ciência aprendeu as técnicas da pesquisa genética (ver quadro abaixo) e criou máquinas para o seqüenciamento das bases químicas de um DNA - ou seja, o registro da interminável série de ácidos A, C, T e G cuja combinação vai constituir um gene. Recentemente, os cientistas concluíram alguns desses projetos. como o genoma do C. elegans, um nematóide de um milímetro, ou o da mosca de frutas, a Drosophila melanogaster. Mas isso foi apenas treino para a gigantesca batalha de fazer o Genoma Humano. Iniciado em 1990, por cientistas ligados ao governo dos EUA, esse genoma promete decifrar por inteiro o código genético da raça Homo sapiens sapiens - nós -, identificando os cerca de 140 mil genes do nosso organismo e registrando as 3 bilhões de combinações (letras) de suas bases químicas. E uma aventura e tanto. Os biólogos jamais a levariam adiante sem a ajuda de especialistas em física, engenharia e computação. "É o mais importante esforço conjunto já realizado na ciência", define o dr. Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA. "Perto dele, o esforço para ir à Lua parece pequeno." O ritmo do trabalho, que já está da metade para o fim, é frenético. A aparição, em 1998, de um projeto privado - a empresa Celera, de um competente e ambicioso biólogo, Craig Venter - prometendo fazer muito mais rápido e mais barato, sacudiu a rotina dos laboratórios oficiais e desencadeou uma dramática corrida pela glória de completar primeiro e pela obtenção de patentes dos genes realmente significativos. Tudo pronto em maio O surgimento da concorrência alterou também o modo de trabalhar. O projeto oficial, executado por mais de 200 centros de pesquisa (incluindo ingleses, franceses, alemães e japoneses), dedica-se a identificar os genes um por um, anotar e revisar cada seqüência, registrar dados em um banco público de dados, o GenBank, para livre acesso a cientistas de todo o mundo. Craig Venter virou essa rotina de cabeça para baixo, ao anunciar que vai primeiro definir os genes que importam (que não passam de 3%) e concentrar-se neles. Assim, a Celera pode conhecer e patentear primeiro os genes com potencial científico e econômico. Ao contrário do projeto oficial, que já gastou dez anos e 3,5 bilhões de dólares, Venter fala em dois anos e 350 milhões de dólares. Cético quanto aos resultados dessa estratégia, mas percebendo os novos tempos, um dos comandantes do projeto oficial, Robert Waterston, reorganizou o trabalho e promete para maio próximo uma versão global, com 90% da missão cumprida. Ele quer tentar impedir que Venter tenha a glória de ser o primeiro a completar a missão - um feito de que a ciência se lembrará por muitas décadas - e obtenha patentes importantes. Quem chegará primeiro? "Até onde sei, a Celera vai indo muito bem. Eles devem terminar primeiro", observa em São Paulo o biólogo "anglo-brasileiro" Andrew Simpson, que coordenou o primeiro projeto de genoma brasileiro (o da praga do amarelinho - ver à página 27). Aí vem a geneterapia Quando pronto, o Projeto Genoma Humano será uma imensa biblioteca de genes. E depois desse mapeamento vem outra fase decisiva, a do genoma funcional. É quando, através de técnicas complexas, com ajuda de softwares de última geração, se estudam a função dos genes, o modo como eles produzem as proteínas e o papel destas no organismo (ver quadro ao lado). Aqui abre-se o campo para especialidades como a neurofisiologia ou a geneterapia (cura pela implantação ou alteração de genes no organismo). "Até o ano 2010, uns 20% dos medicamentos serão agentes geneterápicos", diz o dr. Stephen Russel, da Clinica Mayo, nos EUA. Do DNA à ovelha Dolly, em cinco décadas Antes que a ovelha Dolly tirasse a biologia do silêncio dos laboratórios para as manchetes dos jornais, houve meio século de descobertas. Confira as mais importantes. 1943: descobre-se que o DNA pode passar o caráter hereditário de uma bactéria para outra. 1948/50: sabe-se que o papel dos genes é especificar as informações para criar proteínas. 1951: primeiras imagens em raio X de um cristal de DNA. 1953: James Watson e Frederick Crick descobrem a estrutura do DNA. É uma dupla hélice na qual quatro bases químicas (adenina, citosina, guanina e tiamina, A, C, G e T) se organizam segundo regras bem precisas. A descoberta valeu o prêmio Nobel. 1960: detectado o RNA mensageiro, que transfere a informação para a proteína. 1966: decifrada a linguagem do código genético. A leitura do DNA baseia-se em grupos de três daquelas quatro letras, o códon. 1970: descoberta a enzima de restrição, que corta o DNA. Sintetizado quimicamente o primeiro gene. 1972: Paul Berg produz a primeira molécula de DNA recombinante, o grande passo para experimentos entre organismos diferentes. 1978: a Genentech, americana, produz a partir de bactérias a insulina humana recombinante. 1982: surge o primeiro animal transgênico, com genes que aumentam o tamanho de um camundongo. 1983: Kary Mullis cria a técnica de reação em cadeia da polimerase, que permite trabalhar no seqüenciamento do DNA. 1984: ingleses inseriram genes de uma cabra em uma ovelha. Nasceu uma cabra-ovelha. 1986: genes de vaga-lumes são enxertados em folhas de tabaco. As folhas começam a brilhar. 1989: identificado e clonado o primeiro gene, no cromossomo 7, responsável pela fibroso cística (uma doença hereditária). 1990: começa o projeto Genoma Humano, para identificar todos os 100 mil genes do homem e suas 3 bilhões de bases químicas. 1993: um gene produtor de plástico biodegradável é enxertado em um pé de mostarda. Essa planta transformou-se numa fábrica de plástico (a Monsanto pretende lançar o produto em 2003). 