Notícia

Paulo Franchetti

Avaliação do mérito e crise das Humanidades

Publicado em 02 setembro 2018

No final do ano de 2017, pediu-me ele um depoimento sobre o meu trabalho como diretor da Editora da Unicamp. Na sequência, tendo lido um pequeno texto em que eu discutia a avaliação da produção docente na área das Humanidades, pediu-me que conjugasse os dois temas – publicação universitária e avaliação do mérito – e sobre eles organizasse um minicurso. Foi o que fiz nos meses seguintes e, em maio de 2018, na Biblioteca Geral daquela universidade, num minicurso intitulado “Papéis perdidos: a publicação e a docência universitária”, pude finalmente apresentar os resultados do trabalho.

Embora fosse aventada a ideia de publicar os dois textos em volume, preferi, desde o começo, pensar numa outra forma de divulgação: ou em revista de ampla circulação, ou no meu blog. Isso porque a discussão é urgente e creio que algumas reflexões aqui apresentadas podem dar início a um debate produtivo. E também porque os dados contidos nos dois textos talvez não sobrevivessem bem à demora exigida pela publicação em volume. Por fim, abandonando a ideia de publicar em revista, decidi-me pelo blog.

De fato, penso que a circulação livre e irrestrita é o melhor caminho para o debate. E na internet, em publicação direta, o texto poderá atingir um público muito mais amplo. Isto é: se ele tiver algo interessante a dizer, como acredito que tenha. E pelo tipo de publicação, poderá ser reproduzido livremente, no todo ou em parte, onde e como algum interessado quiser.

Além disso, pareceu-me interessante e condizente com o que digo no texto “desperdiçar” este material que poderia dar 2 artigos em revistas referenciadas ou um volume impresso – ou seja, desperdiçar 3 “produtos intelectuais” – com base no princípio de que a livre circulação do pensamento é mais importante e mais relevante socialmente do que a contabilização formal, abstrata, que nos tempos atuais é tomada como medida (ou sinônimo) de qualidade.

Por fim, uma nota de agradecimento: ao Prof. Osvaldo M. Silvestre, que me estimulou a pensar no assunto e a redigir os resultados da reflexão, à Profa. Solange Fiuza, da UFG, que foi a primeira leitora (como sempre), e a Elsa Gomes, de Coimbra, que comigo leu o texto e sugeriu adequações.

Avaliação do mérito e crise das Humanidades

O lugar das Humanidades está em crise na estrutura universitária. Para perceber isso, não é preciso consultar nenhuma publicação acadêmica. Basta ler os jornais.

Em toda parte, no espaço de uma década, surgem não só questionamentos, mas propostas concretas para sua diminuição ou extinção. O governo japonês recomendou há poucos anos que as universidades tomassem “medidas ativas para eliminar as organizações [de Ciências Sociais e Humanas] ou para convertê-las em áreas que melhor atendam às necessidades da sociedade” – e em resposta 50 universidades eliminaram ou diminuíram drasticamente os departamentos da área. [Dean, 2015] Nos EUA, os departamentos de Humanidades encolhem ou desaparecem, assim como programas de pós-graduação bem-conceituados [Prose, 2017], e o presidente Donald Trump sentiu-se à vontade para propor o fim do programa de apoio às Artes e Humanidades. [Deb, 2017] No Reino Unido, a situação não parece melhor, como se vê pelos artigos de Marina Warner na London Review of Books, nos quais trata da descaracterização do trabalho na área, por conta da submissão da universidade à desesperada busca por fundos e da forma de avaliação quantitativa da produção. [Warner, 2014 e 2015]

No Brasil, a situação é diferente do que parece ocorrer no Japão, no Reino Unido e nos EUA, dadas a necessidade de formação de quadros administrativos e de ensino, a expansão ainda em curso da graduação e da pós-graduação – e dado principalmente o fato de todas as nossas universidades de ponta serem instituições públicas e gratuitas, sem taxas de espécie alguma.[1]

A situação é também distinta porque as universidades públicas brasileiras não dependem de doações para seu funcionamento e principalmente porque seus administradores são escolhidos entre seus professores, normalmente mediante consulta à comunidade. Ou seja, os administradores não são gestores externos com altos salários, capazes de impor de fora para dentro decisões fundadas em argumentos de caráter empresarial. Pelo contrário, têm compromisso com a instituição de origem e mandato fixo, após o qual retornam à sua posição no quadro docente. As nossas melhores universidades, inclusive, são autônomas não só na definição de prioridades acadêmicas, mas também na gerência do orçamento e na definição dos cursos e das prioridades de investimentos internos. O que é feito em órgãos deliberativos, nos quais há representantes de todas as faculdades e institutos, além de funcionários e estudantes, e nos quais as Humanidades têm, portanto, representação proporcional e poder de argumentação política.

Isso não quer dizer que a situação seja tranquila. Neste momento difícil por que passa o país, nas redes sociais aparelhos fascistas clamam todo o tempo contra a destinação de recursos públicos para qualquer atividade relacionada à cultura. E a chamada grande imprensa não age de modo muito diferente, no que diz respeito a solapar sistematicamente o que entre nós ainda resiste ao neoliberalismo. Nesse quadro, os cursos da área de Humanidades são duplamente criticados, de modo direto ou indireto em vários registros e níveis: desde a acusação rasteira de que se trata de celeiros e estufa de criação de “comunistas” até a afirmação (às vezes rasa, às vezes modalizada) de que consomem recursos públicos, mas não se mostram úteis à produção da riqueza.

De toda forma, pelas razões acima, não creio que no Brasil, neste momento, as ameaças no âmbito universitário sejam do mesmo porte que as relatadas no mundo anglo-saxão. Entretanto, julgo que há sim problemas crescentes na forma de inserção acadêmica das Humanidades e na sua percepção pela sociedade, que a médio prazo poderão ter consequências bastante relevantes.

