A maior concentração de mata atlântica do Nordeste, ao norte da Bahia, está seriamente ameaçada de desaparecimento sob pastos e canaviais. É a mata de Murici, declarada "reserva da biosfera" pela Unesco, no município de mesmo nome, que fica a 68 quilômetros da capital de Alagoas, Maceió.
Cercada por um mar de pastagens e sobretudo canaviais, a reserva de Murici é uma ilha de vegetação nativa, onde a fauna e a flora típicas das formações originais da porção norte da mata atlântica ainda encontram abrigo contra a invasão das monoculturas extensivas na Zona da Mata nordestina. Invadido e depredado por seus vizinhos, esse oásis ecológico vem sendo sistematicamente subtraído, "comido pelas beiradas", explica Francisco Arroxellas, representante em Alagoas da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), com sede no Rio de Janeiro.
Segundo denúncias de moradores da região e de entidades ambientais civis e até governamentais, como o Instituto Brasileiro de Preservação do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e o Instituto Estadual do Meio Ambiente de Alagoas (IMA), os desmatamentos no Murici são evidentes e avançam aos poucos, mas em ritmo constante.
Primeiro os criminosos ateiam fogo em suas lavouras, na época da queimada da cana e "esquecem" as labaredas, que acabam incinerando as beiradas da mata, empurradas cada vez mais para o interior da área. Não existem aceiros, uma prerrogativa dos agricultores que usam esse método arcaico de limpeza da terra, tornando o processo incontrolável. Ou então a mata é queimada diretamente, em pequenos trechos e diferentes localidades, a fim de retalhar a área de preservação e diminuir importância ecológica.
Para "disfarçar", segundo Anivaldo de Miranda, presidente da entidade Movimento pela Vida, "eles plantam capim rapidamente, após a queimada, e tentam dar a impressão de que já se tratava de zonas de pastagens antigas".
O Ministério Público estadual de Alagoas reconhece o crime e já se prepara para instaurar um inquérito, formatado a partir de uma audiência pública organizada em fevereiro último pelas entidades Movimento pela Vida, Sociedade Mãe Natureza e sindicatos dos jornalistas e engenheiros - que contou também com o apoio da Sociedade dos Engenheiros Agrônomos e Associação Brasileira de Engenharia Sanitária.
A autarquia está "apenas esperando um cadastramento das propriedades envolvidas, nos municípios de Murici, Flexeiras e Messias, e de seus respectivos responsáveis, por parte do Ibama", diz Delfino Costa Neto, um dos promotores encarregados do processo.
Na audiência pública, o presidente do IMA, Marco Carnaúba, entregou ao Ibama e ao Ministério Público relatórios referentes à fiscalização das irregularidades na área e um vídeo que mostra o desmate e queima da vegetação protegida por lei.
A porção florestal de mata atlântica, ecossistema protegido em todo o País pela legislação que impede o desmatamento nas áreas de formações primitivas e em regeneração (decreto n° 750, de 10 de fevereiro de 1993), pleiteada para se transformar em unidade de conservação por seus defensores, compreende parte das terras originais da antiga Usina de Bititinga (cerca de 3 mil hectares), falida com a decadência do Proálcool - e inclui ainda as partes florestadas de outras propriedades particulares ao redor.
A gleba de mata que pertencia à usina foi "entregue por um contrato de comodato, com duração prevista de 30 anos, à FBCN, com a finalidade de monitorar esse ecossistema, até a eventual implantação de uma reserva biológica na área da floresta", segundo informa Jairo Costa, que preside a ONG Carioca, uma das mais tradicionais e respeitadas entidades ecológicas do País.
A estrutura fundiária do local da reserva é bastante confusa, com muita troca de proprietários, divisão das terras entre herdeiros e contratos de arrendamentos que muitas vezes não são registrados devidamente no Instituto, Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ou nos cartórios dos municípios da região. Tudo isso facilita a ação política de fazendeiros influentes, que pressionam as autoridades competentes da região a seu favor nas ações criminosas de desmatamento que praticam em Murici.