1997: o Instituto Rosslin, de Edinburgo, anuncia em fevereiro a ovelha Dolly. O núcleo de uma célula adulta (e já diferenciada) de uma ovelha é inserida em um óvulo e o embrião se desenvolve. 1997: o Brasil começa o seu primeiro genoma, o de Xylella. Julho de 1999: criadores da Dolly clonam dois carneirinhos. Cupido e Diana, que serão usados como "reservatórios" de proteínas. Setembro de 1999: concluído o genoma da drosófila (a mosca de frutas). Os genes para a cura Se o primeiro passo é obter o mapa, o segundo é ir atrás do tesouro. Esta é uma fase mais difícil, que exige mais talento do que paciência. Nela se estudam a fundo um determinado gene, a sua função, a proteína que ele produz e o que essa proteína faz no organismo. É o chamado genoma funcional, a meio caminho entra a genética e a informática. Em vez de poderosas máquinas cotejando milhares de bases químicas ao mesmo tempo, o que vale aqui é, por exemplo, criar um software capaz de executar com precisão tarefas milimétricas, ou obter reagentes que identifiquem um processo ou uma proteína. É nesse campo que tem atuado, com sucesso, o paulistano Marcos Piani. Dono de uma empresa de softwares científicos e de análise de expressão gênica, a Bioinformática, esse biólogo de 33 anos, formado na Unicamp, tomou gosto por computadores e, no início da década, foi inventar processos e softwares para laboratórios americanos e europeus. De volta a São Paulo, ajudou no início do trabalho do Genoma do Câncer no Instituto Ludwig e foi trabalhar na incubadora científica de empresas da USP. Esse é um nome pomposo, para uma idéia bem prática: um grupo de salas com instrumental adequado, para alugar a pesquisadores que tiveram projetos bem definidos. "Uma empresa científica custa dinheiro demais e demora para dar lucro", explica Piani. "Se abrir uma boa empresa é coisa para um milhão de dólares, descobrir e lançar uma droga não sai por menos do que uns 200, 300 milhões." A universidade, acrescenta, "pode financiar e aguardar o retomo. Estará criando tecnologia própria para o país e impulsionando novas atividades na economia". É assim que avança a biotecnologia em seu estágio industrial: empresas genômicas, com gente altamente especializada, trabalhando em encomendas dos grandes laboratórios. "Aparece um deles e diz: 'Estamos interessados em doenças nervosas, vejam o que conseguem descobrir na área da esquizofrenia'." Foi o que ocorreu em 1995, em San Diego. Trabalhando com robótica, Piani ajudou a montar um sistema que permitiu à Sequana Therapeutics localizar um gene responsável pela asma. "A tarefa era escolher robôs, prepará-los para um trabalho rápido, de seqüenciamento, e no estudo de mutações." A Human Genome Sciences (em Rockville, EUA), outro lugar onde Piani trabalhou, tem hoje suas ações altamente valorizadas, pelas patentes que criou. Em fevereiro último, Piani criou um "spotter", sistema que consegue distribuir em quantidades nanométricas (bilionésimos de litro) gotículas de material, para fixar genes clonados em lâminas, para a realização de testes genéticos. O Brasil também entra na festa "Entramos sem ser convidados nessa festa, e vamos fazer a nossa parte." É assim, com sorriso confiante e uma ponta de orgulho na voz, que o professor de física da USP José Fernando Perez, 54 anos, descreve o competente salto que deu a pesquisa brasileira, dois anos atrás, quando um grupo de cientistas tramou em São Paulo o início de um projeto genoma - um trabalho que, até então, só se fazia em centros mais adiantados, como Nova York, Tóquio ou Paris. Os países desenvolvidos investiam fortemente em pesquisa genética e o grupo percebeu que não bastava correr: era preciso "dar um salto"'. Como diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp), que recebe por ano 1% da receita tributária do estado de São Paulo (este ano, cerca de 190 milhões de reais), Peres ajudou a estruturar a aventura: o objetivo não era descobrir isto ou aquilo, era formar gente competente, dotar laboratórios de material novo e adequado, trabalhar em algo útil para o país. A onça contra o tigre A coisa andou melhor do que eles próprios imaginavam. Nestes 24 meses, com 34 laboratórios e uns 200 pesquisadores envolvidos em quatro diferentes projetos de genoma (ver quadro), os brasileiros surpreenderam os cientistas estrangeiros com sua rapidez e criatividade. Foi montado um laboratório virtual, assentado em uma rede na Internet, pela qual universidades e centros de todo o Estado se comunicam permanentemente. "Não tem prédio nem administração, os recursos vão todos para a pesquisa", garante Perez. Parodiando o nome TIGR (The International Genoine Research, um grande banco de dados de seqüenciamento genético), deu-se a tal rede o nome de ONSA (Organization for Nucleotides Sequencing and Analysis. Organização para Análise e Seqüenciamento de Nucleotídeos), cujo símbolo é uma brasileiríssima onça-pintada. Potentes seqüenciadores automáticos de DNA (um dos quais, o potente MegaBace, custa 300 mil dólares) foram comprados e distribuídos. Consultores de prestígio foram chamados a acompanhar a aventura - o inglês Steve Oliver, o belga André Goffeau e o grego John Sgouros, que nos primeiros seis meses ficaram surpresos com a rapidez e praticidade dos aprendizes. Por todos os lados, enfim, a operação rompia com as tradições de atraso, desconhecimento e desperdício de recursos na política científica nacional. A escolha da primeira tarefa, o seqüenciamento dos genes de uma bactéria responsável