Notícia

Gazeta Mercantil

Assim, nem Hércules resolve

Publicado em 15 abril 1997

Por Washington Novaes
Mais de metade da energia produzida no Brasil provém de fontes renováveis - o que significa enorme vantagem estratégica diante de países que dependem fundamentalmente de fontes não renováveis, como o petróleo. A energia hidráulica responde por 36,8% (dados de 1995), o carvão vegetal e a lenha, por 11,7%, o álcool e o bagaço, por mais 11%. Ao petróleo cabe menos de um terço da energia total - mais exatamente 30,9%. Além disso, o País tem excepcionais possibilidades no campo de outras energias alternativas, como os óleos vegetais, a energia solar, a energia eólica, etc. Da mesma forma que poderia estimular fortemente a conservação de energia, permitindo deslocar investimentos para outras áreas igualmente necessitadas. Se é assim, o tema das energias alternativas deveria estar no alto das prioridades para discussão em todos os níveis, em todos os lugares. Mas, em lugar disso, o que se observa é um silêncio quase total em torno do assunto (excetuado o blablabá distorcido em torno do Proálcool). Vale a pena, por isso, dar atenção a um trabalho apresentado em janeiro último pelo professor José Roberto Moreira, do Instituto de Eletromecânica e Energia da Universidade de São Paulo e diretor da Biomass Users Network, durante o "workshop" promovido pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, pela Academia Brasileira de Ciências e pela Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, para avaliar as ações desenvolvidas pelo Brasil rumo ao desenvolvimento sustentável, após a Rio 92. Nesse trabalho, vai-se de surpresa em surpresa e de interrogação a interrogação: por que o País não leva a sério essas questões? Por que somos tão perdulários, desperdiçadores de oportunidades? No fundo, por que somos tão incompetentes sob esse ponto de vista? Desde a Conferência das Nações Unidas sobre Fontes de Energia Novas e Renováveis (Nairóbi, 1981), existe um programa de ação comum para esse campo, aceito por consenso. Mas como não se confirmou a previsão da época, de que o petróleo se esgotaria num horizonte relativamente curto e ficaria progressivamente mais caro, pouco se caminhou. Em 1991, a ONU fez outro esforço, num documento que identificava fontes renováveis capazes de substituir aquelas que geram a emissão de poluentes da atmosfera e contribuem para a ameaça de mudanças climáticas. Também não adiantou muito. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU fez outra tentativa em 1995, diante do agravamento do quadro de que trata especificamente. Em muitos países, o alerta tem dado resultados, há avanços importantes. Mas, entre nós, parece que continuamos no melhor dos mundos, surdos às advertências. Mais uma razão para dar importância ao trabalho do professor José Roberto Moreira, amplo, extenso, informado. Ele começa pelo campo da biomassa, que muitos especialistas - entre eles Ignacy Sachs - apontam como a nossa grande possibilidade. E começa pelo etanol - que julga um caminho muito promissor (embora alguns especialistas, como o ex-secretário de Desenvolvimento Sustentável do Espírito Santo, Luiz Antônio Prado, insistam na necessidade de estudos mais abrangentes sobre os efeitos dos aldeídos do etanol da cana-de-açúcar sobre a saúde humana). O Brasil foi o primeiro país a conseguir implantar um sistema de produção de energia em larga escala a partir da biomassa da cana - e por isso continua a despertar o interesse do mundo todo. A produtividade média em menos de vinte anos mais do que dobrou na região Centro-Sul, simultaneamente à queda no custo de produção -, que, segundo o estudo, ainda poderia ser reduzido em 23% com tecnologias e manejo adequados. É certo que também surgiram problemas novos, como o do custo de estocagem pós-Plano Real. Mas, em compensação, praticamente foram eliminados os subsídios e chegou-se a uma produtividade por hectare e a um valor de produção "muito alto quando comparado com todos os usos alternativos da terra". Além