SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sorrateiro e silencioso, o personagem Batman é inspirado em um morcego. Assim como o animal silvestre, ele tem hábitos noturnos e se esconde em uma caverna. A popularidade do super-herói entre crianças é um dos motivos que faz com que morcegos sejam animais adorados na infância.
“Eles voam, vivem de cabeça para baixo, são noturnos e misteriosos”, descreve Enrico Bernard, biólogo e professor do departamento de zoologia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). “Os adultos começam a botar medo nas crianças por falta de informação correta”, afirma o pesquisador.
Associados à bruxaria, aos vampiros e a outras criaturas das trevas na ficção, morcegos são encarados com desconfiança também na vida real. É verdade que podem transmitir raiva e que alguns tipos de coronavírus circulam entre eles, e é daí que vem a má fama dos mamíferos entre os adultos.
Para combater essa má reputação e conscientizar as pessoas pela conservação dos morcegos, Bernard conduz oficinas de boas práticas no manejo de morcegos para agentes de controle agropecuário e de saúde.
A iniciativa começou em meados de 2023 e faz parte do Plano de Ação Nacional para Conservação de Cavernas (PAN Cavernas do Brasil), conduzido pelo Cecav (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas), do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Na conversa com seu público-alvo, Bernard conta alguns fatos interessantes sobre os morcegos. “Se você gosta de chocolate ou de tequila, por exemplo, você deve aos morcegos a polinização do cacau e da planta que é usada para produção da tequila [chamada de agave-azul]”, conta o pesquisador. Além de ajudar na polinização, eles são predadores de muitas pragas agrícolas presentes nessas plantações.
“A importância ecológica dos morcegos mitiga qualquer ação não benéfica que eles possam ter sobre a população humana”, afirma Luiz Gustavo Góes, coordenador do grupo Eco-epidemiologia, diversidade e evolução de vírus emergentes do Institut Pasteur de São Paulo e bolsista Jovem Pesquisador da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
À frente de pesquisas sobre grupos virais presentes em morcegos da mata atlântica, Góes afirma que estudar a diversidade viral dos mamíferos voadores -únicos do tipo no mundo, inclusive- pode ajudar a identificar outros patógenos capazes de infectar pessoas. “No Brasil, temos cerca de 15% das espécies. É uma diversidade muito grande, o que indica também uma diversidade viral enorme.”
Para Bernard, os morcegos devem ser um foco de atenção nos estudos para prevenir uma próxima pandemia. “Eles voam e podem cruzar barreiras intransponíveis para outros animais, eles têm grande mobilidade, então, no controle das populações está a chave para a prevenção”, diz o biólogo.
Seja no ambiente urbano ou rural, o manejo deve ser cuidadoso para não dizimar as populações de morcegos, já que isso pode gerar um desequilíbrio ecológico. “Transmissão de raiva ligada a morcegos vampiros, por exemplo, deve ser encarada como desequilíbrio, pode indicar que eles estão perdendo seu habitat natural”, aponta Bernard.
Os morcegos, segundo o pesquisador, são fiéis às suas fontes de alimento. Das 1.456 espécies conhecidas, apenas 3 se alimentam de sangue de outros animais. O resto consome frutas e pequenos insetos.
Os pesquisadores atentam para o fato de que nem sempre os mamíferos voadores são transmissores diretos de vírus que afetam humanos. “É difícil comprovar uma transmissão direta”, comenta Góes.
De maneira geral, os morcegos podem transmitir vírus para outros animais que podem contaminar as pessoas. “Hospedeiros intermediários aumentam a chance de contato entre humanos e vírus de morcegos”, diz Góes. “O problema é que, com a intensidade das mudanças climáticas e da ação antropogênica sobre o meio ambiente, há aumento no potencial de contato entre as pessoas e os animais silvestres.”
O pesquisador alerta que, em caso de contato direto com morcegos, é indicado procurar a Divisão de Vigilância de Zoonoses -em São Paulo, o serviço funciona 24 horas por meio do telefone 156.
Além do vírus da raiva, mais conhecido e temido, os morcegos podem carregar vírus como o coronavírus, o hendra, o paramixovírus, o marburg e de doenças como o ebola, a MERS (síndrome respiratória do oriente médio) e a Sars (síndrome respiratória aguda grave). Curiosamente, os animais não adoecem como os humanos quando carregam esses vírus. “Eles têm um ‘tratado de paz’ com os vírus, conseguem conviver com eles sem sofrer”, diz Bernard.
Com uma história evolutiva de mais de 50 milhões de anos, os morcegos aprenderam a coevoluir como hospedeiros de alguns vírus. “Algumas teorias apontam que eles têm uma taxa metabólica extremamente alta por ser o único mamífero que voa”, afirma Góes. Segundo Bernard, os morcegos de alguma forma tiram proveito das infecções e incorporam parte dos vírus em seu genoma.
O fato de os morcegos voarem embasa uma das teorias sobre o sistema imune deles. “Quando eles voam, a temperatura corporal fica mais elevada e esse aumento poderia modular a resposta imunológica”, diz Bernard. Há 12 anos, ele e seus colegas acompanham morcegos das cavernas do Parque Nacional do Catimbau, no Pernambuco, para investigar estes e outros mecanismos e hábitos dos animais. Uma das observações mais recentes da equipe é relativa à possibilidade de morcegos resfriarem as cavernas. “Vamos ter que olhar para isso agora.”
No geral, os morcegos suportam altas temperaturas -algumas espécies como os morcegos raposas-voadoras podem viver bem em até 44°C- e desenvolveram hábitos noturnos para escapar da competição com outras aves. Com as mudanças climáticas, mesmo as espécies mais resistentes ao calor podem sofrer com a perda de alimentos e de habitat. “Não sabemos quais são os limites de tolerância delas”, afirma Bernard. Apenas o monitoramento de longo prazo pode trazer algumas respostas, segundo o biólogo. “Essas populações são sentinelas ambientais, elas mostram o que aconteceu no passado, o que está acontecendo no presente e o que pode acontecer no futuro.”