pela praga do amarelinho, que inferniza as lavouras paulistas, foi longamente discutida. Não podia ser algo muito complexo: não tínhamos know-how para tanto. Também não podia ser algo genérico, ou inútil, que pouco ensinasse aos pesquisadores. Terceiro, como o dinheiro não pode ser perdido em curiosidades, era preciso buscar algum benefício prático para o país. A Xylella fastidiosa (esse o nome científico da praga) "estava de bom tamanho". É uma bactéria de cerca de 2,7 milhões de bases químicas e seria o primeiro genoma de um patógeno vegetal no mundo. Seu controle, quando terminado o trabalho, trará melhores safras e mais qualidade, nos cítricos e no café. "Mas o principal produto desses projetos", observa Perez, "é gente. Gente competente, para trabalhar no ambiente acadêmico, nas empresas, propiciar um salto na biotecnologia no Brasil." Simpson e Orestes Em dois anos, o genoma Xylella ficou praticamente pronto (uns 99%, calcula Perez), e já entrou na fase do genoma funcional: é quando, com os genes todos mapeados, começa a tarefa de analisar os mais importantes, saber o que faz cada um deles, que tipo de proteína vai produzir. Enfim, onde estão os fatores responsáveis pelos estragos nas colheitas. Enquanto isso, os outros três projetos prosseguem em alto ritmo, em São Paulo (onde há pesquisas na USP e na Unifesp) e cidades como Campinas, São Carlos, Jaboticabal, Ribeirão Preto, Piracicaba, Botucatu e Mogi das Cruzes, entre outras. Um desses três, o da cana-de-açúcar, tem um potencial promissor: seu estudo genético pode levar a outras plantas capazes de produzir o álcool. "E isso nos permite até pensar em formas de evitar a monocultura", observa Perez. Mas o teste definitivo para emparelhar o Brasil com a melhor tecnologia americana é o Projeto Genoma do Câncer, que a Fapesp contratou em março passado com o Instituto Ludwig. O inglês Andrew John Simpson, seu coordenador, soma dois anos de experiência à frente do Xylella. Sua missão é, a partir de amostras de células tumorais obtidas no próprio Hospital do Câncer, onde o Ludwig está instalado, fazer o seqüenciamento e identificar na origem as mutações genéticas que levam à criação de tumores. De sua sala, no 5º andar do hospital, Simpson comanda cem pessoas em 39 laboratórios da capital e outras dez cidades paulistas. Ele usa um sistema próprio de pesquisa, o método Orestes (de open reading frames of expressed sequenced tags). De explicação extremamente técnica, o Orestes significa, grosso modo, uma forma diferente de extrair a informação de um gene - em sua parte central e não nas bordas, como se faz geralmente. ''O meio é que é importante", diz Simpson. "Vimos que não é difícil gerar seqüências dos 3% de genes que de fato importam." A meta do grupo é produzir 100 mil seqüências este ano e 500 mil até o fim do ano que vem. "Nossos dados também vão ajudar os outros, lá fora. a interpretar o genoma humano." Os genomas da Fapesp Genoma Xylella (o primeiro fora do eixo EUA-Europa) Início: 1997. Custo: US$ 12 milhões. Equipe: 34 laboratórios, 100 pesquisadores Meta: seqüenciamento genético da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada de citros, CVC (praga do amarelinho), que prejudica citricultura em geral e café. Impacto: 400 mil empregos. Andamento: 99% concluído Genoma Humano do Câncer Inicio: março de 1999. Custo: US$ 10 milhões. Equipe: 39 laboratórios, 100 pesquisadores. Meta: seqüenciar genes dos tumores mais comuns na população brasileira (cabeça, gástricos, colo do útero) Estratégia: aplicar o método Orestes de seqüenciamento, criado no Brasil. Andamento: 100 mil seqüências até dezembro, 500 mil até dezembro/2000. Genoma Xanthomonas Citri Início:junho de 1999 Custo: US$ 5,5 milhões Equipa: 24 laboratórios, 80 pesquisadores Meta: seqüenciamento genético da bactéria Xanthomonas axonopodis pv citri, causadora do cancro cítrico, que prejudica as colheitas de laranja, feijão, arroz, maracujá. Genoma da cana Início: abril de 1999 Custo: US$ 8 milhões Equipe: 28 laboratórios, 60 pesquisadores Meta: seqüenciamento genético dos 60 mil genes da cana-de-açúcar, para conhecer genes como os relacionados com o metabolismo da sacarose. Impacto: 600 mil empregos na área rural paulista (mais 400 mil no país) e faturamento de US$ 8 bilhões/ano, 25% da produção mundial de cana. As novas cores do verde Transgênico, diz o dicionário, é qualquer organismo, planta ou animal cujo "estoque" de genes foi ampliado com a vinda de genes "de fora" e que alteram o seu comportamento. Na prática, o termo foi encampado pelo mundo vegetal desde que se descobriu, nos anos 80, uma bactéria que consegue naturalmente introduzir fragmentos de DNA em uma célula vegetal - o Agrobacterium tumefaciens. A ciência vislumbrou nas plantas transgênicas um futuro dos mais risonhos: flores, frutos, sementes e seivas que poderiam ser reprogramados a seu bel-prazer, safras abundantes e alimentos mais nutritivos para acabar com a fome no mundo. Logo apareceriam novidades como as plantas-vacinas - por exemplo, a batata testada nos EUA, que imuniza contra a diarréia da bactéria E. coli -, rosas azuis, mamões sem semente e os vegetais "instruídos'" para produzir plástico biodegradável. Guerra em três fronts O que era possível para a ciência tornou-se altamente desejável para a indústria. Frutas maiores e mais bonitas, cereais com muito mais proteínas, sabores livres, à escolha do mercado, colheitas mais rápidas, culturas capazes de crescer na seca e em solos áridos - tudo acenava, para as grandes empresas agrícolas, com fartas vendas e muito