disso, a co-geração de energia a partir do bagaço da cana oferece oportunidades excepcionais ("não é possível continuar o uso perdulário de tanta energia disponível, principalmente no Estado de São Paulo", diz o estudo). E abre-se a possibilidade de novas utilizações, como a tecnologia da hidrólise enzimática de celulose do bagaço, que, segundo seus detentores, permitiria baixar o preço do etanol de US$ 0,38 para US$ 0,24 por litro. Outras tecnologias permitiriam aumentar a co-geração dos atuais 16 quilowatts-hora por tonelada de cana para até 10 quilowatts-hora, ou mesmo 280 quilowatts-hora, se a queima de resíduos for evitada. Outra tecnologia que está sendo desenvolvida com apoio do GEF/Banco Mundial, se comprovada, permitirá transformar a disponibilidade atual dosresíduos de cana (61 milhões de toneladas anuais) em 160 TWh/ano, "ou seja, 67% da eletricidade total consumida atualmente no Brasil". No capítulo dos óleos vegetais, as possibilidades também parecem muito promissoras, principalmente para regiões do Brasil não atendidas pelas redes convencionais de energia. Motores capazes de funcionar com óleos vegetais (principalmente de dendê) "in natura" - e que estão sendo testados - poderiam gerar energia mais barata que a dos motores a diesel (que implicam custos de transporte do combustível e subsídios). A própria energia solar, apesar de muitos problemas, teria possibilidades: "No Brasil dispomos de todos os elementos da cadeia tecnológica neste setor: pesquisa com capacidade plena de desenvolvimento, fabricação de células e módulos e todos os elementos auxiliares de engenharia para pequenas instalações e para grandes plantas de geração fotovoltaica. Que nos falta? Vontade política para levar a cabo "operações de certa envergadura financeira, tecnológica e industrial", que, entretanto, seriam muito compensadoras, por vários ângulos, principalmente o ângulo ambiental. Vale a pena lembrar que, se para o consumidor o chuveiro elétrico custa apenas uns R$ 20, para a distribuidora de energia ele exige investimentos mais de uma centena de vezes maiores. As conclusões do estudo são melancólicas: - As energias alternativas têm sido estudadas e usadas no País, mas a utilização é "incipiente", pois nem a Eletrobrás nem a Petrobrás "têm previsões efetivas do seu uso como contribuição ao sistema de fornecimento de energia". - Apesar de todas as perspectivas mencionadas, "os cenários publicados pela Petrobrás para o ano 2005 prevêem uma redução no valor absoluto de produção do eta-nol, que passa de 12,2 bilhões de litros em 1994 para 2 a 4 bilhões, conforme o cenário". - As atividades de implantação de projetos de energia alternativas estão restritas a ações de órgãos federais atuantes, porém com poucos recursos, ou de ações no âmbito estadual e até de municípios, graças a convênios nacionais e internacionais. - "A geração e produção de energia alternativa não podem concorrer com os energéticos tradicionais de forma geral, sem haver preocupações de ordem social e ambiental que valorizem os primeiros" - e essas preocupações praticamente inexistem. - Seria importante implantar "ações nas áreas institucionais com a finalidade de pelo menos trazer para as energias alternativas tratamentos fiscal e financeiro semelhantes aos existentes para as energias convencionais". - Além disso, se se pretende manter o suprimento de indústrias com carvão vegetal (a previsão de consumo é de 21,9 milhões de toneladas/ano de lenha para esse fim no ano 2000), será preciso ampliar a área plantada em 800 mil hectares, com investimento de US$ 4,8 bilhões -se não se deseja avançar com um desmatamento já em níveis de condenação internacional. Muito mais haveria para informar. Mas nem há espaço. E essas informações bastam para mostrar o quanto é necessária uma discussão muito ampla, informada, dessas questões. O País pode ganhar muito. Principalmente pode relocar investimentos, numa hora em que o crescimento da taxa de poupança e de investimento parece tarefa que nem Hércules resolve.