Notícia

Gazeta Mercantil

Autonomia para as universidades

Publicado em 12 julho 1996

Por Fernando Dantas - de São Paulo
O governo está preparando as 39 universidades federais e mais quinze instituições isoladas para a adoção da autonomia administrativa e financeira prevista pela Constituição de 1988. A autonomia, praticamente ignorada pelas universidades públicas, foi adotada com sucesso desde 1989 pelas universidades estaduais paulistas. Eunice Ribeiro Durham, secretária de Política Educacional do Ministério da Educação, gostaria de preparar o sistema universitário federal para gozar de autonomia financeira já em 1997. Ela esbarra, porém, nas dificuldades constitucionais e orçamentárias de se tirar professores e funcionários da rigidez do Regime Jurídico Único do funcionalismo público. A idéia do governo é que o conjunto de universidades e faculdades federais divida entre si recursos orçamentários fixados de acordo com algum critério estável. A partir deste momento, cada instituição administraria por si recursos humanos, de custeio e investimento. Na ponta-de-lança desse modelo estão a USP, Unesp e Unicamp, de São Paulo, que dividirão neste ano R$ 1,45 bilhão. Os reitores das duas primeiras defendem o modelo paulista e desconfiam da sinceridade do governo federal. (Pág. A-8). AS UNIVERSIDADES CAMINHAM PARA A AUTONOMIA Fernando Dantas - de São Paulo As três universidades estaduais de São Paulo devem receber, em 1996, R$ 1,45 bilhão do governo estadual. Isso significa que a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade de Campinas (Unicamp), em que estudam apenas cerca de 20% dos universitários de graduação do estado, vão absorver 7,6% da sua arrecadação. A análise de números como esse estimula as correntes que julgam o ensino superior paulista excessivamente rico, quando comparado com a escassez de recursos generalizada do estado. O secretário da Fazenda paulista, Yoshiaki Nakano, manifestou-se mais de uma vez, recentemente, contra a vinculação obrigatória de 9,57% do ICMS paulista ao orçamento das universidades estaduais. Os críticos do bem-sucedido modelo de autonomia financeira das universidades estaduais de São Paulo, porém, não terão vida fácil. Isso ficou muito claro para quem assistiu à veemente defesa do modelo feita pelos reitores da USP, Flavio Fava de Moraes, e da Unesp, Arthur Roquete de Macedo, durante o encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em São Paulo, nesta semana. O momento é particularmente instigante para esse debate. O governo federal, alvo de criticas de Fava e Macedo, está, ironicamente, preparando as 39 universidades federais e mais quinze faculdades federais isoladas do País para adotar o mesmo princípio de autonomia administrativa e financeira que já impera nas universidades paulistas desde 1989. Para isso, o governo está elaborando um projeto de orçamento global para o ensino superior federal. A idéia é que o conjunto de universidades divida entre si um bolo de dinheiro fixado de acordo com algum critério estável, e a partir daí cada uma administre por si seus recursos humanos, custeio e investimentos. Eunice Ribeiro Durham, secretária de Política Educacional do Ministério da Educação, gostaria de preparar o sistema universitário federal para gozar de autonomia administrativo-financeira já em 1997, mas sabe que seu objetivo é muito difícil. Hoje, os 71 mil funcionários e 45 mil professores do sistema federal são funcionários públicos federais, e a política de recursos humanos das universidades está comprometida por toda a teia de controles, rigidez, estabilidade e arrocho salarial que incide sobre o funcionalismo em geral. Liberar as universidades das amarras dó Regime Jurídico Único do funcionalismo vai ser uma guerra legislativa, exigindo mudanças constitucionais e da lei de diretrizes orçamentárias. Em contraste, o sistema universitário estadual paulista desponta como um exemplo interessante de um modelo de autonomia que está dando certo, mesmo com funcionários e professores sendo igualmente funcionários públicos, estaduais no caso. A autonomia das universidades paulistas nasceu em decorrência da Constituição de 1988, que em seu artigo 207 afirma que as universidades "gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial". Pulando na frente, em fevereiro de 1989, o então governador Orestes Quércia colocou em prática a autonomia através de um decreto-lei, ao contrário do ocorrido no resto do Brasil, onde ela não se materializou. "Sempre que se tolhe a universidade, isso é feito através da restrição orçamentária", diz Roquete Macedo, sem discordar do consenso de que o mais importante, no final das contas, é a autonomia científica, crítica e reflexiva. Quércia proveu a autonomia de fato, ao indexar a dotação das universidades estaduais a um percentual do ICMS. A partir desse momento, os reitores da USP, Unesp e Unicamp passaram a receber um volume razoavelmente previsível de dinheiro, reparti-lo entre si de acordo com critérios mutuamente aceitáveis e tocar a administração de suas universidades por conta própria. O percentual da indexação, baseado na dotação orçamentária para as universidades estaduais em anos