É verdade que a situação brasileira tem grande especificidade: trata-se de um país periférico, no qual o ensino público básico é precário, a alfabetização ainda não é uma conquista, a desigualdade social é escandalosa e a instituição universitária teve implantação muito recente. Mas acredito que, por ser um país no qual os investimentos em ensino de nível superior têm sido muito significativos, no qual as universidades funcionam de modo bastante autônomo e a pós-graduação é subsidiada de modo amplo para estudantes, ficam mais visíveis os fatores internos que originam ou contribuem para a sua vulnerabilidade. Quero dizer com isso que talvez, refletindo sobre o que vem ocorrendo no Brasil nas últimas décadas, possamos identificar alguns pontos que nos ajudem a refletir sobre alguns aspectos da crise das Humanidades em outros países, inclusive nos mais desenvolvidos.

Por fim, uma última ressalva, que é também a delimitação mais precisa do foco deste trabalho: o que aqui se propõe não é uma reflexão centrada no lugar institucional das Humanidades nas universidades no período neoliberal, muito menos um levantamento histórico do que parece ser a constante diminuição desse lugar. É, sim, uma exposição e um questionamento feitos a partir da área que melhor conheço, por nela ter trabalhado por 30 e poucos anos numa das melhores universidades do Brasil: a dos Estudos Literários. A expectativa é que ao menos alguma parte do que puder expor a partir desse corte mais estreito e vertical possa servir para dinamizar a reflexão sobre a grande área de conhecimento que denominamos Humanidades.

Dito isso, resta explicitar o arco temporal dessa aproximação: o período compreendido entre o momento de plena implantação da ditadura militar dos anos de 1960 e o golpe parlamentar de 2016.

Em termos acadêmicos, da reforma universitária de 1968 até o momento em que se começou a implementar um programa ambicioso de expansão do ensino superior, concebido no segundo governo do presidente Lula. Intitulado “Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI”, tem sido objeto de amplo debate, que não será apresentado aqui, porque não teve ainda grandes implicações na conformação das áreas, nem no funcionamento delas no interior da universidade.

A reforma de 1968 modernizou a universidade brasileira e lhe deu, em traços gerais, o desenho que mantém até hoje. De fato, extinguiram-se ali as cátedras, definiu-se a estruturação acadêmica por departamentos, determinou-se que a titulação e os exames formais seriam os critérios de admissão e progressão na carreira docente, bem como se estabeleceu a indissociabilidade da pesquisa e do ensino (Art. 2o – O ensino superior, indissociável da pesquisa, será ministrado em universidades e, excepcionalmente, em estabelecimentos isolados, organizados como instituições de direito público ou privado). Data também dessa reforma a definição da autonomia universitária (Art. 3o – As universidades gozarão de autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira, que será exercida na forma da lei e dos seus estatutos), bem como a determinação de que os reitores seriam nomeados a partir de listas elaboradas pelos colegiados acadêmicos.[2]Na sequência, enfatizou-se a formação em pós-graduação, por meio de uma política nacional de sucesso cujos números são eloquentes, e incrementou-se a prática da pesquisa em nível de graduação, por meio do estímulo à iniciação científica.

Ao longo dos 40 anos seguintes, houve alterações significativas no ensino superior público, como foi o caso do abandono da seriação, gradativamente substituída pelo sistema de créditos com ou sem estabelecimento de pré-requisitos. Mas não houve até o presente nada que equivalesse, em termos de uniformização em nível nacional, às diretrizes ali traçadas, pois não tivemos ainda no Brasil nada semelhante ao Processo de Bolonha.

Embora nesse período o sistema de ensino superior brasileiro experimentasse uma grande expansão, as vagas criadas não foram suficientes para atender à demanda do igualmente crescente número de formados pelo ensino médio. E, dada a desarticulação do ensino médio com o ensino superior, criou-se e fortaleceu-se, desde o período militar, uma instituição bem brasileira: os grandes exames vestibulares. Realizados por instituições que reuniam várias universidades, por áreas de conhecimento, ou pelas próprias universidades, sucediam-se, e ainda se sucedem, ao longo do final dos períodos letivos nos vários estados brasileiros.

A instituição do vestibular – e a diversidade de formas que ele assumiu por regiões e segundo o escopo e importância das universidades – teve uma consequência que importa considerar, quando pensamos o lugar das Humanidades na vida social. É que, por meio deles, as universidades de maior expressão exercem (ou exerciam) alguma influência sobre a organização do ensino médio, pautando questões e definindo repertórios de leituras ou assuntos que seriam por elas avaliados na seleção dos candidatos.

Entretanto, uma grande mudança se produziu recentemente e ainda está em curso: a substituição gradativa dos vestibulares autônomos, de alcance amplo ou regional, por um sistema de ingresso homogeneizado em nível nacional, intitulado SiSU (Sistema de Seleção Unificada).[3]Sua base é o Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM), criado em 1998 como instrumento para elaboração de políticas públicas, e já utilizado, em 2004, para seleção de candidatos a bolsas de estudos públicas em universidades.

O SiSU tem várias vantagens para as universidades, desde as econômicas, com a dispensa de realizarem elas mesmas os exames de ingresso, até a projeção nacional, pois o sistema permite que alunos de qualquer região concorram a vagas em qualquer universidade federal. Por isso, embora não seja obrigatório, tem sido gradativamente adotado como porta única de acesso ao ensino superior público federal. E sua base, o ENEM, vem sendo aproveitada, em medida variada, por universidades estaduais e mesmo particulares.

Com a progressiva adoção do ENEM, o papel diretor da universidade (que já era limitado) sobre o ensino médio vem perdendo força. Ao mesmo tempo, os alunos que as universidades que adotam integralmente o SiSU recebem são os selecionados por um exame elaborado por uma instância centralizadora, de âmbito nacional, que decide de modo autônomo qual o balanço dos conteúdos a examinar – e que estabelece, sem diálogo com as instituições, o peso relativo das várias disciplinas das Humanidades.[4]

Essas considerações vêm aqui a propósito de uma questão que pode ser considerada secundária do ponto de vista intelectual, mas que tem relevo para a constituição e justificação interna das áreas das Humanidades. É que o ensino (básico e médio, aí compreendidos também os cursos preparatórios para o vestibular) é o destino majoritário dos egressos das faculdades da área das Humanidades. Na verdade, de um ponto de vista estritamente pragmático, é o destino profissional previsto para os alunos formados em licenciatura. Sendo assim, mais relevantes se tornarão estas considerações prévias à medida que for implementada a nova reforma do ensino médio, a partir da recentemente promulgadaBase Nacional Comum Curricular.

