Um projeto na área da engenharia genética - que teve a participação de 40 pesquisadores de 20 laboratórios do Estado, interligados pela rede virtual Onsa, da Fapesp -poderá render bons frutos para a indústria sucro-alcooleira paulista num futuro próximo. Trata-se do seqüenciamento do genoma da bactéria Leifsonia xyli xyli, responsável pelo raquitismo da soqueira, uma doença que ataca a cana-de-açúcar e causa prejuízos milionários aos produtores. Concluído em junho passado, o projeto aguarda publicação em revista especializada.
Durante a pesquisa, os cientistas fizeram importantes descobertas sobre os mecanismos de defesa da Leifsonia xyli xyli. Esse organismo, que se instala nos xilemas (vasos) da cana, convive com a Xanthomonas albilineans, bactéria que secreta a albicidina - toxina responsável por uma doença conhecida como escaldadura das folhas -, sem ser afetado pela substância. Os pesquisadores descobriram que isso ocorre porque a Leifsonia xyli xyli possui uma "bomba de efluxo" (proteína capaz de expulsar toxinas das células), que neutraliza o efeito da albicidina.
A descoberta abriu novas perspectivas para a ciência paulista - que poderão ser concretizadas com a ajuda da transgenia. Os cientistas perceberam que é possível inserir, no genoma da cana-de-açúcar, o gene da Leifsonia xyli xyli responsável pela "bomba de efluxo", a fim de que a planta, através do mesmo mecanismo, combata os efeitos da Xanthomonas albiliueans, tornando-se resistente à albicidina. Essa nova etapa de estudos já está em andamento desde dezembro passado. "O que é muito interessante nesse trabalho é que podemos usar um patógeno para combater outro", afirma o professor Luís Eduardo Aranha Camargo, do Departamento de Entomologia. Fitopatologia e Zoologia Agrícola da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, um dos coordenadores do projeto, ao lado da pesquisadora Cláudia Barros Monteiro Vilorello.
Lagartas - Outras pesquisas feitas com técnicas da transgenia - igualmente promissoras para a economia paulista - são realizadas nos laboratórios da Esalq. Ali, os pesquisadores investigam não só os genomas de bactérias e plantas, mas também a interação desses organismos entre si e com o ambiente. A lagarta Diatraea saccharalis, causadora da broca da cana-de-açúcar - outra doença comum nos canaviais do Estado -, por exemplo, é estudada desde 1998 pela equipe do professor Márcio de Castro Silva Filho, do Departamento de Genética.
Castro Silva e seu grupo já conseguiram introduzir no genoma da cana dois genes que combatem a lagarta. Em um dos estudos, a planta recebeu um gene que produz a proteína Bt (Bacillus thuringiensis), que é tóxica para o inseto e apresenta eficácia de 99% de mortalidade.
Em outro estudo, um gene da soja - isolado, clonado e transformado - foi inoculado na cana, que passou a produzir o inibidor de protease da soja. Como resultado, a substância impede que o inseto processe as proteínas vitais para sua sobrevivência. Segundo Castro e Silva, a técnica interfere nos parâmetros de reprodutividade do inseto, provocando uma taxa de mortalidade da lagarta da ordem de 30%. "Aguardamos autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para fazer estudos de toxicidade em animais como camundongos e bovinos", informa o professor. Ele esclarece que o inibidor de protease da soja, inoculado na cana, não age direta-mente nos seres humanos porque eles não consomem a folha e o caule da planta. Já a quantidade de inibidor presente no caldo da cana é muito pequena e, além disso, esse elemento está em todo o reino vegetal, sendo, portanto, comum na dieta do homem.
A professora Helaine Carrer, do Departamento de Ciências Biológicas da Esalq, trabalha atualmente no estudo dos cloroplastos - corpúsculos celulares responsáveis pela fotossíntese e pela síntese de aminoácidos nas plantas. "Queremos entender como os genes de cloroplastos interagem com o núcleo celular na regulação desses genes", explica Helaine.