lucro. Mas há uma terceira ponta nessa história. São os ecologistas, cientistas e técnicos de governo que desde o início viram tais novidades com enorme desconfiança: elas poderiam trazer riscos para a saúde dos consumidores e para os delicados ecossistemas planetários. Não é prudente, gritaram os ambientalistas, sair por aí mexendo em estruturas orgânicas que levaram milhões de anos para chegar ao que são - árvores, solos, gramíneas, micróbios, pássaros e pólens, que se equilibram de modo sofisticadíssimo na biosfera, complementando-se numa harmonia admirável. A declaração de guerra entre os dois lados foi imediata - e há três anos a batalha dos transgênicos corre solta no mundo inteiro. De um lado, fortes empresas que vendem sementes geneticamente modificadas, principalmente soja e milho (em menor escala, as de batata, frutas e legumes), aliados a fazendeiros que as compram para obter safras maiores e faturar mais. Do outro, alguns governos, cientistas e movimentos ecológicos que não aprovam essas alterações nem a rapidez com que se expandem as áreas plantadas com transgênicos. Para melhor entender essa batalha, convém avaliar os três fronts em que ela se desenvolve - o científico, o comercial e o político. No científico, há dois argumentos permanentes: os defensores dos transgênicos insistem que tudo é testado, controlado e até mais seguro do que os processos naturais. Os adversários bradam que ninguém pode prever o futuro porque a ação da natureza, no caso, é lenta. A rigor, nem os críticos conseguem provar que alimento transgênico faz mal e nem os seus defensores têm como garantir que ele é seguro. Sabe-se, aqui e ali, de pesquisas genéticas que desembocaram em problemas - um deles é o de uma proteína chamada Bacillus thuringienses, Bt, que ajuda a melhorar um tipo de milho mas que está matando as lindas borboletas monarca nos EUA. Sabe-se de um tipo de alteração feita em batatas, e que provocou estranhas reações em ratos, em laboratórios europeus. Tais episódios são usados pelos dois lados - um denunciando e outro alegando que o processo está sob controle. No caso da proteína Bt, prejudicial às borboletas, a Novartis, multinacional que a desenvolveu, garante que seu milho é mais seguro para consumo humano "pois contém menor teor de micotoxinas (substâncias cancerígenas)", segundo o dr. Wilhelmus Uitdewilligen. Áreas maiores No front comercial, as empresas estão vencendo de goleada. As áreas plantadas com transgênicos cresceram, em apenas três anos, de 3 para 30 milhões de hectares (ver quadro). Metade da soja e do algodão, um terço do milho e pequena parte da batata, nos EUA, já são transgênicos. Quatro dos cinco grandes produtores agrícolas, EUA, Canadá, Austrália e Argentina, puxam a crescente produção de safras transgênicas (o quinto, o Brasil, está discutindo como agir). Apoiada em sua nova semente de soja, a Roundup Ready, a Monsanto responde hoje por 40% de toda a soja colhida nos EUA e por 55% na Argentina. (A Monsanto, junto com as empresas Novartis, Du Pont, AstraZeneca e Aventis, controla cerca de 70% do comércio agrícola internacional). Esses números revelam um ponto fraco da revolução transgênica: ao contrário do que ocorre na medicina, os seus avanços até agora só beneficiaram produtores de sementes e grandes fazendas. Para os consumidores sobra a incerteza sobre futuros riscos para a sua saúde e para o meio ambiente. No terceiro front, o político, as forças parecem divididas, embora os EUA, por sua enorme influência e por não terem assinado a Convenção da Biodiversidade. desequilibrem o jogo em favor do lema "transgênicos, a todo vapor". O Brasil é um raro caso de país importante onde o combate parece equilibrado. Produzindo 31 milhões de toneladas de soja e 30 milhões de milho, a agricultura responde por 10% (70 bilhões de reais) na formação do PIB. Mas as novas sementes esbarram em um forte movimento de ambientalistas e técnicos governamentais. Apoiados no artigo 225 da Constituição, que exige o "estudo de impacto ambientaI" (EIA) em ações que possam degradar o ambiente, eles têm aumentado sua influência na opinião pública e em órgãos de controle. Para ajudar, o inciso 1º daquele artigo incumbe o poder público de exigir os tais estudos e dar-lhes publicidade. Essa lei fortaleceu-se com o surgimento do "princípio de precaução" - uma figura criada na Eco-92, no Rio de Janeiro, segundo a qual sempre que houver dúvidas a prevenção não pode ser adiada. "A tecnologia deve estar a serviço do homem e não o contrário", afirma um respeitado advogado ambiental, o prof. Paulo Affonso Leme Machado, da Unesp. Futuro incerto Mas todas essas garantias trombam com a prática política. Enquanto no Rio Grande do Sul o governo proíbe a experiência com transgênicos, em Brasília uma estranha divisão de poderes cria campo para confusões. O Conselho Nacional de Biotecnologia, CNTBio, só tem poder consultivo, e três ministérios repartem a política biotecnológica (Saúde, Agricultura e Meio Ambiente). Um pedido da Monsanto para plantar uma nova área foi aceito, depois embargado e o processo está correndo. Saber quem vai ganhar essa queda de braço, por enquanto, é inteiramente impossível. Os temores do advogado da natureza O escritor americano Jeremy Rifkin destacou-se, nos últimos tempos, como um determinado advogado da natureza e da raça humana. Ele já havia comandado, nos anos 80, uma campanha para impedir que se aplicassem hormônios em vacas para aumentar sua produção de leite. Em abril passado, lançou o livro "The Biotech Century" (O Século da Biotecnologia, editora