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Assistência à saúde para pessoas trans está sob ameaça, dizem pesquisadores (3 notícias)

Publicado em 02 de julho de 2025

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MSN (Brasil) Leal Junior

As restrições recentes a políticas públicas e de assistência à saúde para pessoas transgênero aplicadas em vários países, incluindo o Brasil, ameaçam desmontar estruturas de atendimento já existentes para essa população e podem promover retrocessos. O alerta está em artigo publicado na revista científica Nature Medicine por um grupo de pesquisadores brasileiros.

O texto destaca a nova resolução ( nº 2.427 ) do Conselho Federal de Medicina (CFM), que, em abril, proibiu no Brasil o uso de bloqueadores hormonais em menores de 18 anos , aumentou de 16 para 18 a idade mínima da terapia hormonal cruzada e liberou as cirurgias de transição de gênero somente a partir de 21 anos.

Além de proibir o uso clínico de bloqueadores em jovens transgênero, a resolução brasileira impede também as pesquisas nessa área. Na hormonização são administrados hormônios sexuais para promover mudanças físicas compatíveis com a identidade de gênero. Esses procedimentos vinham sendo adotados com base na resolução anterior do próprio CFM ( nº 2.265 ), publicada em 2020.

Segundo os autores, além de gerar um efeito intimidador entre profissionais da saúde, essas regras dificultam a oferta de cuidados adequados e podem aumentar riscos de depressão , isolamento social e até suicídio entre jovens trans – aqueles que não se identificam com o sexo de nascimento. Em relação à ciência, o grupo avalia haver um freio, com limite ou proibição de pesquisas e tratamentos voltados especificamente a esse grupo.

O artigo também conclama entidades profissionais e comunidade acadêmica – instituições, agências de fomento, revistas científicas e pesquisadores – a reafirmarem seu apoio aos cuidados para indivíduos trans baseados em evidências.

“As políticas públicas e a legislação em saúde precisam estar baseadas em evidências e princípios éticos, não em ideologia. Todos, incluindo jovens trans e suas famílias, profissionais de saúde e pesquisadores precisam participar, ser ouvidos, entender o que está acontecendo”, afirma à Agência FAPESP o psiquiatra Alexandre Saadeh, um dos autores do artigo, que trabalha na área há mais de 35 anos.

Saadeh é coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (Amtigos-IPq-HCFMUSP), pioneiro no acolhimento de jovens trans no Brasil e referência na criação e aplicação de protocolos de atendimento durante a infância e a puberdade. Em dez anos, foram atendidos no Amtigos cerca de 120 crianças e mais de 350 adolescentes em um universo de 1.300 pessoas que passaram por triagem.

Procurado pela Agência FAPESP, o CFM citou Suécia, Noruega, Finlândia e Inglaterra, além dos Estados Unidos, como “paises que revisaram, nos últimos anos, suas diretrizes e restringiram o uso de bloqueadores de puberdade e hormonioterapia para menores, refletindo a necessidade de mais pesquisas e uma abordagem mais cautelosa na prescrição desses medicamentos”.

“O Conselho Federal de Medicina respeita as opiniões contrárias e reitera que um dos objetivos das mudanças propostas na resolução, baseadas em mais de 100 estudos científicos publicados nos últimos anos, é proteger crianças e adolescentes de procedimentos que, muitas vezes, são absolutamente irreversíveis, podendo trazer problemas e sequelas para toda a vida”, informa o conselho por meio de sua assessoria, complementando que a norma foi aprovada em plenário, composto por 28 conselheiros federais de todos os Estados, “de diferentes matizes ideológicas”.

Princípio da autonomia progressiva

Na avaliação de Saadeh, a identidade de gênero sempre existiu. “Não é uma doença, não é um transtorno, é uma variação que acontece com o ser humano em todas as culturas e em todos os países. Temos de olhar para essas pessoas, ouvi-las e não tentar impedir que elas sejam quem são. Não é restringindo direitos que vamos proteger a infância e adolescência”, argumenta o psiquiatra.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante aos jovens participação nas decisões sobre sua saúde por meio do princípio da autonomia progressiva.

Para o professor e presidente do Centro de Medicina do Estilo de Vida da USP, Bruno Gualano, coautor do artigo, a nova norma do CFM dificulta a produção científica. “A resolução suprime do médico a possibilidade de prescrever, por exemplo, o bloqueio hormonal como vinha sendo feito com a norma anterior do conselho e que trazia regras específicas. Por outro lado, cobra mais evidências científicas dos efeitos desse procedimento em jovens. Mas, se está proibido, como vamos produzir evidência?”, questiona.

