Notícia

Jornal da Unesp

Aurora da globalização

Publicado em 01 dezembro 2014

Por Denio Maués

Podemos considerar que a globalização, esse fenômeno aparentemente tão contemporâneo, surgiu muito antes de nossa época? Alguns pesquisadores mostram que sim, pois já no século XIX observou-se um incremento nas relações entre vários países a partir do crescimento econômico e tecnológico, o que também beneficiou muito um terceiro aspecto: a cultura.

É a partir do viés cultural que um grupo internacional realiza desde 2010 diversos estudos sobre livros e periódicos que circulavam entre Brasil, Portugal, França e Grã-Bretanha, abrangendo as áreas de História, Sociologia e Literatura. Os resultados dessas pesquisas, que integram o projeto “A circulação transatlântica do impresso: a globalização da cultura no século XIX”, foram apresentados no final de outubro, em São Paulo, em um colóquio na sede da Editora Unesp. O colóquio chamou-se “Crossings. Travessias. Traverseés”, o que reforça não apenas o caráter multilíngue dessa circulação, mas a forma como ela se dava, ao envolver uma das proezas tecnológicas de então, o navio a vapor.

O recorte temporal dos estudos, no entanto, abrange um período um pouco maior: da Revolução Francesa (1789) ao início da I Guerra Mundial (1914). “A globalização, que muitos pensam ser algo que se inicia nos anos de 1980, seria a retomada de um processo muito mais antigo, que começou com as navegações e tomou um grande impulso no século XIX”, considera Márcia Abreu, professora de Literatura da Unicamp e uma das coordenadoras do projeto.

Márcia divide a coordenação dos trabalhos com o historiador Jean-Yves Mollier, da Universidade de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines, que esteve presente ao colóquio, do qual também participou o historiador francês Roger Chartier.

Criado há quatro anos, o projeto hoje conta com seis linhas principais de pesquisa e 50 pesquisadores, além de financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão da Unicamp (Faepex-Unicamp) e da Universidade de Versailles.

Além da coordenação geral, Márcia também é responsável por uma das seis linhas de pesquisa, na área de Literatura; as demais coordenadoras são Lúcia Granja, da Unesp; Orna Levin, da Unicamp; Sandra Vasconcelos, da USP, e Claudia Poncioni, da Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Na área de História, Tânia de Luca, da Unesp, coordena uma das linhas de pesquisa.

“Já temos mais de mil páginas escritas”, contabiliza Márcia, que adianta as agendas dos próximos colóquios: Lisboa, em 2015, e Paris, em 2016, quando se dará o encerramento dos trabalhos. “Em Paris, ocorrerá o lançamento de uma publicação com as pesquisas”, complementa.

Texto e ilustração

O diálogo entre Brasil e Europa no século XIX a partir de impressos periódicos é o foco do grupo coordenado por Tania de Luca. A equipe trabalha com publicações que vão do grande modelo de revista cultural, a Revue des deux mondes (Revista dos dois mundos), fundada em 1829 e com textos densos, sem concessões ao entretenimento. “No extremo oposto”, observa Tânia, “estavam revistas como A Illustração que, como o nome bem indica, tinham na imagem o seu grande atrativo.” Com redação e impressão em Paris, A Illustração era dirigida por um jornalista português, Mariano Pina, correspondente na capital francesa do jornal fluminense Gazeta de notícias. Os exemplares eram enviados quinzenalmente para Portugal e o Brasil, onde estavam seus leitores.

Impressos satíricos também são objeto de atenção, com o estudo da revista francesa Les guêpes (As vespas, 1839-1847 e 1853-1855), sob a batuta do escritor Alphonse Karr; a portuguesa As farpas, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão (1871-72); e a brasileira Os Ferrões (1875), com José do Patrocínio e Demerval da Fonseca. “O estudo comparativo das mesmas revela-se emblemático pelo fato de a primeira ser a fonte de inspiração das demais, tratando-se assim de um caso nítido que envolve apropriação e recriação de um gênero literário entre continentes”, conta Tânia.

A proximidade entre Brasil e Portugal também se dava por meio das redes de livreiros dos dois países, de acordo com o grupo coordenado por Lúcia Granja. “Esses livreiros, já no início do século XIX, difundiam de pequenas brochuras a panfletos políticos e contribuíram para a formação política e cultural do país”, considera Lúcia.

O aspecto econômico dessa mundialização cultural está presente em alguns trabalhos. Dados sobre importação e exportação de impressos no período foram computados, assim como o número de leitores, embora com lacunas. Lúcia observa que não houve um serviço sistemático de arquivo de dados e muito do que havia se perdeu. O pesquisador português João Luís Lisboa, da Universidade Nova de Lisboa, destaca o peso dos romances para a sobrevivência das editoras portuguesas do período, nas relações comerciais com a França e o Brasil. As vendas ocorriam por meio de assinaturas, correspondentes ou pontos de venda – como os da Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro.

Romance e teatro

Gênero literário em ascensão no século XIX, o romance também é o tema de estudos do grupo. Além da tríade França-Portugal-Brasil, a Inglaterra tornou-se um componente importante, com algumas peculiaridades: “Na Inglaterra, a importância do livro francês é restrita; na França, ocorre o mesmo em relação aos livros ingleses”, explica a professora Márcia. “No entanto, romances dos dois países (muitas vezes em tradução) circulavam amplamente no Brasil e em Portugal.”