É certo que ainda não estão definidos o espaço e a forma de atuação das Humanidades na nova ordenação do ensino básico e médio, mas de todo modo a reforma em curso pressupõe o fim da articulação dos currículos sobre disciplinas obrigatórias. De fato, como se pode depreender da leitura do documento massudo e palavroso de quase 600 páginas da BNCC, a espinha dorsal do projeto é prever liberdade na montagem do currículo em cada escola, com ênfase em dois pontos: a apresentação dos conteúdos a partir de aproximações interdisciplinares e a organização do curso numa estrutura bipartida, na qual a segunda metade (3 semestres) exigiria que o aluno fizesse opção por áreas de interesse – ali denominadas “itinerários”.[5]

A Base é documento puramente conceitual, um desenho ideal, que não discute o impacto de tais alterações na vida da comunidade, nem estima os enormes investimentos de infraestrutura e de pessoal necessários à sua plena implementação. Muito menos esbarra na previsão de tempo e de verbas para que se processe a formação dos professores a fim de que possam ter bom desempenho no novo perfil multidisciplinar. Mas o escopo geral da proposta é claro e sem dúvida terá consequências imediatas. Por exemplo, no que toca às Ciências Humanas, ao longo de todo o projeto é sensível o enorme peso atribuído às tecnologias digitais e ao funcionamento das redes sociais na formação do aluno do ensino médio – do que deriva a insistência de inclusão de reflexões sobre elas e de inclusão delas em todas as várias competências e também a perda de ênfase na forma tradicional de ordenação do conhecimento em disciplinas específicas.

O lugar das disciplinas de Humanidades nesse desenho é incerto e dependerá da realização concreta em cada escola e de qual “itinerário” será preferencialmente implementado.[6]Mas seja qual for a sua realização concreta, o certo é que tal desenho de currículo básico – que poderá inclusive, na prática e nas condições atuais da escola pública, ter pouca coisa de básico e comum – terminará por produzir alterações significativas no perfil dos egressos dos cursos de Humanidades. E tendo em vista sua próxima implantação, uma questão importante será a configuração do ENEM, que hoje é organizado de forma a avaliar o aprendido nas atuais 13 disciplinas que compõem o currículo, e terá de optar entre continuar a sê-lo (o que seria um contrassenso com a estruturação dos cursos segundo vários “itinerários”, e terminaria por restringir uma avaliação justa ao conteúdo apenas do primeiro ano e meio) ou organizar-se de modo a poder avaliar também as habilidades desenvolvidas na segunda metade do curso. E como vimos que o ENEM é a base do SiSU na seleção dos estudantes da maior parte das universidades públicas, o que com ele suceder a partir de 2020 afetará decisivamente o perfil dos estudantes recebidos pelos cursos universitários, bem como – a longo prazo – o perfil dos egressos das licenciaturas, cujo mercado de trabalho preferencial é o ensino médio.

Ora, nesse quadro, as perguntas pouco simpáticas, do ponto de vista intelectual, mas fatais, quando se trata de justificar o investimento de recursos públicos na grande área de estudos de Humanidades, tem sido e serão – mais incisivamente – estas: qual o perfil do profissional que está sendo formado na área, qual o seu mercado de trabalho e qual a sua competência para fazer frente a ele? E ainda: qual a relevância do ensino das Humanidades, nos cursos de nível médio, nas condições atuais, para a formação do cidadão?[7]

As perguntas difíceis podem ainda ampliar-se até a pós-graduação, pois essa – além de constituir hoje no Brasil, na área das Humanidades, uma das poucas alternativas remuneradas para fugir às más condições de trabalho do ensino médio – é a instância em que se formam os que serão professores de universidades e faculdades, que por sua vez formarão outros professores de ensino médio.

Estas ponderações iniciais, porém, embora tenham relevância prática no dia a dia das disputas por verbas e contratações nas universidades, não constituem senão lateralmente o objeto destas reflexões. Na verdade, creio que o mais importante é perceber que alguns dos principais vetores do enfraquecimento das Humanidades, no tempo presente, são internos – ou melhor, derivam da própria forma atual de articulação e justificação do campo de conhecimento – e acredito que é porque esse enfraquecimento se torna cada vez mais claro que se formulam, com agressividade crescente, as perguntas sobre a sua função e necessidade no mundo contemporâneo e, por fim, sobre qual o sentido de nelas investir recursos públicos.

De fato, já decorreu muito tempo desde aqueles anos dourados nos quais a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas se apresentava como o centro intelectual, o núcleo formador da USP. Hoje nem de longe se pode imaginar tal protagonismo de um instituto de Humanidades. Entretanto, a mudança, embora constante, foi lenta, e ainda na década de 1970 e começo da de 1980, a formação ampla era o objetivo tanto da graduação quanto da pós-graduação nas áreas dos estudos de Letras e Ciências Humanas – e talvez por isso mesmo a avaliação do desempenho dos docentes não era centrada na publicação ou na captação de recursos.

O momento da virada tem, no Brasil, um marco simbólico: em fevereiro de 1988, o jornalFolha de S. Paulopublicou a famosa “lista dos improdutivos” – a relação dos docentes que a reitoria da USP apontou como “sem produção científica em 1985 e 1986”.