Makron), já transformado numa espécie de bíblia dos ambientalistas que desconfiam da atual revolução biotecnológica. Em setembro, a sua Fundação sobre Tendências Econômicas, de Washington, deu inicio a uma ambiciosa ação judicial, em 30 países, acusando os grandes produtores de sementes transgênicas de adotar técnicas destinadas a controlar o mercado mundial de alimentos. Rifkin argumenta que apenas cinco empresas - Monsanto, Novartis, Du Pont, AstraZeneca e Aventis - controlam hoje mais de 70% do comércio mundial de alimentos. "Nunca antes a humanidade esteve tão despreparada para os desafios tecnológicos que se prenunciam no horizonte", diz ele. A vida no planeta "será mais profundamente alterado nas próximas décadas do que nos últimos mil anos". Rifkin deixa claro que não é contra o progresso nem contra a ciência. Mas sustenta que essas empresas, na pressa de obter patentes e controlar mercados, estão brincando com coisas sérias. "Se der errado, quem pagará a conta?", pergunta. O arsenal de críticas de Rifkin é volumoso. Aqui estão apenas algumas delas: - O grande perigo é "deixar o campo livre para grandes corporações". Elas vão dominar os segredos da natureza, controlar patentes, inventar novas formas de vida vegetal, microorgânica e animal (inclusive a humana), e tratá-las como mercadorias. - Os enormes avanços da informática são "um prelúdio à grande transição para a Era da Biotecnologia". Os computadores estão servindo para "decifrar e organizar a vasta informação genética que é a matéria-prima da nova economia global". - Um cenário possível é a "substituição da natureza por um mundo bioindustrial" marcado pela poluição genética (os cruzamentos indiscriminados de espécies) o pela "discriminação de bilhões de pessoas, em nome da criação de seres perfeitos". As sementes da discórdia Abaixo, opiniões contra e a favor dos transgênicos. Contra "O princípio da precaução afirma que, quando não houver certeza científica (...) sobre danos ao ambiente, a prevenção não pode ser adiada." Prof. Paulo A. Leme Machado, Unesp "O nome do jogo é patentes. Os genes são uma indústria extrativista como a do petróleo." Jeremy Rifkin, ecologista "A questão é saber se vale a pena condicionar-se a tecnologias dominadas por um pequeno grupo de empresas que disputam o controle mundial da produção e venda de produtos genéticos e a comercialização de grãos." Washington Novaes, jornalista (em o Estado de São Paulo" A favor "Há quatro anos os brasileiros consomem soja importada, modificada geneticamente; não há provas de que transgênicos apresentem riscos à saúde." Prof. Marco A. Corteleti, UFMG "A natureza não é boa. Ela é indiferente, é amoral. A tecnologia de mudar alimentos tem a possibilidade de reduzir riscos." Dr. Ben Miflin, Nottingham University, Inglaterra "No longo prazo, o milho Bt vai mostrar-se mais seguro para uso humano do que o não Bt Nos EUA já há resultados mostrando que ele tem menor quantidade de micotoxinas." Dr. Willelmus Uitdewilligen, Novartis/Brasil Anote Na Internet - www.ornl.gov - www.fapesp.br - www.ludwig.org - www.greenpeace.org.br - www.celera.com Livros - O Direito Ambiental Brasileiro, P. A. Leme Machado, Malheiros editores, 1998 - O Século da Biotecnologia, Jeremy Rifkin, 1999, ed. Makron Ilustrações RONALDO LOPES TEIXEIRA O Livro da Vida - Pesquisas bilionárias prometem para breve o mapa do código que determina em todos nós a saúde e a doença, a vida ou a morte NORTON GODOY Em algum momento de maio próximo estará pronto o primeiro esboço do que os cientistas chamam com alguma reverência "o grande livro da vida". Nele estará quase toda a seqüência dos 140 mil genes que formam o genoma humano. Será assim finalmente aberto para pesquisas um dos maiores segredos da natureza: o código bioquímico que determina a própria existência de todos nós - em termos mais simples, o manual de instruções do ser humano. Também conhecido como "mapa da vida", por meio dele os cientistas prometem encontrar a cura para toda e qualquer doença que nos aflige. Isso também quer dizer que nossos filhos com certeza viverão muito mais e com mais saúde do que nós. Tal façanha, porém, não será resultado apenas do esforço curioso de pesquisadores de vários lugares do mundo - inclusive do Brasil -, mas principalmente de uma recém-iniciada "corrida" comercial envolvendo vários bilhões de dólares. Ricos laboratórios multinacionais disputam agora a primazia sobre esse genoma. Tanto que as autoridades de saúde dos EUA temem o registro de patentes (o controle comercial) de trechos desse código, que serão matéria-prima de remédios. Se, às vésperas do próximo século, a revelação desse segredo abre uma perspectiva ainda inimaginável de promessas para a medicina - e, provavelmente, o início do fim do envelhecimento, como se verá adiante -, pode trazer também graves ameaças à individualidade de todos nós. Quando o Projeto Genoma foi lançado há dez anos pelo governo americano, muitos o compararam a dois outros mega-empreendimentos que ficaram na história: o da construção da bomba atômica, nos anos 40, e o que levou o homem à Lua, nos anos 60. Pensava-se que só o governo teria recursos suficientes para bancar tal empreitada. Mesmo sendo de tamanha importância para a saúde pública, não havia, como no passado, o espectro de um "Hitler" ou um "Krushev" ameaçando chegar primeiro no "segredo da vida". Sem esse tipo de pressão, o projeto foi tocado na velocidade que os cientistas achavam conveniente e na medida em que o dinheiro era liberado pelo governo. Portanto, não se esperava um