Soma-se a isso a falta de um recadastramento imobiliário por parte das autarquias, segundo Glauber Tenório (PSDB), prefeito do município de Murici. Mas uma coisa é certa: a destruição avança e os fazendeiros e arrendatários não hesitam em usar a mata como provedora de mourões de cercas, lenha ou novas áreas de cultivo e pastagens.
O Ibama só conseguiu confirmar a situação de alguns poucos imóveis que fazem parte da reserva, do total de 72 fazendas e sítios, segundo o prefeito de Murici.
Um bom exemplo da ação do coronelismo político na região é o da fazenda Forquilha, adjacente à reserva, de propriedade de Olavo Calheiros, deputado federal pelo PMDB e irmão do atual presidente da Comissão de Orçamento do Congresso, senador Renan Calheiros, e da fazenda Areado, também da família. Técnicos do Ibama que foram verificar denúncia de desmatamento nos imóveis, acompanhados de dois sargentos da Polícia Florestal, foram barrados no local por policiais do Comando Geral da Polícia Militar de Alagoas. O fato está registrado num relatório de fiscalização do Ibama, do dia 2 de janeiro.
Outro grande desmatamento ocorre na Fazenda Bananeiras, de propriedade de Dimário Calheiros, segundo denúncia do Movimento pela Vida. Procurado por este jornal, em Brasília, o deputado Olavo Calheiros não deu resposta.
Recentemente um aquartelamento da Polícia Militar Florestal, convocado a pedido do IMA-A1 para estancar a crescente destruição da mata, acabou retirando-se do local devido a "intrigas políticas", explica Anivaldo de Miranda, evidenciando a complexidade da situação. O Ibama é o órgão que deveria acatar as denúncias de desmatamento, mas não tem recursos humanos nem financeiros necessários para tomar alguma providência eficaz. "O nosso orçamento, calculado para este ano, era ao redor de R$ 60 mil. Dos R$ 24,5 mil previstos para as despesas florestais, nos quais se inclui a fiscalização da reserva de Murici, foi aprovada apenas uma verba inicial irrisória, para o primeiro trimestre", diz Edilene L. Athaíde, superintendente do órgão em Alagoas. Total dessa "verba": R$ 1,7 mil.
Apesar da pouca extensão da área, de apenas 5 mil hectares (área do comodato mais as reservas particulares, de preservação obrigatória), a mata é de extrema importância, por abrigar representantes endêmicos da fauna e flora originária desta porção norte da floresta que outrora cobria toda a faixa litorânea e a chamada, hoje ironicamente, Zona da Mata. Resta na região Nordeste apenas 3% da mata nativa, a maioria no sul da Bahia.
A Floresta Pluvial Atlântica Nordestina, como é denominada tecnicamente a mata de Murici, é um dos ecossistemas mais ameaçados e mais importantes do mundo, pela riqueza de sua biodiversidade, segundo levantamento das Nações Unidas. Além disso, a Unesco a classificou como "reserva da biosfera", incluída no Programa Homem e a Biosfera (Programa MAB), desde 1993.
A Universidade Federal de Alagoas (Ufal) identificou em Murici muitas espécies animais e vegetais, algumas típicas da Mata Atlântica e outras comuns à floresta amazônica, evidenciando a particularidade desse reduto de transição entre as biotas citadas, além de espécies endêmicas raras, incluindo algumas desconhecidas, ainda não classificadas pela ciência.
Isolada em meio a um monótono tapete de cana, a mata foi o que sobrou de significativo da vegetação nativa que havia sobrevivido à exploração dos colonizadores. A situação ficou realmente crítica depois da implantação do Proálcool, a partir da década passada, quando o governo incentivou o plantio de cana-de-açúcar na região.
Notícia
Gazeta Mercantil