A lista tinha um quê de ridículo, porque entre os “improdutivos” estavam alguns dos mais destacados e reconhecidos intelectuais brasileiros. Mas assinalou de modo claro dois pontos: primeiro, que, até a produção do escândalo, as tentativas de coleta de informação por parte da administração não tinham surtido o efeito esperado nas áreas de Humanidades, que permaneciam funcionando da forma tradicional; segundo, que aquela gestão (uma das mais tecnocráticas da USP) estava disposta a usar todos os meios a seu dispor para implementar o controle burocrático e promover a identidade entre produção acadêmica e produção científica medida por publicações - o que logo se tornaria o modo dominante de aferição da qualidade dos cursos nas universidades brasileiras.[8]

No que toca à produção bibliográfica, uma vez definida a nova forma de julgar a produção acadêmica e em resposta às pressões institucionais, os últimos anos da década de 1980 se caracterizam pelo aumento significativo dos trabalhos publicados.[9]Tal orientação, porém, não deixou de ter custos, como bem observa Maria de Fátima de Paula [2000]:

[...] justamente no ano de 1988, quando se atingiu o maior número de trabalhos publicados, o número de formados nos cursos de graduação foi o menor do período compreendido entre 1982 e 1988. Como o número de vagas oferecidas cresceu em 5% entre 1982 e 1985, era esperado ter-se um crescimento dessa ordem no número de formados em 1988, porém, em relação a 1987, houve um decréscimo de 14% no número de formados.

Para a autora, esses dados sugerem

[...] que uma avaliação produtivista e quantitativa baseada sobretudo no número de publicações dos docentes não leva necessariamente a uma maior eficiência do sistema universitário como um todo, devendo ser priorizados critérios que levem em conta sobretudo a qualidade e a especificidade da produção acadêmica, segundo as diferentes áreas do conhecimento.

Essa é uma reivindicação antiga e até há pouco tempo muito reiterada na área das Humanidades: o respeito à especificidade. E a crítica recorrente, que quase sempre a acompanhou, é também esta: os critérios de bibliometria não trabalham a favor do aprimoramento da área, antes, pelo contrário, a enfraquecem. E creio que esse é um ponto importante, que merece a melhor atenção, seja pela recorrência, seja porque de fato a predominância dos critérios bibliométricos na avaliação da produção acadêmica parece ser um caminho sem volta, em toda parte. E também porque, como espero mostrar, as formas de avaliação da produção individual e institucional têm implicações diretas na configuração da área e no perfil intelectual dos egressos dos cursos de Humanidades.

Comecemos então pelas considerações mais gerais.

I. O que se mede, quando se mede a produção acadêmica?

É uma pergunta aparentemente banal, mas da maior importância. E para maior clareza, creio que deve ser acompanhada de outra, que não parece menos: para que se mede a produção acadêmica?

No Brasil, a medida pode ser de um coletivo – no caso de um programa de pós-graduação – ou de um indivíduo – no caso de um exame de currículo para concurso ou promoção na carreira. No caso do indivíduo, a segunda pergunta tem uma resposta óbvia: para avaliar se o sujeito está apto a ocupar um determinado posto. No caso do conjunto, para dimensionar os recursos de infraestrutura e de bolsas ou até mesmo para decidir a extinção de um programa.

Mas tanto no caso da avaliação do coletivo quanto no caso da avaliação do indivíduo, o que é privilegiado é a produção bibliográfica. É verdade que a prática docente conta, bem como a organização de eventos e a participação neles, a elaboração de projetos ou a captação de recursos. E também é verdade que, no caso de um programa de pós-graduação, o fluxo, o prazo de integralização, as ações de internacionalização e intercâmbio contam. Mas o que sobressai e de fato dá a medida do merecimento é a produção bibliográfica. De modo que, na proposta de indissociabilidade da pesquisa e do ensino (em alguns casos, do ensino, da pesquisa e da extensão), a responsabilidade maior pela excelência recai sobre a pesquisa e publicação de resultados.

Por isso mesmo, é importante observar as diferenças entre as Humanidades, por um lado, e as Ciências Exatas e Biológicas, por outro, no que toca à forma de construção, divulgação e avanço do conhecimento. E também, o que é pouco considerado, quanto ao ritmo de incorporação e de obsolescência da informação nova.

Comecemos por este último ponto. Quando um aluno de pós-graduação de Química ou Biologia vai definir um projeto de pesquisa, o leque temporal da bibliografia a cobrir é usualmente de cerca de cinco anos (e, quando muito, de dez). Isso quer dizer que se acredita que, se algo de relevante foi revelado sobre o seu assunto antes desse prazo, é quase certo que tenha sido incorporado na bibliografia subsequente. E como o progresso do conhecimento é veloz, a obsolescência é igualmente rápida, mesmo que tenha um ritmo diferente em cada campo do conhecimento das ciências duras. Daí que a crítica mais razoável à eleição do Fator de Impacto como indicativo da qualidade de um artigo seja a que afirma que cada área de conhecimento tem um tempo diferente de maturação e que dois anos é um prazo muito breve para o maior número de áreas – mesmo cinco anos parece uma janela estreita para outras. Nesse aspecto, a área das Humanidades é realmente distinta: enquanto cerca de 60% de artigos publicados em periódicos indexados de Física recebem citações nos primeiros cinco anos depois da publicação, apenas 2% dos artigos de Artes e Humanidades são referidos nesse prazo [Strel, 2005]. Isso pode indicar que a maior parte dos artigos de Artes e Humanidades não apresenta interesse para outros pesquisadores – o que é um ponto que não deve ser desqualificado a priori. Mas também pode significar que a meia-vida dos artigos dessas áreas é muitíssimo maior do que a dos artigos das áreas de repercussão mais imediata.

De mais a mais, no que toca à repercussão científica da produção de um intelectual que atua no campo das Humanidades, também é preciso considerar que os artigos cujas formulações tiveram significativo impacto na área nem sempre são referidos a partir da sua publicação em periódico. O mais frequente é que o sejam a partir de um livro no qual tenham sido posteriormente reunidos com outros artigos e ensaios do autor. Por outro lado, tão diversa é a área, que pode ocorrer que alguns dos textos mais conhecidos e influentes sobre um autor tenham sido publicados em lugares que pouco contam de acordo com a metodologia de avaliação em vigor nas áreas das ciências duras. Em lugares, portanto, não reconhecidos nem mensurados pelas plataformas científicas. Por fim, também é certo que alguns textos publicados em revistas possuem meia-vida realmente assombrosa, bem como é verdade que textos inovadores publicados em volume podem esperar anos pela sua incorporação à bibliografia corrente.