Uma vez compreendido o funcionamento do cloroplasto, os cientistas sonham poder introduzir nessa parte da célula genes que melhorem a qualidade nutricional dos alimentos ou que expressem substâncias ativas que funcionem como uma espécie de vacina comestível. Segundo Helaine, alguns laboratórios já produziram hormônio do crescimento humano em caráter experimental na planta do tabaco. "Na Esalq, estamos tentando introduzir genes de algas em tomates para aumentar o teor de vitamina E". diz. Para a professora, tornar um alimento mais nutritivo não significa que ele terá um custo maior para o consumidor: "O mais caro é o desenvolvimento da tecnologia. Depois é só multiplicar as sementes e torná-las disponíveis aos produtores".
E não é só. Um grupo coordenado pela professora Maria Lúcia Carneiro Vieira, do Departamento de Genética da Esalq, busca controlar geneticamente doenças do maracujá azedo através de diferentes estratégias, entre elas a transgenia. O grupo inoculou um gene de mariposa para dar resistência ao maracujá. No Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) - ligado à Esalq -, também em Piracicaba, a professora Beatriz Madalena Januzzi Mendes pretende testar na laranja a estratégia realizada por Maria Lúcia com o gene de mariposa. Outra pesquisa prevê o seqüenciamento da bactéria Pantoea aggeomerans, a fim de combater o fungo Fusarium, que ataca cereais como cevada, trigo e milho. O Cena conduz ainda pesquisas com eucalipto, cana-de-açúcar e banana, entre outros organismos.
A ferrugem - também uma doença que ataca a cana-de-açúcar - causada pelo fungo Puccina melanocephala, vem sendo estudada no Departamento de Biotecnologia Agrícola da Esalq. O objetivo é introduzir na cana um gene que confira à planta resistência ao patógeno. Ainda mais diretamente relacionadas com o dia-a-dia do cidadão comum estão as pesquisas da Esalq sobre os nutracêuticos (alimentos modificados que agregam valor nutricional ou farmacêutico diferenciado dos tradicionais) - um dos ramos da biotecnologia ainda por ser explorados pela ciência. "Todas essas pesquisas, em conjunto, podem trazer efeitos muito significativos para a economia do País", afirma o diretor da Esalq, professor José Roberto Postali Parra.
Incidentes - É verdade que a engenharia genética já provocou incidentes em países que utilizam a tecnologia em larga escala. Nos Estados Unidos, há relatos de que um gene da castanha-do-pará inoculado na soja provocou reação alérgica em pessoas que apresentavam sensibilidade à castanha. Naquele mesmo país, um energizante à base de levedura transgênica produziu alergias em pessoas sensíveis a determinada bactéria introduzida no produto. "Esses casos, associados a alergias, nada têm a ver com a transgenia em si. O importante é conhecer os efeitos que a proteína codificada pelo gene terá no organismo humano", rebate a professora Helaine Carrer.
Para o professor Luís Aranha Camargo, o que causa estranhamento nas pessoas é a quebra de barreira entre as espécies provocada pela nova tecnologia. "O melhoramento das espécies sempre aconteceu respeitando as barreiras naturais e isso foi quebrado pela transgenia", analisa o professor. "Essa situação inspira medo, o que de certo modo é bom, porque incentiva procedimentos mais seguros nesses processos. Mas é preciso separar o dogmatismo e o jogo político que geram radicalismos", acrescenta, lembrando outros benefícios da transgenia: a redução dos riscos de contaminação ambiental por agrotóxicos e a eliminação dos problemas de erosão causados pela mecanização da lavoura, dispensada pelo plantio direto dos transgênicos. O professor Castro e Silva completa dizendo que as tecnologias da engenharia genética são irreversíveis - e bem-vindas. "Ao contrário do que muitos acreditam, essas tecnologias podem trazer grandes benefícios para o ambiente. Só com a soja transgênica, o Rio Grande do Sul deixou de jogar 5 mil toneladas do princípio ativo de herbicidas no solo, o que em escada nacional daria mais de 30 mil toneladas", exemplifica. "Na China, a produção do algodão Bt reduziu de 14 para duas as aplicações de agrotóxicos por safra."
Notícia
Jornal da USP