esboço, quanto mais um resultado final, antes de 2005. Não era esperado também que, de repente, surgisse uma competição ainda mais ameaçadora do que "nazistas" e "comunistas": a força do lucro milionário. Ficou evidente que, assim que começaram a aparecer resultados mais que promissores, os poderosos laboratórios farmacêuticos passaram a olhar o genoma com apetite. E, é claro, quem saísse na frente, garantindo o controle legal sobre essas preciosas informações, iria lucrar mais que os concorrentes. Não é por acaso que a principal e mais dinâmica companhia criada para esse fim, há pouco mais de um ano, chama-se Celera. Ela foi fundada pelo geneticista-empresário americano Craig Venter, que já foi apelidado, vejam só, de "Bill Gates da biotecnologia". Assim que anunciou o nascimento da Celera em 1998, Venter prometeu a seus acionistas que teria a seqüência completa do DNA humano antes de 2001. Há poucos meses, ele próprio fixou essa data para maio do ano que vem. Foi o suficiente para o governo repensar seu próprio cronograma, acelerá-lo e igualmente prometer um resultado, um "rascunho de trabalho", para o ano que vem. O esforço do governo, que envolve laboratórios próprios e de algumas universidades, irá custar a bagatela de US$ 3 bilhões. Os gastos do setor privado - Celera e concorrentes - estão cercados do costumeiro sigilo comercial. Nessa briga, é inevitável o pipocar de críticas de parte a parte. O setor privado acusa o governo de "falta de visão" e muita burocracia. O lado estatal diz que a pressa dos empresários pode produzir dados incompletos e imprecisos. Alfabeto - Segundo os historiadores da ciência, assim como o século XX foi o período áureo da física, o século XXI será o da biotecnologia. Mais precisamente da biologia molecular. Graças, em grande parte, ao recente e fabuloso desenvolvimento da computação. Sem a capacidade fantástica de processamento de dados que se tem hoje seria impossível lidar com a quantidade brutal de informações contidas nos seres vivos. Só o genoma humano, que não é dos maiores, possui mais de três bilhões de "letras" do pequeno alfabeto genético - A, T, C e G, equivalentes às moléculas de Adenina, Timina, Citosina e Guanina, que formam nosso DNA (leia explicação no gráfico ao lado). Se já é uma odisséia conhecer a posição de cada uma dessas letras no genoma, será mais difícil e complexo conhecer a função (ou disfunção, no caso das doenças) que têm cada um dos milhões de conjuntos delas no organismo. Assim como as letras do alfabeto formam palavras, que compõem sentenças com idéias e informações, as da genética formam instruções que orientam o trabalho das células. São instruídas a produzir desde uma enzima que nos ajuda a digerir alimentos até tecidos, veias, sangue, energia: enfim fazer com que seres vivos sejam o que são. Mas. em vez de escritas em páginas, essas letras estão presas a longas cadeias de açúcar e fosfato, chamadas moléculas de DNA. Ambiente - "Nos cinco milhões de anos. desde que nós. hominídeos, nos separamos de nossos primos macacos, nosso DNA evoluiu menos de 29%". lembra Sérgio Pena. médico geneticista e pesquisador na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Mas nos próximos anos, talvez meses, poderemos usar a engenharia genética para alterar parte desse DNA de forma a curar doenças como a fibrose cística ou a distrofia muscular." No entanto, o próprio cientista mineiro adverte quem se deixou levar pelo recente sensacionalismo em tomo do que ficou conhecido como gene do Ql: "Não poderemos mudar o que nos faz indivíduos, como a inteligência, aparência, gênero e sexualidade." Ele se referia a uma notícia do mês passado, que ganhou as manchetes como o "gene da inteligência". O que se descobriu na verdade foi um gene. em ratos, que influencia a memória e. por conseqüência, a capacidade de discernimento para decisões. "Pelo que já sabemos, a influência do ambiente é fundamental em todos os seres vivos, sem exceção". diz Pena. Para entender um pouco melhor isso. o biólogo da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Reinach lembra o exemplo da vaca leiteira. "O ambiente da pecuária criado pelo homem nos últimos dois mil anos alterou tanto o fenótipo (aperfeiçoamento genético através de cruzamentos mais influência do ambiente) dessa vaca que. se a soltarmos em um local selvagem, ela não sabe como se proteger. Mais: basta deixar de ordenhá-la manualmente por alguns dias que suas tetas explodem de tanto leite acumulado." Essa dobradinha, influência genética e ambiente, também pode ser a causa de problemas psicológicos. Um trabalho publicado no último dia 30 pela revista Nature, descreve essa possibilidade. Resultado de uma parceria entre pesquisadores franceses e brasileiros, conta que testes feitos com animais estão ajudando a identificar os genes que, interagindo com o ambiente, provocam fortes reações emocionais. Segundo um dos autores do trabalho, o professor André Ramos, da Universidade Federal de Santa Catarina, foram localizados no cromossomo número 4 dos ratos os genes que seriam responsáveis pela ansiedade. "O mais curioso é que esse cromossomo afeta somente as fêmeas da espécie." A expectativa dele e de seus colegas franceses é de que suas investigações dêem pistas mais precisas sobre os mecanismos biológicos e sexuais envolvidos nas desordens emocionais. A partir do conhecimento de todo "livro humano", o que a engenharia genética pode fazer é localizar as falhas de instrução biológica que levam às doenças. Daí. a necessidade de "mapear" os genes associados a vários tipos de