Posso dar um exemplo de cada caso. Quanto ao primeiro, considere-se o clássico estudo de Antonio Candido sobre O Cortiço: foi redigido em 1973 e, depois de ter duas partes publicadas em periódicos em 1976, foi publicado num terceiro periódico em 1991. Entretanto, praticamente todas as referências a ele se fazem a partir da republicação do artigo no volume O discurso e a cidade, lançado em 1993. Como testemunho da sua enorme meia-vida, considere-se que eu mesmo vim a Coimbra, em 2016, para apresentar uma leitura crítica desse ensaio, incluindo na minha apresentação as primeiras versões dele, já velhas de 40 anos. Para o segundo caso, um bom exemplo é o texto que João Luiz Lafetá publicou como posfácio ao romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, em 1974, e que ainda hoje é referência na bibliografia do autor: uma consulta ao Google Acadêmico mostra que esse posfácio tem 111 citações, enquanto os livros de Lafetá A dimensão da noite (onde aliás o mesmo posfácio é reproduzido) e A crítica e o Modernismotêm, respectivamente, 75 e 22 citações. E há ainda que considerar que textos de grande repercussão podem surgir em jornais e outras publicações não especializadas, só aparecendo em livro anos depois de produzir seu maior impacto no campo.Aqui, entre outros, pode-se referir o artigo “Marco histórico”, que Roberto Schwarz publicou num suplemento da Folha de S.Paulo em 1985 e dois anos depois – tempo de meia-vida de um paperde Física – republicou, no volume Que horas são?. O ponto aqui é que esse artigo, que tem um papel de destaque na fortuna crítica de Augusto de Campos e nos debates sobre poesia de vanguarda, não seria levado em conta, numa avaliação da produção como a que hoje vigora na área, ao longo dos dois anos em que foi muito lido e debatido, antes de vir em livro. Quanto ao terceiro caso, basta referir um ensaio de Iumna Simon e Vinícius Dantas, intitulado “Poesia ruim, sociedade pior”, publicado na revista Novos Estudos CEBRAPem 1985, que ainda hoje é referência constante sobre a questão que aborda. Um exemplo do último caso é O livro agreste, de Abel Barros Baptista, publicado pela Editora da UNICAMP em 2005. Nele veio um ensaio sobre o romance São Bernardo, de Graciliano Ramos – o mesmo livro a que se dedica o posfácio de Lafetá, com o qual, por sinal, dialoga Baptista – que ficou sem referência significativa (contra ou a favor) até que, em 2016, Luiz Costa Lima viu nele uma feliz quebra de paradigma crítico, que permitia inaugurar um novo modo de leitura [Lima, 2016, p. 148].

Além desses exemplos, creio que nem precise me referir à quase eterna meia-vida de livros que criaram paradigmas de leitura. Se precisasse, bastaria dizer que, dois anos depois daquele em que estive em Coimbra para discutir o ensaio sobre O cortiço, voltei para fazer uma leitura crítica da obra que é talvez a mais presente nas bibliografias de literatura brasileira, o livro Formação da literatura brasileira, publicado em 1959 – ou seja, um vetusto volume, quase da minha idade.

Já no que diz respeito à forma de construção do conhecimento, a área das Humanidades é também bastante diferenciada das áreas das exatas ou biológicas. É certo que existem disputas de correntes e pontos de vista nas mais variadas áreas de atuação universitária. Nas Humanidades, porém, o conhecimento e o progresso dele ostensivamente não se desvinculam dos pressupostos ideológicos, das filiações a paradigmas interpretativos. Por isso é possível, para voltar ao mesmo caso já referido, que se encontrem a cada ano dezenas de trabalhos acadêmicos sobre Machado de Assis nos quais não haja nenhuma referência – ou apenas referência de passagem, sem problematização – aos três livros de Abel Barros Baptista publicados pela Editora da UNICAMP. E se quisermos referir um entre vários exemplos de obliteração bibliográfica por dissensão de base ideológica, basta lembrar que um autor como José Guilherme Merquior muito raramente aparece na bibliografia de ensaios sobre temas aos quais se dedicou com brilho e erudição, provavelmente porque ficou estigmatizado – a partir de uma polêmica em jornal – como um intelectual ligado à ditadura militar. Ou seja, a obsolescência ou a meia-vida de um texto acadêmico dependem de muitos fatores, alguns dos quais pouco ou nada têm a ver com a amplitude da pesquisa, o vigor da reflexão ou a coerência dos pressupostos.

Tendo isso em mente, fica claro que a simples transposição dos critérios de análise da produção acadêmica das Ciências Naturais para as Humanidades é não apenas inadequada como inócua, do ponto de vista da aferição da real importância dos textos publicados. Porque para atender às demandas produtivistas a saída tem sido a publicação de resultados parciais em periódicos especializados. Entretanto, pensar que, numa área como a dos Estudos Literários, haja sempre resultados parciais a publicar e, principalmente, que seja relevante a publicação desses resultados é um engano pleno de consequências.

De fato, não é só a meia-vida dos textos de crítica literária que é longa, mas também o período de maturação da reflexão. Mais do que isso, não é apenas o resultado – a conclusão de um estudo – que importa. Dados os recortes teóricos em combate e dada a possibilidade de que os objetos de estudo sejam passíveis de aproximações e interpretações contrárias e mesmo antagônicas, o que de fato importa não é a conclusão, mas sim o processo de argumentação, a linha do raciocínio desenvolvida para (quando for o caso) justificar a escolha do objeto, e (de regra) para a apresentação e a sustentação de uma hipótese sobre ele.

Por isso mesmo, a forma privilegiada de apresentação tende a ser não o breve artigo de recorte pontual e vertical, mas a monografia, na qual a fortuna crítica é passada em revista e os argumentos se encadeiam de modo a compor um quadro verossímil que almeja a hegemonia.

Num texto apresentado num congresso recente, John Donatich [2017], diretor da Yale University Press, notava:

[...] pesquisando num texto eletrônico, pode-se selecionar o que é importante, cortar e colar, mas se estará lendo coisas fora de um contexto e uma sequência preestabelecidos. Pode ser que se descubra o cerne da questão com mais rapidez, mas se deixará de saber como o autor chegou àquelas conclusões.

