Tumores embrionários são neoplasias originárias de células primordiais que sofreram mutações espontâneas e não decorrentes de mutações adquiridas por ações ambientais, como ocorre com a maior parte das neoplasias de adultos.
Entre os tumores embrionários mais comuns, os nefroblastomas ou tumores de Wilms (TW) foram o foco de pesquisa de Dirce Maria Carraro, coordenadora do Laboratório de Genômica e Biologia Molecular do Hospital A.C Camargo, em São Paulo. O trabalho teve apoio da Fapesp (Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo) na modalidade Auxílio a Pesquisa.
Antes de dar início ao estudo, ela estava interessada em identificar mecanismos comuns entre embriogênese – processo de formação e desenvolvimento do embrião – e aparecimento de tumores. Na literatura disponível descobriu que o tumor de Wilms é um modelo muito apropriado para esse tipo de pesquisa.
“O tumor recapitula o rim fetal, ou seja, apresenta as mesmas fases de desenvolvimento do rim fetal. Seus três componentes – blastoma, epitélio e estroma – também estão presentes no rim fetal”, explicou.
Estudos moleculares de tumores embrionários, sob a perspectiva do desenvolvimento de seu órgão correspondente, permitem inferir eventos moleculares comuns e importantes nos dois processos, contribuindo para a compreensão biológica do desenvolvimento do tumor e de seu comportamento clínico.
No século 19, cientistas começaram a sugerir semelhança entre a embriogênese humana e a morfologia desses tumores. Mais recentemente, a recapitulação do desenvolvimento do rim pelo TW foi evidenciada, também pelos aspectos moleculares.
O tumor de Wilms não apresenta sintomas. O diagnóstico se dá por palpação durante consulta rotineira. É mais comum entre o segundo e o terceiro ano de vida. Entre os tumores renais é o mais frequente e equivale de 5% a 10% dos tumores infantis. Tem 80% de cura, mas pode apresentar efeitos colaterais tardios da quimioterapia.
O grupo coordenado por Dirce decidiu comparar cada componente do TW, separadamente, com o desenvolvimento do rim, usando amostras de tumores retiradas do Banco de Tumores do Departamento de Patologia do Hospital A.C. Camargo.
A comparação foi feita com uso de uma metodologia que permite a avaliação da expressão de milhares de genes imobilizados em uma plataforma sólida chamada de microarray.
“Descobrimos que, diferentemente de outros estudos, não era o tumor, como um todo, que era semelhante aos primeiros estágios do órgão e, sim, o blastema. Por isso, esse estudo sugere que o blastema tem os eventos moleculares mais importantes que levam ao aparecimento do tumor”, disse.
Durante as análises foi identificada uma assinatura gênica, cujo padrão de expressão classificava tumores, rins fetais e maduros. “Nessa assinatura, vimos que havia uma maior representação de genes pertencentes a uma via gênica de sinalização chamada via de sinalização WNT. Percebemos, em várias análises, que a regulação da expressão de alguns dos genes dessa via WNT estava descontrolada no tumor de Wilms”, contou.
Via de sinalização é um sistema de comunicação composto por uma rede gênica que controla as respostas das células aos sinais do tecido em que se encontra. Essas vias são finamente reguladas para que ocorra a correta diferenciação das células durante o desenvolvimento embrionário.
Mutações e alterações de expressão de alguns genes que participam de vias de sinalização celular podem levar a uma interrupção ou erro de sinalização. Esse erro, por sua vez, pode resultar no impedimento da diferenciação celular correta, mecanismo que estaria relacionado à origem dos tumores embrionários.
“Decidimos analisar todos os genes da via WNT e de outras vias de sinalização que interagem com a WNT, no tumor e em vários estágios de desenvolvimento do rim, de forma muito mais refinada. E, também, estudar as células do blastema no TW e a diferenciação das células blastematosas do rim, nos vários estágios da diferenciação”, disse.
A análise, além de comprovar essa correlação dos dois processos, identificou genes envolvidos no mecanismo que dá origem aos nefroblastomas, utilizando abordagem diferenciada de estudos realizados até o momento.
Como o grupo não podia usar fetos humanos, por questões éticas, analisou quatro estágios do desenvolvimento do rim de camundongos, a partir de amostras de partes dos órgãos dos animais. Também foram usadas amostras de células blastematosas de tumores de Wilms cedidas pelo Children’s Oncology Group, nos Estados Unidos.
A partir daí, o grupo fez uma série de análises, exclusivamente com células de blastema dissecadas a laser, observando os estágios de diferenciação do rim em camundongo e comparando tumor de Wilms com rim maduro humano.
Para isso, foi desenvolvida uma plataforma de microarray na qual os trechos dos genes imobilizados apresentavam alta similaridade entre os genes ortólogos humanos e ortólogos de camundongo para possibilitar a utilização das células dos dois tipos de organismos.
“Essa lâmina foi construída somente para representar os estágios de diferenciação do rim em camundongo, de forma que pudéssemos confiar nos dados gerados”, explicou a pesquisadora do Hospital A.C. Camargo.
Na etapa seguinte foi identificado um grupo de genes das vias de sinalização correguladas no tumor e no rim, nos primeiros estágios de diferenciação. Para isso, foram selecionados os genes que aumentavam durante o desenvolvimento do rim e eram pouco expressos no tumor; e que aumentavam durante o desenvolvimento e eram muito expressos no TW em relação ao rim maduro.
Segundo o estudo, esse grupo de genes representa alterações moleculares precoces no tumor, cuja mudança na expressão possivelmente cria uma situação permissiva para o aparecimento do tumor. Dos 18 genes identificados, seis já passaram por validação técnica – por metodologia mais sensível que confirmou os resultados. Proteínas codificadas por esses seis genes em rins fetais de várias idades e no tumor mostram a recapitulação dos primeiros estágios de rim no tumor.
Em continuidade ao projeto, os pesquisadores pretendem submeter os demais genes à mesma validação. Segundo Dirce Carraro, todos os genes identificados são fortes candidatos a dirigir o surgimento do nefroblastoma, um deles apontado também por outros estudos que utilizaram metodologias diferentes de análise.
Parte desses resultados foi publicada em 2008 na revista Oncology. “Acreditamos que, ao apontar eventos moleculares comuns aos dois processos, estamos identificando eventos precoces e, portanto, mais determinantes para o aparecimento do tumor, o que será importante, futuramente, para pesquisas aplicadas com objetivos terapêuticos”, ressaltou.
Fonte: Agência Fapesp