moléstias. No Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, por exemplo, já foram seqüenciados os genes da distrofia muscular e da cegueira progressiva. "Nosso trabalho pode ser comparado ao dos satélites fotográficos que conseguem visualizar uma determinada casa. dentro de um bairro, de uma grande cidade como São Paulo", explica a coordenadora do Centro, Mayana Zatz. "Só depois de localizada a casa poderemos tentar descobrir por que há um vazamento de água em seus canos." Segundo a cientista brasileira, a maior parte das doenças graves é conseqüência de mutações genéticas. "Uma falha genética pode produzir uma determinada proteína desnecessária, que altera o trabalho normal da célula. O resultado pode ser uma verruga - crescimento anormal da pele - até a destruição de tecidos, por exemplo", explica Zatz. O maior benefício do saber como isso funciona é o diagnóstico precoce. Essa também é a opinião do inglês Andrew Simpson, que se diz um "cientista brasileiro" e é o coordenador-geral do Projeto Genoma Câncer, uma parceria da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) com o Instituto Ludwig. uma organização multinacional que patrocina a busca da cura da doença que matou seu patrono, o milionário Daniel Ludwig (aquele mesmo, do controverso Projeto Jari). "O câncer só é uma doença curável enquanto se tem um tumor isolado, porque uma simples cirurgia o retira e acabou a história", diz Simpson. O mesmo raciocínio pode ser aplicado a outros tipos de doença, como a dislexia, que provoca dificuldade para ler e escrever. Um time internacional de pesquisadores conseguiu descobrir a causa genética para esse mal, segundo trabalho divulgado há duas semanas. "Esperamos com isso diagnosticar crianças disléxicas muito mais cedo", afirma o artigo. Outra estratégia para combater doenças fatais é seqüenciar o genoma das próprias bactérias e vírus que causam esses males. Há dois meses, o laboratório britânico Wellcome anunciou ter concluído o mapeamento da bactéria responsável por uma das mais perigosas formas de meningite. A partir de então, passaram a estudar como essa bactéria se reproduz, informação fundamental para uma futura vacina. Privacidade - Mas e se um exame desses mostra que você tem grande chance de desenvolver determinada doença fatal? O que se faz com tal informação? Essas indagações estão motivando um debate acirrado entre os próprios especialistas. Temem-se dois tipos de conseqüência nesses casos. Individualmente, há a preocupação com os efeitos psicológicos no paciente que fica sabendo, por exemplo, que poderá vir a ter um tipo fatal de câncer. A outra e a quebra do necessário sigilo dessa informação. "Tudo depende do tamanho do estrago causado pela revelação", argumenta Hank Grecly, professor de Direito especializado em genética da Universidade Stanford. nos EUA. "A implicação dos testes genéticos é familiar", disse ele numa discussão aberta na Internet. "Será que sua mulher vai lhe pedir o divórcio se souber que você tem a doença de Huntington (desordem neuropsiquiátrica degenerativa, que afeta o corpo e a mente)? Como contar a seus filhos que você pode ter passado a moléstia para eles?", questiona Greely. "Eva das plantas" - A biotecnologia, porém, não produz avanços só na medicina. O trabalho de comparar cadeias genéticas tem feito uma verdadeira revolução na própria "árvore da vida". Isto é. alterou as relações de parentesco entre vários seres vivos. Uma das novidades mais chocantes foi a revelação de que certos fungos, como o cogumelo, são mais aparentados com animais como os humanos do que com plantas como a alface. Por muito tempo os especialistas em evolução definiram os vários ramos da árvore da vida comparando principalmente o aspecto de cada criatura. O que torna compreensível a antiga posição dos fungos no ramo vegetal. Mas. agora, com a comparação chegando ao nível molecular da genética, esses mesmos cientistas tiveram de redesenhar a árvore, realocando o lugar de muitas espécies. Passou-se a ter cinco renovados reinos de seres vivos: algas vermelhas, plantas verdes, animais, fungos e o grupo que leva o complicado nome de estramenópilos. Descoberto recentemente, seus membros apenas se parecem com plantas, mas não fazem a fotossíntese. Dos cinco reinos, o mais estudado tem sido o das plantas verdes. Com descobertas muito curiosas. Uma delas foi a constatação de que esses vegetais colonizaram primeiramente a terra, a partir de lagos de água doce. e não dos oceanos, como se pensava. À medida que essa revisão avança, espera-se para breve a identificação do primeiro vegetal terrestre, já apelidado de "Eva das plantas". Uma outra revelação chegou a escandalizar pessoas que têm o paladar bastante apurado. Usando o mesmo teste de paternidade que identifica o pai de um bebê pelo DNA, descobriu-se que a uva com a qual se faz uma das melhores variedades de vinhos do mundo, o chardonnay, tem um parentesco muito próximo da grapa, um tipo de uva tão ordinário que foi banida há muito tempo do solo francês. "Embora a gente goste de pensar que somos especiais no reino animal, o fato é que nossos genes nos mostram que somos 75% idênticos à abóbora", comenta com certa ironia o professor Reinach. É o DNA que nos liga a todo o mundo vivo. E, se ele é responsável pela extraordinária diversidade da vida no planeta, também serve para apontar nossas profundas semelhanças. "Todos nós evoluímos da mesma sopa química do início dos tempos", diz o biólogo da USP. Essa identificação é que propiciou o surgimento de um novo campo de pesquisas: a genômica comparativa. No