A ideia é interessante, mas com um reparo: quando se trata de um texto de crítica literária ou um ensaio (e provavelmente de qualquer área das Humanidades) não há como chegar ao cerne de nenhuma questão sem avaliar “como o autor chegou àquelas conclusões”. Ou seja, a forma de argumentação, o agenciamento de apoios bibliográficos, a linha do raciocínio – isso é o que realmente importa e pode fazer surgir o que se identificaria como “o cerne da questão”, quando não é ela mesma o próprio cerne.

E aqui creio que podemos dar um salto e refletir sobre outra especificidade da área dos Estudos Literários, que talvez seja comum a outros campos de conhecimento na grande área das Humanidades: a forma de ensinar, o trabalho em sala de aula. Porque me parece evidente que, no caso da literatura, não há um objeto identificado, que possa ser “transmitido”. Diferentemente de uma aula de cálculo ou de algum ponto de química ou física, não há um conteúdo objetivo unanimemente reconhecido como tal, que possa ser ministrado com maior ou menor eficácia pedagógica. Ensinar o Modernismo brasileiro ou a ficção de Guimarães Rosa é uma atividade que tem pouca semelhança com ensinar cálculo infinitesimal ou um tópico de resistência de materiais.

De fato, a menos que se disponha a distribuir um digest de história literária ou a reificar conceitos teóricos, o professor de literatura ensina um modo de pensar. Porque sem a contraposição ativa de pontos de vista – seja por meio do diálogo real entre o professor e os estudantes, seja pela reprodução por este do diálogo cultural, da história da construção da interpretação – as aulas têm pouca relevância, já que na bibliografia o aluno pode encontrar visões e avaliações distintas e até opostas do mesmo objeto, segundo o método de abordagem ou clivagem teórica. Na verdade, a própria escolha dos objetos num curso já implica o diálogo entre o passado e o presente, entre a leitura de ontem e a de hoje, ou entre a de hoje e a que se quer construir no futuro.

Dessa forma, uma aula de estudos literários (e creio que também de muitas disciplinas das Humanidades) guarda semelhanças com a forma do ensaio ou da monografia. E por isso sempre me pareceu acertado, nos tempos em que a produção não se media e quantificava a cada biênio por meio de textos publicados, que no IEL fossem os professores mais qualificados e experientes os que se dispusessem a ministrar as disciplinas dos anos iniciais da graduação em Letras.

No que diz respeito a esse aspecto, o mesmo sucede com palestras e conferências, nas quais a diferença de perspectiva e o escopo das falas nas áreas de Humanidades e nas ciências da natureza é evidente. No campo da literatura, por exemplo, uma conferência é a apresentação e a defesa de um argumento, não de um resultado. Sua forma é mais próxima da monografia e, nos melhores casos, do ensaio, do que do relatório de pesquisa.

De fato, chegar aqui e apresentar apenas a página de conclusão de um novo estudo sobre a poesia concreta ou sobre o adultério na obra de Machado é algo inconcebível. A afirmação do lugar novo sempre implica a discussão com o lugar anterior. E não é exatamente no apanhado final que residem o interesse maior e o seu aproveitamento posterior, mas na forma de construção e sustentação do pensamento. Isto é, a afirmação do novo não implica o abandono do velho, mas uma contraposição a ele, a apresentação de uma alternativa, ou a crítica do princípio que o mantinha em pé. Sem argumentação, a afirmação conclusiva é apenas mera opinião ou exercício de autoridade. E é por isso que frequentemente parece tão ridícula a imitação, em simpósios da área, da dinâmica de congressos das ciências duras: os 15 minutos das comunicações não permitem sequer a formulação correta de um problema, quanto mais a apresentação de uma proposta de solução. No máximo, servem à apresentação sumária do projeto.

E no entanto temos feito grande esforço para importar, para a nossa área, as formas de difusão e avaliação da produção intelectual das ciências duras, valorizando sobretudo os artigos em periódicos especializados, indexados, nos quais a seleção é feita por pares. É minha convicção que isso não apenas produz uma avaliação errada do mérito, mas ainda tem promovido uma alteração na forma de funcionamento das Humanidades, de consequências graves.

E essa alteração tem sido tão grande – e, em alguns ambientes, tão profunda – que as considerações e definições que acabo de fazer tendem a parecer pouco atuais e podem mesmo ser absorvidas como discurso algo nostálgico sobre um momento encerrado ou que está inapelavelmente condenado a encerrar-se.

Mas continuemos com o diagnóstico.

II. Professor ou pesquisador?

Apresentada assim, a questão parece sem sentido. Então não é consenso que o bom professor universitário é aquele que se define e compreende como pesquisador? Por que então formular a alternativa?

Em primeiro lugar porque, se o consenso é que um professor deve ser bom pesquisador, não é pressuposto que para ser pesquisador na universidade alguém tenha de ser bom professor. Em segundo porque é evidente, na avaliação das universidades (ao menos nas brasileiras) para a elaboração de rankingsdos programas de pós-graduação para recebimento de verbas, a proeminência da pesquisa, avaliada pelos resultados objetivos e sua distribuição ao longo de um eixo temporal. E em terceiro porque a seleção dos docentes para preenchimento de cargos nas universidades de ponta privilegia claramente o currículo de publicações; assim como, ao longo da carreira, as promoções se dão com base no mesmo tipo de avaliação.

Uma consequência desse estado de coisas é que, nas universidades mais conceituadas, a figura do professor se apaga frente à do pesquisador. A atividade em sala de aula, por exemplo, é cada vez mais uma espécie de mal necessário, um tipo de pedágio que se paga para ter acesso à atividade mais decisiva, que é a de pesquisa. E em muitas dessas universidades produz-se um contrassenso: após uma rigorosíssima seleção para contratar um professor/pesquisador, este termina por dedicar-se prioritariamente às atividades de pesquisa e a atuar preferencialmente na pós-graduação, onde pode dar cursos monográficos, delegando suas aulas nos cursos de graduação a orientandos de doutoramento ou a detentores de bolsa de pós-doc ou de recém-doutor. Ou seja, a ênfase no perfil “pesquisador” tende a deixar em plano muito secundário a atividade propriamente formativa que se espera de um professor universitário que atue nas Humanidades.