anteriores, variou um pouco de início, e acabou fixando-se no pico (até agora) de 9,57%. As três universidades paulistas melhoraram desde 1989, quando se toma indicadores como número de matrículas, número de formandos, mestrandos e doutorandos, professores com pós-graduação, trabalhos publicados, produção científica, etc. O caso da Unesp é ilustrativo das vantagens da autonomia. Os alunos matriculados em graduação e pós-graduação saltaram de 19 mil para 24,4 mil de 1988 para 1995, aumento de 28,4%; e os trabalhos científicos publicados foram de 1.994 para 3.32% avanço de 72% no mesmo período (ver ilustração). O número de docentes ativos, por outro lado, saiu de 3.050 em 1988 para 3.489 em 1995, um salto bem mais modesto de 14,4%. Os funcionários ativos foram de 7.074 para 7.953, com aumento de 12,4%. Em outras palavras, a Unesp tornou-se mais produtiva, supondo-se que aqueles aumentos quantitativos não implicaram perda qualitativa. "O reitor sozinho não poderia conter a contratação de funcionários e docentes", diz Roquete Macedo, acrescentando que o trabalho em conjunto com conselhos e representantes da própria comunidade acadêmica foi fundamental para a austera política de pessoal da Unesp desde a autonomia. Diante do dilema de gastar uma verba predeterminada em pessoal, ou em custeio e investimento, a comunidade acadêmica inclinou-se pela segunda alternativa. Isso inverte a equação tradicional de universidades como as federais, em que os professores è empregados são pagos diretamente pelo governo federal. Nessas universidades, a comunidade acadêmica, reitor à frente, usa suas energias para arrancar o máximo possível, para custeio e investimento, do bolo escasso de verbas do governo federal. Por um paroxismo das regras brasileiras, como explica Eunice, as verbas para custeio e investimento são um percentual fixo da folha de funcionários. Assim, enquanto nas universidades estaduais paulistas os reitores têm o estímulo economicamente saudável de conter as despesas com pessoal para ampliar os gastos de custeio e investimento, nas universidades federais o incentivo é o oposto: para ganhar mais dinheiro, as universidades devem ampliar os gastos com pessoal. A autonomia em São Paulo não significa vida mais fácil para os reitores, como atestam Fava e Roquete Macedo. O inimigo anterior, representado pelo governo que negava verbas, sai de cena, e muitas vezes o reitor sente que está sendo colocado em um papel que não deseja nem tem meios de assumir: o de patrão. "Eu não tenho produtos para os quais repassar o preço de um aumento de salário", diz Fava, que critica a "predação interna" da universidade por setores radicalizados. Ele observa que alguns grupos, incluindo professores, sugeriram que ele gastasse todo o dinheiro que julgasse ideal para gerira universidade, e o que faltasse seria resolvido com "desobediência civil" - isto é, não pagando impostos, contribuições sociais, contas de luz, etc. "Eu jamais faria isso. Como bom homem de interior, eu sei que a coisa mais importante é proteger a minha própria casa", diz ele. Para defender o grande volume de recursos federais destinados ao ensino superior — 75% dos recursos de educação do orçamento federal, segundo Eunice -, os reitores lembram o papel fundamental das universidades na saúde pública do País e na pesquisa científica. Uma parte expressiva dos recursos é destinada à manutenção e gestão de hospitais públicos ou de laboratórios e equipamentos científicos caríssimos, como o acelerador nuclear ("péletron") da USP. Eles consideram também que a avaliação das universidades é um elemento essencial de um sistema que garanta a autonomia. Os reitores paulistas desconfiam muito das intenções dó governo federal e do ministro da Educação, Paulo Renato Souza, em relação à autonomia universitária. Há uma longa e, em alguns aspectos, bizantina discussão sobre a possibilidade de se introduzir a expressão "na forma da lei" no final do artigo constitucional que garante a autonomia. Paulo Renato garante que o governo não finca pé na alteração, que se mantém em uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no Congresso apenas por razões regimentais. Reitores de todas as universidades do País, públicas, privadas e confessionais, rechaçaram de forma unânime a alteração, recentemente. Na explicação de Paulo Renato e Eunice, a expressão "na forma da lei" abriria espaço para legislação não-constitucional que permitisse o governo coibir abusos de universidades privadas e regulamentar a autonomia financeira das universidades públicas. Os reitores paulistas desconfiam do argumento, e acham que a expressão enfraqueceria o princípio de autonomia. São Paulo e Brasília concordam, porém, que a folha dos inativos é um dos maiores problemas do sistema universitário brasileiro. A aposentadoria em 30 anos de serviço (25 para as mulheres), com rendimentos até 20% superiores ao vencimento final, é uma carga pesadíssima no caminho do sucesso da autonomia. A USP gasta 85% dos seus recursos na folha de ativos e inativos, e 27% apenas na dos inativos. Nas universidades federais, a folha já absorve 90% das dotações, e 40% disso é para pagamento de pensões e aposentadorias.