O professor inglês Shafquat Towheed, da Open University, presente ao colóquio, ressalta o crescimento do número de leitores ingleses no século XIX, que acompanhou o progresso do sistema educacional. Para esse público, além de romances contemporâneos e novas edições de livros como As aventuras de Robinson Crusoé (de Daniel Defoe, publicado originalmente no século XVIII), Towheed aponta que alguns autores estrangeiros, como o francês Julio Verne, ganhavam tradução inglesa.

A pesquisadora Vanda Anastácio, da Universidade de Lisboa, tem como objeto de estudo a presença de romances em bibliotecas femininas portuguesas. Vanda investiga a coleção de livros de mulheres de quatro gerações de uma família aristocrática de Lisboa. A principal “personagem” de sua pesquisa, Dona Leonor de Almeida Portugal, não citava os romances entre suas leituras – provavelmente para evitar reprovações públicas –, mas apenas livros de filosofia, moral e ciências da natureza. Já em sua biblioteca, havia 40 romances, dos quais dez libertinos, de autores como Denis Diderot. “Temos que desconfiar daquilo que o leitor diz que lê”, conclui Vanda.

A circulação de textos e encenações teatrais durante o segundo reinado no Brasil (1841-1890) é o objeto de estudo da professora Orna Levin. “Naquele momento, artistas e empresários europeus procuraram expandir o mercado de trabalho, passando a se apresentar em diversos países, dentre os quais o Brasil. Os espetáculos eram vistos nos palcos e essa dramaturgia, publicada pelas tipografias”, explica.

No Brasil do Império, circulavam companhias vindas, sobretudo, de França, Itália, Espanha e Portugal. Entre as obras publicadas de maior sucesso, estavam operetas musicadas por Jacques Offenbach (1819-1880), algumas traduzidas e adaptadas por Francisco Palha, Eduardo Garrido e Arthur de Azevedo.

Acompanhando essa movimentação dos palcos, surgiram revistas e jornais Divulgação Frequentadores de uma biblioteca e capa da revista A illustração: leitura em alta voltados para o mundo da arte. Orna reconhece a dificuldade de se identificar a plateia dos espetáculos em língua estrangeira. “Além da elite brasileira, havia a colônia francesa no Rio, funcionários da diplomacia internacional, comerciantes e marinheiros”, enumera.

Imagem e representação

A pesquisadora Claudia Poncioni coordena o grupo que discute a circulação e a recepção de ideias francesas no Brasil, bem como sua contrapartida, a construção da imagem brasileira na França. “Esses estudos situam o papel de iniciativas individuais em um processo coletivo e transnacional”, explica. Para ela, essa imagem idealizada – por exemplo, a do homem de letras francês como modelo para o brasileiro – é um jogo de espelhos deformantes “que ocorre até hoje, nos dois países”.

“Nossos estudos demonstram uma clara evolução entre o período anterior à chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, e o final do século XIX. Ao longo desse século, os europeus afirmam um maior interesse pelo Brasil e, por meio da publicação e da circulação no Velho Mundo de obras sobre nosso país, forja-se um imaginário exótico que influenciaria a percepção do Brasil na Europa até nossos dias”, afirma Claudia.

Essa imagem também foi construída, em parte, por traduções feitas no século XIX, material de pesquisa da brasileira Ilana Heineberg, professora da Universidade Bordeaux Montaigne, na França, e da alemã Wiebke Röben de Alencar Xavier, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – ambas integrantes do grupo coordenado por Sandra Vasconcelos. O Guarani, de José de Alencar, é um bom exemplo, pelas publicações que ganhou na forma de folhetim, em periódicos alemães e franceses, e como um simples romance de aventuras na França (sem as notas de rodapé que caracterizam o projeto nacionalista do autor). “É importante compreender o mecanismo de importação de um texto”, diz Ilana, que também estuda as traduções francesas de Machado de Assis e Visconde de Taunay.

Jean-Yves Mollier

Jean-Yves Mollier justifica a abrangência temporal do projeto, que vai do final do século XVIII a 1914: “Foram cerca de 150 anos em que tudo mudou. Houve uma aceleração formidável das trocas culturais, uma verdadeira globalização”. Mollier ressalta que esse fenômeno, “ainda que imperfeito em relação ao século 20, possibilitou a circulação de homens, ideias e mercadorias de forma rápida, com a substituição dos barcos a vela pelo vapor. O projeto mostra a cartografia dessa circulação transatlântica entre França, Brasil, Portugal e também Inglaterra”. O pesquisador também ressalta que “é importante entender como o centro de gravidade do mundo se desloca. Os impérios nascem, se desenvolvem e morrem. A França teve um passado prestigioso e o Brasil é uma das nações que dominarão o mundo no século XXI”, aposta.

Roger Chartier

No colóquio, o historiador Roger Chartier teve como “missão” a leitura dos 50 trabalhos produzidos pelos grupos de pesquisa e a elaboração de um balanço final, apresentado no último dia do evento. Entre os temas, Chartier destaca a apropriação da imagem brasileira por estrangeiros, por meio de livros de viajantes e textos onde o exotismo é ressaltado. Para o historiador, essa representação, ao chegar no Brasil, pode sofrer uma reação de crítica ou de incorporação: “Isso ocorre sempre, até hoje, depende do interesse e da ocasião”. Chartier também esteve em São Paulo para o lançamento do livro A mão do autor e a mente do editor, publicado pela Editora Unesp, com doze ensaios em que discute a elaboração do livro (desde o texto original até o objeto que chega ao público), tomando como exemplo obras de Cervantes e Shakespeare.