Outra consequência da ênfase na pesquisa em detrimento da formação ampla é que nas Humanidades também tem havido no Brasil uma enorme valorização das atividades de iniciação científica, sendo crescente o número de bolsas e incentivos ao engajamento em pesquisa dos estudantes de graduação, em detrimento da formação geral na área de concentração e mesmo da formação pedagógica, num sentido amplo e não disciplinar, suposta numa licenciatura. Por fim, no que diz respeito à pós-graduação, também em decorrência da adoção dos mecanismos de avaliação e dos pressupostos que vigem nas ciências duras, reduzem-se brutalmente os prazos para a realização do mestrado e do doutorado, condicionando não apenas as bolsas, mas a própria avaliação do programa ao fluxo e ao tempo médio de titulação.

No caso específico das universidades paulistas – que nisso constituem a vanguarda nacional – há que considerar a atuação muito decidida da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) na imposição do paradigma tecnocientífico a todas as áreas de conhecimento. E não só pela atuação indireta com a imposição de prazos, na desvalorização do mestrado e no incentivo ao doutoramento direto, mas, de modo muito mais eficaz, por meio da destinação de recursos vultosos à promoção de um modo específico de trabalho: o do laboratório gerido por um pesquisador de ponta, que chefia uma equipe de pessoas em graus diferentes de competência.

A FAPESP tem feito isso por meio da priorização do que denomina Projetos Temáticos. Tais projetos, de caráter interinstitucional, não apenas recebem financiamento para infraestrutura de pesquisa, mas ainda cotas de bolsas de estudo (ou melhor seria dizer: bolsas de pesquisa) em vários níveis acadêmicos: bolsas de iniciação científica, de doutoramento direto, de pós-doutoramento e ainda auxílio a jovens pesquisadores. Diferentemente das bolsas individuais, que são submetidas pelos orientadores e avaliadas por meio de assessora ad hocanônima, as bolsas por cotas são atribuídas diretamente pelo pesquisador que integra a equipe diretiva do projeto temático, bem como a sua avaliação e eventual suspensão por mau desempenho. Isso dá origem a uma enorme concentração de poder acadêmico e mesmo financeiro nos tipos de projetos e nas formas de trabalho mais adequadas ao trabalho em grupo, normalmente pesquisas de largo espectro, nas quais a coleta e o processamento de dados constituem uma parte essencial. E, para todos os efeitos de avaliação da produção acadêmica, da forma como ela tem sido feita desde o nível individual ao nível coletivo, os projetos temáticos apresentam vantagens, pois não só dispõem de verbas para realização de congressos e publicação de resultados, mas ainda permitem a difusão de outro indicador de produtividade, que é justamente a capacidade do docente de angariar recursos externos para investir na instituição – salas, laboratórios, instrumental de pesquisa, material de consumo. Onde, porém, se nota de imediato uma alteração da forma de organização do campo intelectual das Humanidades nas universidades paulistas é no que toca ao poder de atribuição de bolsas.

A FAPESP evidentemente não é a responsável pela especialização precoce constatada em toda parte, e mais agudamente numa universidade de pesquisa, como a UNICAMP. Muitos são os fatores, como viemos expondo. Mas a FAPESP é sem dúvida um poderoso reforço local a uma tendência geral.

Por fim, há que considerar ainda que, como o sistema de créditos permite que os currículos sejam montados pelo estudante, é cada vez mais comum a figura do especialista prematuro, que ignora tudo que não tenha alguma relação com o trabalho para o qual obteve a bolsa de IC. Na verdade, não é difícil encontrar hoje, na UNICAMP, estudantes que passam a graduação inteira focados num só tema, autor ou aspecto de um problema diretamente vinculado ao projeto de pesquisa do seu orientador. E é cada vez mais comum que esse estudante, quando inicia – a maior parte das vezes com o mesmo orientador – seus estudos de pós-graduação, ainda sem ter adquirido um repertório de leituras e referências significativo na sua área de atuação, faça apenas um aprofundamento vertical no campo em que já vinha trabalhando.[10] E é quase fatal que o recém-doutor, formado dessa maneira, continue a concentrar os seus estudos à volta do tópico ou tema em que foi iniciado nos primeiros anos da graduação. Por fim, não é descabido imaginar que, dado o papel formador e exemplar que a universidade paulista desempenha no campo das Humanidades, essa alteração no seu modus operandi – decididamente apoiada pela FAPESP – terá, a médio prazo, graves repercussões na constituição do quadro de poder e representatividade intelectual no restante do país.

No momento, já é evidente entre nós, no convívio diário das bancas e dos congressos, o crescente número de doutores e jovens professores universitários na área de Letras (e é provável que algo homólogo suceda em outras áreas) cujo conhecimento de literatura e cujo repertório cultural se restringem estritamente a algum autor ou recorte temático específico, ou ainda a um século ou mesmo algumas décadas. Mesmo assim, dentro desse foco estreito, apenas ao imediatamente utilizável para responder às pressões para escrever artigos, participar de congressos e elaborar projetos e mais projetos que lhes possam garantir ao longo do tempo bolsas e sucesso na busca de um posto universitário ou de uma progressão na carreira. E é bastante provável – dadas a dinâmica e a produtividade acentuada da especialização precoce – que os cargos acadêmicos preenchidos por concurso nos vários estados da Federação sejam ocupados principalmente por pessoas altamente especializadas, sem repertório de leituras literárias ou teóricas fora do seu campo direto de atuação. Ou seja, por profissionais identificados cada vez mais como “pesquisadores” do que como professores.