mês passado, os cientistas dessa área aplaudiram emocionados a notícia de que. finalmente, foi concluído o seqüenciamento do genoma da Drosophila, a mosca da fruta. E é fácil entender essa alegria. Essa moscazinha é a melhor das cobaias de laboratório. São organismos ideais para pesquisa. Crescem rápido, não são tão pequenas quanto microorganismos e vivem apenas duas semanas. Mais importante: a maior parte de seus genes é igualzinha à dos humanos. Bom. mas imagine quem foi que conseguiu terminar o mapeamento de 1.8 bilhão de letras do "livro" da Drosophila? Ele mesmo, Craig Venter. da Celera. Em apenas cinco meses - trabalho que. no passado recente, consumiria provavelmente dez anos. Mas isso é só o começo, como frisou o próprio Venter. "O que conseguimos foi identificar todas as peças do quebra-cabeça. Agora temos de montá-lo." Regeneração - Uma outra constatação inesperada de todo esse recente trabalho com a genética foi o grau de versatilidade das células vivas. Como pequenas "fábricas" controladas por um "software" simples e poderoso (o código genético), elas têm uma capacidade aparentemente ilimitada de trabalhar - para o "bem" ou para o "mal". Prova disso é o novíssimo e ambicioso campo de pesquisa da regeneração celular. Há três semanas, o Hospital Geral de Massachusetts. na cidade americana de Boston, anunciou uma vitória espantosa: conseguiram transformar células de uma medula óssea em músculo. O objetivo da pesquisa pioneira era fazer com que um rato com distrofia muscular regenerasse seus músculos de tal forma a poder usá-los normalmente. Para tanto, bastou simplesmente introduzir nas células desses órgãos genes com a instrução correta de funcionamento biológico. É por essas e outras que os homens e as mulheres que estão trabalhando nesse admirável mundo novo da biotecnologia não escondem um entusiasmo contagiante diante do futuro próximo. "A vida e a morte não são mais mistérios, são apenas processos químicos", lembra o "brasileiro" Simpson. "Portanto, não se pode mais descartar totalmente a possibilidade de que um dia começaremos a superar até mesmo a mortalidade." OBRA ABERTA O genoma humano, que reúne todos os nossos genes, é formado por 23 pares de cromossomos. Desses, 22 pares são numerados pelos biólogos numa ordem seqüencial de tamanho, do mais largo (número um) até o menor (numero 22). O par restante é o sexual: dois grandes cromossomos X para a mulher, e um X e um pequeno Y para o homem. O corpo humano tem aproximadamente 100 trilhões de células, a maioria com menos de um décimo de milímetro. Dentro de cada célula há uma esferazinha escura chamada núcleo. Dentro desse núcleo há dois conjuntos completos do genoma humano. Um vem da mãe e o outro do pai, que se juntam na hora da concepção. Em principio, cada um desses conjuntos tem os cerca de 140 mil genes dos mesmos 23 cromossomos. Nesse livro estariam contidas um bilhão de palavras. O que o faria ter o tamanho equivalente a 800 Bíblias. Se esse livro fosse declamado em prosa e verso, consumiria quase um século de leitura. Para escrever tamanha obra, a natureza usa um alfabeto de apenas quatro letras: A, de adenina, C, de citosina. G. de guanina, e T, de timina. Em vez de ser escrito em páginas planas, suas palavras estão presas a uma longa cadela espiralada de açúcar e fosfato, chamada de molécula de DNA. Cada cromossomo é um longo par de moléculas de DNA. Se pudesse ser esticado, esse cromossomo mediria quase dois metros. Quando os genes se reproduzem podem acontecer erros ou falhas. É aí que mora o perigo. Uma letra pode se perder ou ser incluída de forma errada na seqüência genética. Todo um parágrafo ou sentença pode se duplicar erroneamente ou ser omitido. E a isso que se chama mutação - que em muitos casos pode levar a casos de câncer, distrofia, má formação de órgãos, etc. Nem todas as mutações, porém, são maléficas Os seres humanos costumam colecionar cerca de 100 mutações a cada geração, sem que isso signifique problemas para a saúde. CRONOLOGIA - DE MENDEL A MÔNICA A busca pelo segredo da vida já tem mais de um século de pesquisas. Assim como o século XX foi da física, o século XXI será o da biotecnologia 1866 O botânico e monge austríaco Gregor Mendel propõe as leis básicas da hereditariedade, depois de fazer experiências com ervilhas 1910 O biólogo americano Thomas Morgan faz experiências com a mosca da fruta, que revelam que alguns traços genéticos são determinados pelo sexo 1932 O livro de Aldous Huxley Admirável mundo novo propõe uma visão nada utópica da engenharia genética 1953 O bioquímico americano James Watson e o biofísico Francis Crick anunciam sua descoberta da estrutura de hélice dupla do DNA, a molécula que carrega o código genético 1973 Os bioquímicos americanos Stanley Cohen e Herbert Boyer inserem o gene de um sapo africano no DNA de uma bactéria e ele começa a funcionar. É o nascimento da engenharia genética 1982 O Ministério da Saúde dos EUA aprova o primeiro remédio produzido pela engenharia genética, uma forma de insulina humana 1988 A Universidade Harvard consegue a primeira patente para um animal alterado geneticamente, um rato 1990 Publicação da ficção de Michael Crichton, O parque dos dinossauros, na qual animais jurássicos são produzidos pela engenharia genética e tomam conta de um parque temático, com resultados terríveis 1997 Pesquisadores liderados pelo embriologista lan Wilmut informam ter clonado com sucesso uma ovelhinha, Dolly 1998 Análises de DNA de restos de sêmen colhido das roupas de Mônica Lewinsky incriminam o presidente Bill Clinton