Os pesquisadores destacam que a resolução anterior do CFM orientou o atendimento no Amtigos a 79 adolescentes transgênero com bloqueadores da puberdade. “Efeitos adversos foram raros, sendo que poucos desistiram do bloqueio e apenas um expressou o desejo de destransicionar após a hormonização, e isso se deu sem arrependimento. Esses resultados se alinham aos padrões internacionais, mostrando taxas de destransicionar abaixo de 2% quando os protocolos adequados de avaliação são seguidos”, escreve o grupo na Nature Medicine

Atualmente, Gualano é pesquisador responsável do projeto “Comportamentos alimentares, sintomas de transtornos alimentares e obesidade em jovens transgênero: uma proposta de avaliação e intervenção”, desenvolvido pela nutricionista Bruna Caruso Mazzolani, também coautora do texto. Apoiado pela FAPESP, o estudo pretende, além de avaliar os comportamentos e possíveis transtornos alimentares , elaborar e implementar uma intervenção de estilo de vida específica para essa população.

Dados preliminares obtidos pela equipe de Gualano indicam que os pacientes do Amtigos e seus responsáveis discordam fortemente das principais mudanças trazidas pela nova resolução do CFM. “Naturalmente, qualquer proposta de alteração de cuidado das pessoas trans deveria levar em consideração o que elas pensam”, argumenta o pesquisador, na expectativa de que os novos dados joguem luz na discussão.

O Brasil tem uma carência de estatísticas oficiais sobre a população trans e conta com poucos estudos e pesquisas envolvendo essas pessoas, especialmente jovens. Levantamento da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB-Unesp) publicado na Scientific Reports em 2021 mostrou que o país tem 3 milhões de pessoas identificadas como transgênero ou não binárias, o que corresponde a cerca de 2% da população adulta.

A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) 2023, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, incluiu pela primeira vez a coleta de dados sobre orientação sexual e identidade de gênero dos brasileiros com 18 anos ou mais, porém os resultados ainda não foram divulgados.

Outros casos

No Reino Unido, o Serviço Nacional de Saúde (NHS) restringiu o acesso aos bloqueadores de puberdade somente em ambientes de pesquisa.

Já nos Estados Unidos, após uma Ordem Executiva do governo do presidente Donald Trump ( publicada em janeiro deste ano) proibir cuidados de afirmação de gênero para menores de 19 anos, apenas 14 dos 50 Estados decidiram manter serviços de assistência médica a pessoas trans. A restrição foi aprovada apesar da posição contrária de órgãos médicos, como a Academia Americana de Pediatria e a Associação Médica Americana, que apoiam os cuidados a essa população a partir de protocolos baseados em evidências científicas.

Para os pesquisadores, as novas políticas trazem sérias implicações éticas, comprometendo desde o direito à saúde – “quando cuidados médicos indicados são negados por razões políticas” – até a possibilidade de pessoas trans procurarem atendimento com profissionais que não reconhecem sua identidade de gênero.

“No Brasil, a resolução do CFM pode levar esses jovens a buscar médicos não capacitados ou até à automedicação, prejudicando a saúde. Além disso, essas políticas afetam com mais força as famílias de baixa renda, ameaçando conquistas importantes nos direitos e na saúde”, diz Saadeh.

Atendimento no Amtigos

O ambulatório recebe indivíduos que buscam espontaneamente o serviço de saúde. Eles preenchem um formulário de cadastro para depois passar pela triagem. A partir da entrada, as crianças e jovens têm acesso aos acompanhamentos com avaliação psiquiátrica e equipe multidisciplinar – fonoaudiologia, serviço social, psicologia, psiquiatria, pediatria, nutrição, educação física e outras. As famílias participam do processo e da orientação. O ambulatório atende os adolescentes até a fase adulta.

“Este é um momento de prova do compromisso da medicina com as evidências, acima da ideologia. Da Aids aos direitos reprodutivos, a comunidade científica tem defendido a equidade em saúde e a integridade. (...) O cuidado médico é necessário, eticamente fundamentado e amplamente respaldado por evidências. Seu retrocesso é injustificável”, concluem os pesquisadores.

Leia o artigo "The global rollback of transgender care, science and rights" na íntegra.

Luciana Constantino, da Agência Fapesp