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Ataque a múltiplos órgãos e desequilíbrio imune: estudo revela como o vírus chikungunya leva à morte (80 notícias)

Publicado em 18 de março de 2024

Texto: Julia Moióli | Agência FAPESP

O vírus chikungunya, transmitido por mosquitos das espécies Aedes aegypti e Aedes albopictus e responsável por mais de 900 mortes no Brasil desde que chegou ao país há cerca de dez anos, é capaz de se espalhar pelo sangue, atingir múltiplos órgãos e atravessar a barreira hematoencefálica, que protege o sistema nervoso central. Os mecanismos de ação observados pela primeira vez em casos fatais por um grupo de pesquisadores brasileiros, americanos e britânicos foram relatados em artigo publicado nesta terça-feira (12/03) na revista Cell Host & Microbe . Os achados reforçam a necessidade de atualização dos protocolos de tratamento e vigilância.

Com mais de 10 milhões de casos registrados em cerca de 125 países nos últimos 20 anos, sendo 2 milhões apenas no Brasil, onde é endêmica há mais de uma década, a doença causada pelo vírus chikungunya (CHIKV) ainda é equivocadamente considerada menos mortal do que a dengue. Para ajudar a desfazer esse mito, os pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), do Kentucky (Estados Unidos), de São Paulo (USP), do Texas Medical Branch (Estados Unidos) e Imperial College London (Reino Unido), além do Laboratório Central de Saúde Pública do Ceará (Lacen), realizaram a análise mais completa sobre o tema até o momento. No ano passado, o grupo já havia relatado alta letalidade do CHIKV no Ceará, Estado com o maior número de casos do país ( leia mais em: agencia.fapesp.br/41078

O estudo, financiado pela FAPESP (projetos e ), analisou dados relativos a 32 pacientes mortos. Foram incluídos resultados de testes para a presença de CHIKV no organismo, informações laboratoriais e de autópsia. Em amostras de soro sanguíneo, líquido cefalorraquidiano e outros tecidos (como cérebro, coração, fígado, baço e rins), foram feitos exames de histopatologia (técnica que consiste em analisar, em microscópio, o tecido fixado em parafina), quantificação de citocinas (proteínas sinalizadoras secretadas por células de defesa), metabolômica (análise do conjunto de metabólitos presente no soro), proteômica (conjunto de proteínas) e análises genômicas virais, além de reações em cadeia da polimerase por transcrição reversa em tempo real (RT-qPCR), técnica laboratorial que permite a detecção e quantificação precoce de vírus por meio de seu material genético.

Para efeitos de comparação, os cientistas avaliaram também amostras e exames de outros dois grupos, sendo um composto de 39 sobreviventes de infecção aguda por CHIKV e outro de 15 doadores de sangue (pessoas adultas sem nenhuma infecção e presumidamente saudáveis).

Invasão do sistema nervoso central

Um dos achados que mais chamaram a atenção dos pesquisadores foi a presença do CHIKV em amostras de líquido cefalorraquidiano, o que indica sua capacidade de atravessar a barreira hematoencefálica, camada física que protege o sistema nervoso central e normalmente barra a entrada de patógenos.

Segundo o artigo, essa “invasão” acontece por meio de dois mecanismos: no primeiro, o vírus infecta monócitos CD14+CD16+ (células de defesa que têm na superfície moléculas CD14 e CD16) e, na presença de altos níveis de CCL-2 (uma proteína reguladora de inflamação que faz parte do sistema imune), migra através da barreira e é transportado para o cérebro; no segundo, a infecção afeta proteínas importantes para manter unidas as células epiteliais da barreira hematoencefálica.

“Isso mostra que o CHIKV, além de ser responsável por uma artralgia [dor nas articulações], que causa febre, dor muscular e inchaço articular, também leva a danos neurológicos”, explica William Marciel de Souza , professor na University of Kentucky (Estados Unidos) e primeiro autor do estudo.

“No sangue, observamos uma alteração severa na cascata de coagulação, com a diminuição de algumas proteínas-chave, bem como danos hemodinâmicos nos órgãos, ou seja, excesso de líquidos. No sistema imune, os níveis de citocinas associadas à inflamação se mostraram maiores que os observados em pacientes com chikungunya que sobreviveram.”

Resumo gráfico dos principais achados do artigo (imagem: acervo dos pesquisadores)

Saúde pública

Compreender os mecanismos biológicos de qualquer doença contribui para o desenvolvimento de tratamentos eficazes, biomarcadores prognósticos e estratégias de manejo clínico. De acordo com os pesquisadores envolvidos no trabalho, isso é fundamental no caso do chikungunya por dois motivos:

“Ainda não existem programas de imunização em grande escala – a primeira vacina contra o vírus foi aprovada pela Food and Drug Administration [órgão norte-americano de vigilância sanitária] em novembro do ano passado – e os surtos devem continuar seguindo o mesmo padrão no Brasil, ou seja, afetando muitas pessoas de uma vez, porém, em pequenos bolsões geográficos”, avalia José Luiz Proença Módena , professor do Instituto de Biologia da Unicamp. “As equipes de saúde pública precisam estar preparadas para isso, inclusive com vigilância genômica, sorológica e em porta de UTI [unidade de terapia intensiva].”

“Além disso, quadros de insuficiência cardíaca e neurológicos não são tradicionalmente associados à doença, mas, em uma fração da população acometida por esse vírus, isso pode ocorrer e deixar sequelas ou até mesmo levar à morte”, completa Souza.

A pesquisa também recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação Bill & Melinda Gates, do Global Virus Network, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), National Institutes of Health (NIH), Burroughs Wellcome Fund e Wellcome Trust.

O artigo Pathophysiology of chikungunya virus infection associated with fatal outcomes pode ser lido em: www.cell.com/cell-host-microbe/fulltext/S1931-3128(24)00054-4