Tendo em vista esse quadro, talvez não seja impróprio entender que uma das decorrências da conjugação das formas de avaliação e das mudanças na forma de organização do campo de conhecimento seja, a par da especialização limitadora produzida pela vinculação precoce a projetos coletivos, a proliferação recente na área das Letras de jovens doutores que se definem apenas como teóricos ou professores de Teoria – assim mesmo, sem determinante e com maiúscula. Não sendo “um campo coerente de pressupostos, metodologias, crenças ou preferências ideológicas aplicáveis a um objeto de estudos”, ou seja, não sendo uma nova teoria da literatura [Bellei, 2016, p. 2], e sim “um conjunto ilimitado de escritos sobre tudo o que existe sob o sol, desde os problemas mais técnicos da filosofia acadêmica, até as diferentes formas como as pessoas falaram e pensaram sobre o corpo” [Culler, 2016, p. 84], a Teoria tem a vantagem de gerar uma notável profusão de textos que se comentam entre si e que se destinam principalmente à comunidade de autores da própria Teoria. Dessa maneira, a Teoria termina por ser, mesmo quando a critica, uma resposta eficiente à demanda produtivista, pois sua forma preferencial de difusão é o artigo especializado, no qual se fala sobre um objeto a partir de um ensaio de um autor em alta, de última moda, ou a partir de uma ou outra metáfora que se descubra no objeto ou se recolha de autor reconhecido no campo da Teoria [Durão, 2016, p. 22]. E é também, pelo seu caráter onívoro, uma consequência e atestado da perda da importância da literatura no conjunto dos conhecimentos universitários.

Tampouco parece absurdo imaginar que as próximas gerações de formados nas faculdades de Letras terão um perfil distinto do que vigora atualmente. As críticas ao cânone, o desmonte das construções ideológicas sobre a literatura e o recorte dos objetos conforme visadas específicas de gênero, classe, orientação sexual, etnia etc. vão ocupando velozmente o espaço anteriormente ocupado pelas formas tradicionais de aproximação e definição do objeto literário: contextualização, recomposição da tradição interpretativa sobre o objeto, erudição para agenciamento de referências. Do que decorre que a formação especificamente literária, baseada nas configurações históricas do discurso literário e no convívio dos textos outrora considerados fundamentais para o domínio do campo, tende a reduzir-se, a perder relevância no que toca seja à competência esperada de um professor universitário, seja – de modo mais radical – à competência desejável para um professor do ensino médio.

Se este esboço parece razoável e se a linha de evolução for a que aqui se desenha, não será de estranhar que se faça sentir cada vez mais no Brasil a pergunta fatal, que já é abertamente formulada em outros países: por que o Estado deveria manter as faculdades de Letras (ou outros domínios das Humanidades)? E se a resposta à pergunta ingênua e bruta “para que serve a literatura?” for aquela que tantas vezes ouvimos como afirmação de singularidade e ato de resistência – a de que “a literatura não serve para nada”, exceto para a satisfação e a ilustração pessoal –, qual seria então a justificativa para demandar conhecimento literário dos postulantes a uma matrícula na universidade? E qual o sentido, finalmente, de formar professores de literatura para ensiná-la na escola de nível médio? Já se a resposta for: o que importa é formar professores de linguagens, então o leque de justificativas para a existência e a manutenção de bacharelados em Literatura e programas de mestrado e doutorado em Literatura e Teoria Literária se fecha de modo preocupante.

A mera possibilidade (ainda que inconveniente e talvez alarmista) de se apresentarem tais questões mostra, eu creio, que vivemos um momento crítico para os Estudos Literários no interior da universidade – e com modalizações que não consigo estimar, também para outros domínios de conhecimento das Humanidades. Sendo assim, é vital mapear o mais fria e objetivamente possível o estado de coisas, bem como tratar de compreender a dinâmica dos fatores que nos conduziram até aqui.

Entretanto, há ainda alguns aspectos a considerar, para fechar o quadro.

III. A força do excluído

Da exposição feita, não se deve concluir que o argumento esteja sendo montado para contestar a necessidade de seleção e de valoração da produção acadêmica. Por conta também da especialização precoce e da ênfase na obtenção de “produtos” (contando aí também as pessoas formadas), vivemos uma época em que brotam de todo lado teses e mais teses de doutoramento, artigos e mais artigos, revistas e mais revistas. Uma época em que, segundo uma estimativa irônica e plausível, a média de leitura de uma tese é de 1,6 leitor, incluído aí o próprio autor.[11]Assim, é imperioso selecionar o que conta, como é preciso valorar o selecionado.

Em todas as áreas de conhecimento e em várias partes do mundo a proliferação dos cursos de pós-graduação e, especialmente, a multiplicação dos doutoramentos têm merecido atenção a partir de dois pontos de vista: a destinação desses doutores e a qualidade da sua formação, em situações nas quais a expansão é muito rápida.

Um artigo publicado na revista Nature, em 2011, intitulado “A fábrica de doutorados”, procede ao levantamento da situação de vários países em diferentes graus de desenvolvimento e identifica um ponto de coincidência: na maior parte dos casos, o investimento na produção de doutores não encontra respaldo na atuação posterior deles [Cyranoski et al., 2011]. Não apenas porque não há, a não ser nos casos da China e da Índia, lugar em instituições de pesquisa para abrigar a maioria dos titulados, mas também porque a maior parte deles termina por atuar no mercado em funções para as quais a formação doutoral não seria necessária. Ao mesmo tempo, afirma-se ali que justamente nesses dois países o nível de formação adquirido num doutoramento não é consistente, em comparação com outros países.

Sintomaticamente, na análise comparativa, o país no qual era boa, em 2011, a relação entre os formados e os absorvidos em posições compatíveis com o grau de formação era justamente aquele no qual não tinha havido nenhum crescimento no número de doutoramentos entre 1998 e 2006. No caso, a Alemanha, onde, aliás, o doutoramento inclui um diferencial, que é o grande tempo previsto para atividades fora do laboratório, na frequência a disciplinas formativas em sentido amplo, como apresentação oral e redação científica. Se a China, a Índia e a Alemanha, por motivos diversos e quase opostos, estão na ponta positiva do espectro – aquela na qual há correspondência entre formação e absorção de formados –, na outra ponta se